Comentário da Lição da Escola Sabatina 2024 / Lição 5 – Fé contra todas as dificuldades

SábadoFé contra todas as dificuldades.

Não sei se vocês sabiam, mas, durante os séculos de perseguição religiosa, a igreja de Roma fabricou documentos, alegando serem antigos, para justificar que suas “novas” ordens eram antigas, que vinham dos tempos e da autoridade apostólica. Pura mentira! Também, além de colocar na fogueira aqueles que a desmentiam, destruiu quase que a totalidade dos registros da verdade feitos por estes – verdades não só teológicas, mas também históricas e científicas. Inclusive, muitos exemplares bíblicos foram para a fornalha ardente.

Mas, Deus não Se ausentou. Não fechou Seus olhos para essas barbáries. Não encolheu a Sua mão que protege e guia. Ele havia deixado uma bênção reservada aos que estudassem diligentemente a Sua Palavra, e os que assim fizeram, nela encontraram não somente o registro passado do povo de Israel, e nem só os Seus conselhos para os seus dias atuais, mas também a revelação do futuro que os aguardava – que chamamos de profecia.

Desde o início, com a Bíblia na mão, através das profecias, a igreja andava sabendo o que ia acontecer do outro lado da rua, e ao virar a esquina. Ela nunca andou nas trevas. Dificuldades vieram, é verdade. Sofria a perseguição dos ímpios e, cruelmente, da parte podre da própria igreja – parte que cresceu e dominou por um tempo, mais dois tempos, e metade de um tempo. Mas ela sabia que Deus a estava conduzindo, alimentando, sustentando. Cada prova era prova que Deus estava no controle, pois tudo acontecia exatamente conforme revelado nas Escrituras. E diante do cumprimento profético, se rendia ao Deus que tudo sabe, o Deus que desvenda o caminho a seguir.

Bem, a Lição da semana contou a história de algumas pessoas que não se sujeitaram aos mandos e desmandos papais. Só de algumas. E um pouco só de cada uma delas. Impossível contar a história completa de todos os mártires. Lembrando que alguns sequer tiveram seus nomes registrados para o nosso conhecimento. (Mas Deus sabe!).

Vamos começar.

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DomingoA Palavra de Deus somente.

Um dia, em conformidade com a Providência Divina, uma plantação de girassol deveria ser colhida. Essa planta é linda demais. Imaginem uma fazenda cheinha delas! Bem, parte da colheita de girassol serviria para ornamentação, outra para alimento humano e de papagaios, e a maior parte para óleo. Porém, não devemos esquecer: para se ter uma colheita de girassol, antes é preciso preparar o solo da fazenda, plantar as sementes, deixar as chuvas temporã e serôdia fazerem sua obra, e esperar o tempo chegar.

De igual modo, a Reforma Protestante viria, por Deus, e, para isso, antes, o próprio Deus prepararia o terreno. Haveria uma colheita de heróis, mas heróis teriam que ser plantados antes. Gigantes na fé fariam proezas, mas gigantes na fé viriam antes para servir de inspiração para eles. Cristãos de verdade mostrariam suas vidas para o mundo, mas cristãos de verdade morreriam antes destes.

O adubo dos pioneiros era a Bíblia. Somente a Bíblia. Nada das invenções romanas. Destas, distância!

Mesmo com escassez de Bíblia, liam, memorizavam, copiavam à mão, e saiam a alfabetizar as pessoas, dando-lhes acesso à leitura da Palavra de Deus. Luz em meio às trevas! E Deus fazia Sua obra de preparo e colheita em mais e mais fazendas.

A Lição citou um nome: John Wycliffe. Na verdade, ele já foi citado semana passada. Seu nome voltou agora para algumas considerações a mais.

Wycliffe nasceu em 1328, e morreu com 56 anos, em 1384. Era inglês. Em seu tempo, a supremacia papal estava com quase 900 anos. Por sorte, a Inglaterra ficou um bom tempo longe dos olhos do papa. Enquanto em outros países o papado havia fincado seus dez dedos, na Inglaterra, só oito ou nove.  Portanto, ainda havia um pequeno espaço para um libertador – e esse libertador foi John Wycliffe, que tentou mostrar ao clero que as coisas que eles faziam não estavam em conformidade com o desejo de Deus. Mas, como era de se esperar, foi ignorado. Então, veio a ideia de traduzir a Bíblia do latim para o inglês. E assim foi feito. Sucesso total! E associado a isso, escreveu livros que denunciavam as escandalosas ordens papais, o que lhe rendeu o Oscar de melhor herege do ano.

Todas as Bíblias eram cópias feitas à mão, e em latim. Exemplares, só em alguns raros lugares. As missas eram feitas em latim, que só os padres entendiam, mas nelas não havia leitura da Bíblia. Conclusão: “pastores” desnutridos, ovelhas raquíticas. Tudo estava conforme o animal terrível e espantoso queria.

Agora, paremos para pensar: Wycliffe, professor de teologia, católico, cercado por católicos, obedecendo a Deus e não ao papa. Isso é um Milagre! Obedecendo a Palavra de Deus somente, e nada de acatar os dogmas romanos. Isso é um Milagre com M maiúsculo!

Na semana passada, entre as perguntas 5 e 6 (Quarta, 24 de abril), há um trechinho do livro O Grande Conflito. Merece ser relido. Vejam o poder da Bíblia quando ela é estudada com os óculos do Espírito Santo.

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SegundaTransmitindo a Palavra de Deus.

Outro nome sugerido pela Lição é William Tyndale (1484-1536), que nasceu cem anos depois da morte de Wycliffe.

Tyndale é da mesma época de Martinho Lutero(1483-1546). Um ano mais novo que ele. Paralelo a eles dois, outros dois: João Calvino (1509-1564), na França, e John Knox (1505-1572), na Escócia (são os pais da Igreja Presbiteriana). Mas, quanto a Tyndale, morreu na fogueira da Inquisição, aos 52 anos de idade.

E o que significa isso? Significa que depois da morte de Wycliffe, as coisas ainda não estavam favoráveis na Inglaterra. Significa que, mesmo em plena expansão da Reforma, o papado não tinha perdido espaço na Inglaterra. O animal terrível e espantoso estava com uma fome gigante, buscando a quem devorar, sabendo que pouco tempo lhe restava. (O Brasil tinha sido descoberto em 1500, mas o catolicismo não queria perder a Europa).

Por falta de espaço e tempo, vamos destacar uma só obra de Tyndale – uma só, mas de extrema importância para o mundo, até os dias de hoje. Tyndale revisou a tradução da Bíblia feita por Wycliffe (do latim para o inglês), e fez as devidas correções usando a Bíblia hebraica e a grega (a Septuaginta). Dessa melhora, não muito tempo depois, editores ingleses fizeram a famosíssima versão King James – versão que, para a época, tinha um linguajar mais acessível, vindo a facilitar a tradução do inglês para os outros idiomas do mundo.  

A fogueira não queimou o desejo de transmitir a Palavra de Deus ao mundo. E a King James, uns 200 e poucos anos depois, chegou às mãos de Guilherme Miller e dos pioneiros adventistas, que a estudaram, estudaram, e estudaram. Somos devedores a estes, e a Tyndale, e a Deus, que manteve Sua mão protetora sobre a igreja verdadeira.

Nem dez anos depois da morte de Tyndale (1536), a Inglaterra deu um basta ao catolicismo romano. O rei Henrique 8º (1491-1547) fundou a Igreja Anglicana. O motivo foi de ordem particular (Roma não aceitava seus vários casamentos), mas acabou ajudando a Reforma Protestante. (Diz o ditado: Deus escreve certo por linhas tortas).

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Terça Iluminados pelo Espírito.

Na terça, uma história engraçada. Um padre católico – Martinho Lutero (1483-1546) – dentro da biblioteca da Universidade, viu uma Bíblia. Era padre, mas agora é que estava vendo uma Bíblia pela primeira vez na vida. Isso mostra a condição imposta pelo catolicismo até mesmo aos seus sacerdotes. É engraçado, não é mesmo? Dá vontade de rir. Cegos guiando cegos!

Mas, ao mesmo tempo, mostra a Providência Divina em ação. Cem anos se passara da morte de Wycliffe, que fizera à mão a tradução da Bíblia do latim para o inglês. E, mais ou menos na metade desse tempo (entre 1450/1455), o alemão Johannes Gutenberg (1400-1468) havia aperfeiçoado o sistema gráfico, e publicado várias Bíblias em latim (a Vulgata Latina) – e uma delas estava agora nas mãos de Martinho Lutero.

Irmãos, isso foi luz. Isso foi o Trono de Deus despejando toda a luz que a humanidade em trevas tanto precisava.

Martinho Lutero pegou essa Bíblia, e mesmo sendo padre católico, a colocou no lugar mais alto de sua vida, e por ela viveu. Enfrentou a besta do Apocalipse. Enfrentou a serpente. Enfrentou o grande sistema que queimava “hereges”. Mas enfrentou em nome e no poder dAquele que é o nosso Castelo Forte.

Depois da pergunta 3, no segundo parágrafo, vale a pena ler um breve comentário sobre John Knox, o reformador na Escócia.  

Quanto a Martinho Lutero, saibam: ele traduziu a Bíblia do latim para o alemão, e precisou criar escolas primárias para ensinar as crianças a ler e compreender a Bíblia. Com esse sistema educacional, os “protestantes” revolucionaram o ensino alemão, o que estimulou outros países a fazerem o mesmo.

Irmãos, Lutero é muito mais do que imaginamos e contamos! E louvado seja Deus!

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Quarta Somente Cristo, somente a graça. // QuintaObediência: o fruto da fé.

As lições de quarta e quinta não precisam de comentário adicional. Basta serem lidas exatamente do jeito que estão. Estudem os versos indicados, destaquem as palavras-chave, façam suas anotações. E louvado seja Deus.

A pergunta 4 é importantíssima: “Como funciona o Plano da Salvação?”    

Pergunta 5: O que significa “salvação somente por meio da justiça de Cristo”?

Pergunta 6: Como deve ser a vida da pessoa alcançada pela salvação dada por Jesus Cristo? Como deve ser a “vida cristã” de uma pessoa salva?

Depois de questões teológicas, a Lição volta para a História, e cita o nome de John Wesley.

Wesley é o pai da Igreja Metodista. Nasceu em 1703, e morreu em 1791 (os 1.260 anos da profecia acabaram um pouquinho depois, em 1798). Não foi católico. Em seu tempo, a Inglaterra era “anglicana”. Mas, a Inglaterra estava totalmente anestesiada para as questões espirituais. Os valores morais da sociedade estavam em decadência quase que irrecuperáveis. E Deus, então, levantou mais um reformador. Colocou em evidência a forte voz de Wesley, o pregador que resgatou a vontade de estudar a Bíblia, e fazer de seus ensinamentos o método de vida do cristão.

Herdamos dos metodistas o gosto pelo hinário cristão, e o extraordinário esforço em imprimir e distribuir Bíblias para o mundo: eles criaram as Sociedades Bíblicas. Louvado seja Deus!

Pessoas morreram pela Bíblia. Agora, pessoas leem a Bíblia. Os girassóis estão olhando para o Sol.

Em suas igrejas, por favor, apoiem a Classe Bíblica. Incentivem. Ajudem. Patrocinem. Façam seus carros virarem Uber-missionário. Que a sala de estudo seja o lugar mais aprazível da igreja. Orem por todos os envolvidos no estudo.

Deus nos abençoe.

Carlos Bitencourt / Ligado na Videira

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Comentário da Lição da Escola Sabatina 2024 / Lição 4 – Em defesa da verdade

SábadoEm defesa da verdade.

Nesta semana, a Lição destacou o nome de algumas pessoas que não se dobraram diante dos mandos e desmandos da igreja apostatada. A força contra eles foi brutal, mas se mantiveram firmes e fortes em defesa da verdade. Tinham pouca luz disponível, mas se agarraram a ela e foram em busca de mais. Mais e mais. E não a guardaram para si. Tomados pelo amor a Deus, trataram de fazer coisas que beneficiaram toda a humanidade: primeiro pelo exemplo, pelo testemunho; segundo, pelo legado de história e material que nos deixaram.

Jesus disse que não se deve guardar a lamparina embaixo do sofá. Os homens vistos nesta semana levantaram a lamparina bem no alto. Põe alto nisso!

Na semana que vem (Lição 5), mais nomes serão considerados. Será uma continuação. Duas semanas vendo heróis na fé que nasceram, viveram e morreram durante os anos em que o animal terrível e espantoso estava fazendo misérias. Vale a pena usar o Google e levantar a ficha de todos os citados. Vocês encontrarão detalhes a mais, histórias que a Lição não conseguiu abordar, em razão do pouco espaço. Outra boa fonte é o livro O Grande Conflito. Seus capítulos 4, 5 e 6 são muitos esclarecedores.

Percebam que estamos avançando os períodos das Igrejas do Apocalipse: Éfeso (31-100); Esmirna (100-313); Pérgamo (313-538); e Tiatira (538-1798).

Bem, o primeiro nome visto na Lição, no sábado, foi Policarpo de Esmirna (69-155). Policarpo foi um homem que, ainda jovem, viu e ouviu João, o idoso discípulo amado, e imediatamente se tornou discípulo deste. Impressionado com as histórias do mestre, entregou o coração para o Mestre do mestre, sendo-Lhe fiel até seu último suspiro.

Policarpo morreu com 86 anos. Desde sua conversão, viveu para Cristo. Viveu com a lamparina levantada bem no alto, até que seus opositores o queimaram em praça pública.

Ele foi como que uma ponte. Ouviu de João e contou o que de João ouviu. Passou para a geração seguinte muitas coisas que ouviu a respeito de Jesus, de Seu ministério, e de Seus discípulos. Coisas que não foram escritas no Novo Testamento, e que serviram para firmar a igreja verdadeira na boa interpretação da Bíblia.

O que sobrou dele? Bem, por enquanto, sobrou só a sua história. Sobrou apenas seu testemunho, a sua memória. Em breve, porém, depois de chamado de seu descanso, vai sobrar o tempo eterno para contar a João o que ele fez com a lamparina que dele havia recebido, e contar os frutos que vieram nas gerações seguintes.

Policarpo, um homem que permaneceu firme “em defesa da verdade”, no início da perseguição pós-discípulos. Grande Policarpo!

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DomingoPerseguidos, mas triunfantes.

Então, já manifestando apostasia em seu início, a igreja de Roma começou a trilhar rumo aos tempos proféticos. Tendo começado a se afastar da verdade verdadeira, mesmo chamando o Senhor de Senhor, partiu ferozmente em perseguição contra aqueles que permaneceram fiéis ao Senhor. Sua apostasia e governança arbitrária só se intensificaram, fato antecipadamente revelado nas Escrituras, nos Livros de Daniel e Apocalipse.

Esse “falar antes o que vai acontecer” é chamado de “profecia”. Tudo já estava “profetizado”. A cortina fora tirada, e o futuro, visto.

Três diferentes expressões foram usadas pelos profetas para alertar os fiéis quanto ao início e duração do tempo dessas arbitrariedades romanas. São elas: um tempo, mais dois tempos, e mais metade de um tempo; 42 meses; e 1.260 dias.

Decifradas as expressões, compreendemos se tratar de 1.260 anos de feroz perseguição, iniciada a partir do ano da queda do último dos três chifres (visigodo, vândalo e ostrogodo), em 538. (Lições mais adiante voltarão a abordar esses cálculos).

Poderíamos aqui, e agora, falar horas e horas sobre as torturas que esses “falsos cristãos” impuseram aos verdadeiros cristãos, mas, em vez disso, vamos dar preferência em falar dAquele que é Fiel o tempo todo. Os Seus olhos já haviam visto antecipadamente esse período, e as Suas mãos já haviam tomado as devidas providências para que a Sua verdadeira igreja pudesse suportá-lo. Ele disse que haveria (e houve) um lugar preparado para “alimentar” e “sustentar” a Sua amada igreja. Usando a história de Elias, diríamos que Deus já havia preparado um lugar chamado Querite, um lugar chamado Sarepta.

A questão é: Que lugar é esse? Qual foi o alimento que alimentou a igreja de Deus? O que sustentou a igreja nesse tempo, diante das atrocidades de Roma? Será que foi uma Bíblia guardada na gaveta? Será que foi uma Bíblia empoeirada ao lado de outros livros na estante da sala? Não. Isso teria provocado inanição, e a faria aceitar o que o sistema papal estava oferecendo. O que sustentou a igreja de Deus durante 1.260 anos foi uma Bíblia lida, estudada, memorizada e obedecida.

Ninguém nos alerta sobre a realidade do grande conflito, a não ser a Bíblia; e ninguém nos sustenta durante o grande conflito, a não ser a própria Bíblia.

Irmãos, leiam a Bíblia. Leiam a Bíblia. Sejam fiéis estudiosos da Bíblia! Ela é o único maná que vocês podem colher dobrado diariamente. É o único maná com hora-extra: pode ser colhido sábados e feriados.

Achadas as tuas Palavras, logo as comi. As tuas Palavras encheram o meu coração de júbilo e de alegria” (Jeremias 15:16).

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SegundaA luz vence a escuridão.

Uma expressão comum na Bíblia é “falso profeta”. De longa data há conhecimento sobre a vinda desse sujeito. Jesus deu um segundo nome para ele: “lobo com roupa de cordeiro”.

Esse falso profeta recebeu aula de um professor. Um professor que foi expulso do Céu. Esse falso profeta aprendeu muito com esse professor. Desde o maternal até o pós-doutorado. E, esse falso profeta, passo por passo, acabou invadindo a igreja e dela se apossando. Resultado: falsas doutrinas foram incorporadas na igreja, a ponto de banir as Sagradas Escrituras; de queimá-la; de proibi-la. Ele tirou a luz, e trouxe as trevas. Ele patrocinou as mais densas noites da história do cristianismo.

Teria Deus perdido o conflito para o professor e seu aluno? Não. Deus não perdeu. Sempre houve luz nesses tempos de escuridão. Deus sempre teve os Seus iluminados. Ele nunca deixou de ter Suas testemunhas da verdade. Deus também tinha os Seus alunos. O remanescente fiel sempre se fez presente. Realmente Deus cuidou dos Seus por toda a idade média, e eles mantiveram a luz acesa durante as longas noites impostas pela igreja romana, e essa luz está em nossas mãos hoje.

No mesmo Livro das profecias, está escrito: “Lutarão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; serão vencedores também os chamados, eleitos e fiéis que estão com o Cordeiro” – “Sejam fiéis até a morte, e Eu lhes darei a coroa da vida” – “Conservem o que vocês têm, para que ninguém tome a sua coroa” (Apocalipse 17:14; 2:10; 3:11).

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Terça Coragem para permanecer em pé.

Durante a idade média, dentre as histórias de verdadeiros heróis que mantiveram a lâmpada acesa e levantada, temos as de Pedro Valdo e seus valdenses.

Irmãos, eles faziam cópias da Bíblia à mão. Enquanto temos a Bíblia no papel e no celular, e em todos os idiomas entendidos, eles faziam cópias à mão! E, sabendo da possibilidade de serem apreendidas, eles as memorizavam. Confrontados com os poderes do professor do falso profeta, eles defendiam a verdade à custa de suas vidas.

Os valdenses são reconhecidos pela História. Por sinal, não só de católicos vive a História dos imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Muitos eram valdenses de sangue e fé, membros da Igreja Metodista em diversas cidades gaúchas.

Na cidade de Worms, Alemanha, no Memorial Martinho Lutero, há uma estátua de Pedro Valdo (1140-1218), sentado, com a Bíblia aberta, escorada em seu colo, e olhando e falando para o mundo, com o dedo apontando um texto bíblico, como que dizendo: “Está escrito”. Qual a razão dessa homenagem? A razão é que Lutero deixou escrito que Pedro Valdo foi o seu grande inspirador, o seu influenciador. Essa estátua está lá para que todos se lembrem de um homem simples que amou a Cristo e a Sua Palavra. E em Torre Pellice, Itália, sua história é preservada no Museu dos Valdenses.

Por falar em Pedro, o Pedro apóstolo nos deixou esta pérola: “Sejam sóbrios e vigilantes. O inimigo de vocês, o diabo, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar. Resistam-lhe, firmes na fé, certos de que os irmãos de vocês, espalhados pelo mundo, estão passando por sofrimentos iguais aos de vocês” (1Pedro 5:8 e 9).

Eu me encorajo quando leio a história dos nossos irmãos de tempos antigos, assim como com o testemunho de cada um de vocês, irmãos da igreja atual. Quando nos encontramos na igreja, o lugar preparado por Deus para sermos alimentados e sustentados, vocês e suas histórias me proporcionam “coragem para permanecer em pé”.

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Quarta A estrela da manhã da Reforma.

O inglês John Wycliffe (1328-1384) – apelidado de a estrela da manhã da Reforma – viveu num período conturbado da Igreja Católica. Num determinado momento, havia dois papas. Um em  Avignon, França, e outro em Roma. Sendo assim, por um tempo, as trevas tinham não somente um, mas dois apagadores de luz. E o professor Wycliffe aproveitou a luta política que existia entre os dois e propôs algumas reformas, sendo que a principal era: “A verdadeira autoridade emana da Bíblia”. (Querem saber se foi aceita? Não, não foi aceita).

Nesse tempo, a Bíblia estava disponível em apenas três idiomas: o hebraico (Bíblia Judaica); o grego (a Septuaginta); e o latim (a Vulgata).  Wycliffe, então, fez a tradução do latim para a língua inglesa. A primeira Bíblia em idioma entendido pelas pessoas comuns de seu país. Resultado: a Igreja Católica deu para ele o título de herege.

Não foi levado para a fogueira. Morreu doente, aos 56 anos de idade. Mas, 30 anos depois de sua morte, para mostrar quem mandava (e desmandava), o papa ordenou a busca de seus restos mortais, e os queimou, e jogou as cinzas num rio. Resultado: assim como as cinzas foram levadas rio abaixo, as sementes da Reforma foram juntas, e se espalharam, e, 99 anos depois, Martinho Lutero nasceu para dar início a grande Reforma Protestante.

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QuintaAnimados pela esperança.

A Lição citou alguns nomes: o tcheco João Hus (1373-1415); o tcheco Jerônimo de Praga (1379-1416); o inglês William Tyndale (1484-1536); e o inglês Hugh Latimer (1487-1555).

Os dois primeiros, juntamente com Wycliffe, citado na Lição de quarta, e Pedro Valdo, citado na terça, são pré-reformistas. São anteriores a Martinho Lutero (1483-1546). Serviram de inspiração para o pai da Reforma.

Desse período pré-Reforma, mais pessoas poderiam ser lembradas. Um sujeito admirável, não citado na Lição, foi o alemão Johannes Gutenberg (1400-1468). Não foi teólogo, não propôs mudanças no catolicismo, mas foi o Elon Musk de antigamente, imprimindo em gráfica o que até então era feito na mão. Suas primeiras impressões foram de Bíblias (nos anos 1450/1455), e isso deu um oxigênio para os que iniciaram a Reforma, uns 60 anos depois.

Os dois últimos citados são do tempo de Martinho Lutero.  Tyndale e Latimer ajudaram a Reforma Protestante na Inglaterra.

Bem, a Lição deu destaque ao primeiro citado: João Hus. Esse homem fez muito pelo seu povo. Pensando bem, fez muito até por nós também, pois nos deixou um legado de honra, de determinação pela obra de Deus. Esse homem morreu nas chamas da Inquisição, com a idade de 42 anos, enquanto a supremacia papal estava com quase 900. Morreu cantando um hino que dizia “Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim”.

O que será que se passava na cabeça dele? O que será que se passava na cabeça dos demais mártires? Não se importavam com a sentença, não se importavam durante a execução da sentença.  Morriam na fogueira, mas morriam em paz. Que impressionante!

Irmãos, em breve esse tempo de perseguição voltará. Mas logo depois dele, voltará o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, em glória e majestade. Essa é a esperança do cristão!

Vale a pena olhar a História. “Nada temos a temer quanto ao futuro, a não ser que nos esqueçamos como Deus guiou nosso povo no passado”.

Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois Quem fez a promessa é fiel” (Hebreus 10:23).

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Deus nos abençoe.

Carlos Bitencourt / Ligado na Videira

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Comentário da Lição da Escola Sabatina 2024 / Lição 3 – A luz brilha na escuridão

Escuridão. Trevas. Doutrinas não bíblicas. Falsos ensinos. A igreja se deixou ser minada pelo inimigo. Isso não foi porque uma barragem se rompeu e inundou tudo repentinamente. Foi a conta-gotas. Um pingo aqui, outro ali, outro mais adiante. Quando viu (se é que viu), estava encharcada. Não conseguiu mais ler a Bíblia com os óculos do Espírito Santo.

Atualmente, todas as suas falsas doutrinas estão diante dos olhos da humanidade. Não só o “domingo”. Várias e várias! Mas, se alguém me disser: “Nessa história de domingo eu não embarco”, eu respondo: “Meus parabéns! Muito ótimo para você!” Mas, e se esse alguém embarcar no desinteresse pela leitura individual da Palavra de Deus? Equivale a ficar nas trevas ou não? E se essa pessoa permanecer na leitura, mas fazendo uso da razão humana?

A Lição é sobre isso e um pouco mais. E nós, aqui, fazemos pequenas considerações a respeito. Mas as fazemos desejando que todos vocês façam as suas também. Destaquem as palavras-chave. Expliquem as questões de princípio. E motivem seus ouvintes a terem gosto pela leitura da Palavra de Deus. Diante do grande conflito, mais da Palavra de Deus! Mais e mais! [Leia uma Meditação Matinal de Ellen White para hoje – clique aqui]

SábadoA luz brilha na escuridão.

Olhando cronologicamente para as Igrejas do Apocalipse, a primeira foi Éfeso, a igreja dos tempos apostólicos; a igreja iniciada por Jesus e continuada pelos primeiros cristãos. Sua fase acabou por volta do ano 100. Depois vieram outras duas: Esmirna (100-313) e Pérgamo (313-538). A Lição desta semana abordou coisas relacionadas ao período destas duas. Mostrou as ações do inimigo contra a igreja de Deus nessas décadas. Mostrou as suas más intenções. E mostrou sua vitória relativa e temporária. No entanto, a Lição também mostrou a constante obra de Jesus em favor daqueles que Lhe permaneceram fiéis.

A serpente se agigantou, é verdade. Virou dragão. Continuou mentirosa, e externou mais ainda seu desejo destruidor. Percebendo ser difícil levar a igreja para o erro, mudou de tática, e trouxe o erro para dentro da igreja.

Do meio para o final do segundo parágrafo de sábado, está escrito: “O erro inundou a igreja à medida que os líderes misturavam as verdades das Escrituras com os costumes populares. O 4º e o 5º séculos foram épocas de concessões, quando prelados da igreja misturaram práticas pagãs com ensinamentos cristãos”.

Primeira coisa: O que é “prelado”? Prelado é o pastor; é o padre; são os líderes da igreja (da prelazia).

Segunda coisa: Não vamos cair na cilada de usar a Lição para chicotear alguém em particular. O certo mesmo é entender que erros foram cometidos no passado, institucionais ou não, propositais ou não, e erros continuarão sendo cometidos, mas, a Lição é sobre os que permaneceram fiéis. É sobre “como permaneceram fiéis?”

A Lição é sobre Deus agindo em favor de Sua “verdadeira” igreja, e essa verdadeira igreja se agarrando à ajuda vinda do Céu (a Bíblia). É sobre um remanescente que nos deixou um legado maravilhoso, que é o conhecimento claro a respeito do Plano da Redenção.

A luz “brilhou” na escuridão!

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DomingoConcessões: a estratégia sutil de Satanás.

Quando orou por nós, Jesus pediu ao Pai: “Santifica-os na Verdade; a Tua Palavra é a Verdade” (João 17:17).

A Palavra da verdade diz: Um poder terreno será usado pela serpente, e esse poder terreno vai dizer que tem algo novo vindo da parte de Deus. E, para que a igreja aceite que vem de Deus, sendo que na verdade não vem, ela (a igreja) não deverá estudar a Palavra de Deus.

Irmãos, basta uma única concessão. Basta não estudar a Bíblia. Só essa concessão. E as outras virão na mochila, de graça.

De longa data, o inimigo vem aplicando seu golpe; vem solapando a verdade. Na lábia, ele conquistou um terço dos anjos. Depois, da mesma forma, conquistou a metade da humanidade. Essa metade, por sua vez, completou o serviço pra ele, conquistando a outra metade. E tudo isso por não ser dada atenção e respeito à Palavra de Deus.

Lembrem-se: os anjos eram perfeitos; nossos pais eram perfeitos. Isso é sinal de que a lábia do mentiroso é muito sutil! Enquanto a verdade só se apresenta de maneira completa e real, a mentira varia de tamanho, forma e aparência. Quando lhe convém, chega a usar partes da verdade. Por sinal, nem se incomoda se for chamada de verdade. Para ela, basta que a porta seja aberta. E uma vez aberta, ela entra, ceia com a igreja, e se abanca de tudo. A mentira é um poder tremendo!

Certa vez, o irmão Aquiles mostrou só o calcanhar para o inimigo. O inimigo se aproveitou, e não deixou o irmão ficar nem pra contar o fim da história. O irmão Aquiles já era!

Mas, porém, e ainda bem, a mentira pode ser detectada; a mentira pode ser identificada; e a mentira pode ser vencida. Jesus nos deixou exemplo disso. Ele a venceu. E Ele quer que sejamos vencedores assim como Ele foi. Para isso, devemos fazer o que Ele fez: estudar a Palavra da Verdade – ter na garganta o “assim diz o SENHOR” – ter na ponta da língua o “está escrito”.

Diz um famoso verso bíblico: “O Meu povo perece porque lhe falta conhecimento”.

Reparem: não lhe falta “informação” – o que lhe falta é “conhecimento”. A informação foi dada. Está escrita. Precisamos é conhecê-la. Precisamos colocar a Palavra em cima da mesa, abri-la, e estudá-la. Feito isso, conheceremos a Verdade, e a Verdade nos libertará.

*Vale a pena ler em classe o que está escrito abaixo da pergunta 2. É um precioso parágrafo extraído do livro O Grande Conflito.

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SegundaLobos vorazes.

A Lição de segunda foi muito bem escrita. Nenhuma palavra difícil. Tudo simples, claro e direto.

Por capricho, um adendo de nossa parte: “Apostasia” significa se afastar, se separar, abandonar. No sentido religioso, está em apostasia a pessoa que adota crenças não bíblicas; a pessoa que se afasta da verdade pura.

Geralmente, falamos que está em apostasia a pessoa que saiu da igreja, que abandonou a igreja, que não frequenta mais a igreja. Isso está certo, mas não é só isso. Já está em apostasia aquele que aceita doutrinas que não estão escritas na Palavra de Deus, mesmo continuando na igreja, mesmo chamando o Senhor de Senhor.

A característica marcante do apóstata é arrastar a terça parte da igreja com ele.

Porém, para o contexto das profecias apocalípticas, e da Lição, estamos considerando não o apóstata “indivíduo”, mas o apóstata “igreja”. O poder religioso que permitiu a entrada da mentira, e a promove. O animal que, de tão terrível, chega a ser espantoso. Que se faz de cordeiro, mas é lobo. Lobo voraz!

Através da igreja apostatada, o inimigo articula com o mundo. Monta em cima, manda e desmanda. Mas a Bíblia não nos deixa no escuro quanto a isso. Ela explica, e ela mostra o caminho certo.

Abram suas Bíblias em Atos 20:27-32 e 2Tessalonicenses 2:7-12. Esses textos merecem ser lidos. Leiamo-los!

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Terça Protegidos pela Palavra.

O inimigo tentou fazer com que a Bíblia não fosse copiada e distribuída. Perdeu. Depois, já que foi copiada e distribuída, que fosse queimada. Perdeu também. Então, trouxe para o pensamento do leitor bíblico uns pensamentos que não são os pensamentos do Senhor; umas interpretações que não são as dirigidas por Deus. Trouxe o iluminismo, o humanismo, o positivismo, o relativismo. Resultado: apostasia.

O título da semana é “A luz brilha na escuridão”. O desenhista me desenhou com a Bíblia na mão, sendo esta a lanterna que clareia o meu caminho. Diante de mim, reparem, há dois caminhos. Um é largo, e me leva para o abismo. O outro, estreito. Ele devia ter me desenhado já no caminho estreito, mas, sabendo que isso me induziria ao orgulho santo, deixou do jeito que está para ver como fica.

Irmãos, um dia nós conheceremos os heróis anônimos que deram a vida para que a Bíblia continuasse em nossas mãos. Eles escolheram o caminho estreito, e morreram na missão de preservar as Sagradas Escrituras. Seus nomes não ficaram registrados em placas e monumentos, mas todos eles são conhecidos do SENHOR. Seus nomes estão escritos num lugar melhor – estão escritos no Livro do Cordeiro, o Livro da Vida. E Cristo já deixou dito que para eles estão reservadas umas moradas totalmente mobiliadas na nova Jerusalém.

Lâmpada para os nossos pés é a Palavra do Senhor. Os heróis não deixaram essa lâmpada escondida embaixo do sofá. Não, não! Eles a colocaram bem no alto, e por isso andamos no caminho iluminado até hoje.

Trinta anos atrás, o conjunto musical Tom de Vida cantava um hino que dizia: “Faça da Bíblia o seu guia, e encontrará a libertação”. Aceitam um conselho? Se sim, dediquem tempo ao estudo da Bíblia. Se não, continuem dedicando tempo ao estudo da Bíblia. Faça da Bíblia o seu guia!

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Quarta Raciocínio humano separado das Escrituras.

Os meios de comunicação estão nos ensinando a ser questionadores. Tudo virou motivo para questionarmos. E achamos que sempre temos razão.

Bem, essa mania de questionar entrou na igreja. Questionamos o mundo, questionamos a igreja. E sobrou até para a Bíblia. Até a Bíblia é questionada! Um Livro que atravessou séculos. Um Livro que suportou perseguições jamais feitas a pessoas ou objetos. E, mesmo assim, o Livro mais vendido de todos os tempos. Mas, hoje, até a Bíblia é questionada.

Uns selecionam as partes que gostam, que acham interessantes, que aceitam como corretas, e simplesmente descartam as demais. Uns relativizam um texto, e supervalorizam outro. Uns acham assim; outros, assado. E agora tem uns que acham frito. Uns querem respostas para suas perguntas. Outros fabricam perguntas para respostas que dizem já possuir.

Irmãos, Deuteronômio 29:29 diz que “as coisas encobertas pertencem a Deus, mas as reveladas pertencem a nós”. O questionador, instigado pelo sutil enganador, quer porque quer entender as coisas encobertas, e não quer nem saber das que estão reveladas. Não obedece o que não sabe, e não obedece o que sabe.  Não obedece nada! Não sabe a fórmula da Coca-Cola, mas quer saber as coisas insondáveis de Deus. E o pior: sai por aí dizendo que sabe!

Hoje está em moda filmes, séries e novelas “baseadas” na Bíblia. Há quem ache a coisa mais linda do mundo. Dizem estar aprendendo muito. Não caiamos nessa, irmãos! Há uma vida eterna em jogo!!! Estão trocando o centro revelador. Estão dizendo que não é o Céu que revela, mas a cabeça de “artistas”. Não o Infinito, mas o finito. Não Aquele que sabe o fim desde o início, mas aquele que nem sabe que dia é hoje.

O inimigo continua aumentando seu leque de opções. Sempre tem um ventinho novo soprando.

Cuidado com Hollywood e com a Recorde, irmãos! Não se iludam! O que eles oferecem se chama “ide e pregai o evangelho a todo o mundo”, mas vocês fazem ideia que evangelho é esse? Imaginam quem é o prelado deles?

Lembrem-se: com o conta-gotas, eles ensinam o espiritismo, a vida após a morte, o inferno, o arrebatamento secreto, o sensualismo e erotismo entre os personagens bíblicos, um fim apocalíptico sem a proteção de Deus, e uma lista de eteceteras e eteceteras. E o gosto pela leitura da Bíblia vai para o beleléu.    

Essa história de cigarro sem nicotina, de cerveja sem álcool, e de aprender a Bíblia sem Bíblia, não vai dar certo!

Cuidado, irmãos! Não se iludam! [Leia uma Meditação Matinal de Ellen White para hoje – clique aqui]

QuintaBatalha pela mente.

Depois da pergunta 7, no meio do primeiro parágrafo, está escrito: “A principal obra de Satanás é cegar ou obscurecer a mente das pessoas”. Como será que ele faz isso, já que ele não lê pensamento?

Simples. Não lê pensamento, mas faz a gente pensar o que ele quer que pensemos. Sugere coisas. Coloca sons e imagens na frente. Força a entrada de coisas que não prestam. Domina. Cega. Obscurece. Resultado: cada vez temos menos gosto pelas coisas de Deus. Cada vez mais afastados das coisas de Deus. Até que acontece o desinteresse completo.

Nossa mente, irmãos, é o palco do grande conflito. Então, mais Bíblia dentro dela, irmãos! Mais Bíblia!

No livro Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 158, está escrito: “Pela alma de todo homem lutam anjos bons e anjos maus. É o próprio homem que determina qual deles ganhará”.

Não é na sombra de uma árvore proibida, mas é dentro da nossa mente que se decide quem será o vencedor do conflito entre o bem e o mal. E somos nós que vamos decidir quem será o vencedor. Nós!

Na mente de Jesus também passou uma questão, e Ele teve que decidir. Sabem qual foi a decisão dEle? É lógico que sabem! Mas eu vou repetir mesmo assim: Ele Se decidiu por nós.

Combaterão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, porque é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis. Vencerão os que estão com Ele, chamados, eleitos e fiéis” (Apocalipse 17:14).

Deus nos abençoe.

Carlos Bitencourt / Ligado na Videira

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Comentário da Lição da Escola Sabatina 2024 / Lição 2 – A questão central: amor ou egoísmo?

A Lição mudou, e essa mudança precisa ser identificada. A Lição mudou do Céu para o Éden – e do Éden para Jerusalém.

Semana passada, vimos que o pecado foi inexplicavelmente criado por um anjo lá no Céu, e que de lá ele foi expulso, vindo depois para o Éden, e que nossos primeiros pais, infelizmente, desobedeceram a Palavra de Deus.

No entanto, no mesmo momento em que nossos pais se tornaram pecadores, felizmente, o Senhor Jesus Cristo Se posicionou como nosso Salvador. Foi instantâneo. Não poderia haver, e não houve, nem um milésimo de segundo de desligamento. Adão deu a primeira mordida, e, junto com a mordida, o Plano da Redenção entrou em vigor.

Um famoso hino diz assim: “Oh que amor glorioso, preço tão grandioso que Jesus por mim pagou na cruz!

Bem, do Éden, a Lição pula direto para a Jerusalém dos tempos de Cristo. Essa é a mudança que a Lição faz. Mudança abrupta, rápida. Do Éden para a Jerusalém “destinada” à destruição. Para a Jerusalém que vai viver seus últimos anos sabendo que não lhe restará pedra sobre pedra.

Permita-me explicar o significado de “destinada”.

Deus sabe de tudo. Ele sabe o futuro. Ele sabe o fim desde o início. Porém, o Seu saber não é “causativo”. O Seu saber não é a causa, não é a razão, não é o motivo de as coisas acontecerem do jeito que acontecem. As coisas acontecem porque nós fazemos uso do livre-arbítrio que temos. Sendo assim, saber e até falar que determinada coisa vai acontecer não faz de Deus o causador desse acontecimento.

O fato de Jesus declarar a destruição de Jerusalém não significa que Deus a destinou a isso, mas que, por Ele saber as consequências das ímpias ações que estavam sendo praticadas, sabia também quais seriam os resultados. Isso é fácil de entender quando voltamos nosso olhar para a Jerusalém dos tempos do idoso Jeremias e do jovem Daniel. Foi falado, foi falado, foi falado, mas os judeus continuaram, continuaram e continuaram no caminho da desobediência, se afastando cada vez mais da proteção de Deus, até que veio o leão que ruge, e os devorou, levando-os para o cativeiro.

Voltando, a Lição deu esse pulo, e vai ser assim daqui pra frente. Do Éden direto para Jerusalém, direto para a igreja cristã em formação, para a perseguição, para a destruição da cidade, e assim por diante. O autor nos faz passear pelo tempo das igrejas do Apocalipse.

Vejam a importância de saber como a Lição começa, se desenvolve e termina. Vejam a importância de destacar e explicar determinadas expressões. Nós precisamos saber e ensinar a razão da nossa fé.

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SábadoA questão central: amor ou egoísmo?

Fomos informados a respeito dos sinais da segunda vinda de Jesus, que, pelo jeito, estão quase que todos diante dos nossos olhos. Só os ignoram aqueles que não estudam a Palavra de Deus – mas essa ignorância não vai lhes poupar de passar pelo que está para acontecer.

Porém, se porventura essas coisas que estão para acontecer amedrontam alguns dos nossos irmãos, a recomendação que damos é: Olhem para a História. (História deve ser estudada por “comparação”). Vejam que a mão de Deus cuidou de todos aqueles que Lhe foram fiéis. Alguns deles foram livrados de sofrimentos imediatos, pontuais. Outros, não. Mas todos foram cuidados por Deus, segundo a Providência de Deus, e uma coroa de glória lhes está reservada.

No Dia da Redenção, o livrado Daniel encontrará o não livrado João Batista. Os poupados três hebreus se encontrarão com o não poupado apóstolo Paulo. Todos eles se encontrarão. E essa é a graça que basta.

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DomingoUm Salvador de coração quebrantado. Quebrantado porque a Jerusalém que deveria ser o lugar de Sua habitação O estava rejeitando. Um Salvador que falou a verdade, e chorou diante dessa verdade. Mas essa tristeza por Jerusalém  não era porque as construções iriam cair. Era porque o Seu povo não queria mais ser Seu povo. Era porque o Seu povo estava, mais uma vez, e definitivamente, rejeitando a Ele, o prometido Messias, o Desejado de todas as nações, Aquele que havia feito uma Aliança com Abraão.

Jesus estava indo para a cruz. Carecia de uma palavra amiga, de uma palavra de conforto. Tais palavras bem que poderiam ser dadas por aqueles que eram Seus. Eles bem que poderiam dizer: “Senhor, vá para a cruz em nosso lugar. Nós precisamos que o Senhor vá. Vai valer a pena! Nós seremos salvos” – Mas esses “Seus” O rejeitaram.

Que tristeza saber que vão perecer aqueles a quem Ele veio salvar. Esse saber é estranho para nós. Imaginem, então, quão estranho foi para Aquele que é Amor o tempo todo.

Depois da pergunta 1, no meio do parágrafo, está escrito: “Devido à rebelião, perderam a proteção do Senhor”. Esse “perderam”, que fique bem claro, não é causado por uma ação de Deus. Deus não Se retirou. Deus não os abandonou. Eles “perderam” porque eles “saíram” da proteção de Deus. Escolheram sair. Usaram o livre-arbítrio de forma errada.

O final do parágrafo é excelente. Antes da pergunta 2, está escrito: “Deus não causou a matança de crianças inocentes. A morte dos inocentes foi um ato de Satanás, não de Deus. Satanás se deleita na guerra, pois ela desperta os piores sentimentos humanos. Ao longo do tempo, tem sido seu propósito enganar e destruir e, depois, culpar a Deus”. (Veja a verdadeira intenção de Satanás – clique aqui).

No rodapé, uma afirmação: “Não julgamos o caráter de Deus pelos eventos que vemos ao redor; em vez disso, filtramos os eventos através do prisma de Seu caráter amoroso, revelado na Bíblia”. Ou seja, não olhamos o desastre primeiro para depois olhar o caráter de Deus. Primeiro, olhamos para o caráter de Deus.

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Segunda Cristãos providencialmente preservados.

Os cristãos que permaneceram atentos aos sinais dados por Jesus “continuaram” na proteção de Deus, e escaparam do cerco romano no momento exato da Providência Divina.

Felizes os cristãos que irão para o tempo de angústia. Serão chamados de os 144 mil. Isso é um privilégio! Adquiriram azeite para suas lâmpadas enquanto a mercearia estava aberta, e não farão o caminho de angústia pelo lado escuro. Estão habituados a ouvir a voz do Pastor, por isso reconhecerão a voz do Pastor. E quando o Pastor lhes disser “este é o caminho”, eles vão andar pelo caminho indicado.

Na pergunta 3, a respeito do cuidado de Deus, é citado o Salmo 46. Saibam que esse é o “Salmo de Lutero”. É o Salmo que ele repetia todos os dias, e que fundamentou a inspiração para o seu famoso hino “Castelo Forte”.

Depois, no meio do parágrafo seguinte, está escrito: “Embora às vezes Ele altere Seus planos com base em nossas escolhas”. Compreendo o que isso significa, mas prefiro dizer que Ele não altera. E em vez de dizer “planos”, prefiro dizer “ações”. Ele não altera Suas ações. O que ocorre é que Ele tem ações múltiplas, apropriadas para cada uma das nossas necessidades, e usa aquela que o nosso momento precisa, aquela que se faz útil no momento exato. Deus nunca é pego de surpresa. Tem setenta vezes sete maneiras de agir.

Na pergunta 4, é dito que “Deus permite que alguns sofram e até morram como mártires pela causa de Cristo. Esse fato contradiz a ideia da proteção de Deus?” Não, não contradiz. Não contradiz porque a morte entrou por Adão, e, por ele, a todos nós. O “é certo que morrerás” é certo mesmo. Tem escapatória não. Isso é reforçado com a expressão “o mundo jaz no maligno”. Este mundo é “o império da morte” (Hebreus 2:14).

Porém, vejam que está escrito “pela causa de Cristo”. Sendo pela causa de Cristo, bem-aventurados os que sofrem! E a tais bem-aventurados está garantida a primeira ressurreição. Eles verão Cristo voltando em glória e majestade.

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TerçaFiéis em meio à perseguição. Esse título me fez lembrar de Abel. Abel morreu em paz. Morreu da melhor maneira que alguém pode morrer: morreu fiel. É o primeiro na galeria dos heróis da fé.

Enquanto alguns podem debochar dos cristãos que são perseguidos e mortos, como se tivessem sido abandonados por Deus, nós temos o privilégio de enxergar a Providência Divina sendo executada. Primeiro porque sofreram e morreram fiéis, tendo uma ressurreição lhes esperando. Segundo, porque antes de morrerem, tiveram que fugir, e, na fuga, levaram o evangelho a todo o mundo – primeiro em Jerusalém, depois na Judeia, e em Samaria e, finalmente, nos confins da Terra. Morreram cumprindo a ordem do Evangelho. No caso de Abel, seu testemunho de fidelidade é pregado até os dias de hoje. Já beneficiou muitas e muitas pessoas.

Onde o inimigo cortava uma árvore, nascia uma floresta.

No rodapé, uma excelente pergunta: “O que a igreja do fim dos tempos pode aprender com a igreja primitiva?

Não somos chamados a provocar sofrimentos, mas quem dera lembrássemos que durante os nossos sofrimentos o nosso Senhor está conosco! Quem dera lembrássemos que naquele glorioso Dia, diante do nosso Salvador, os nossos sofrimentos serão como se nada fossem!

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QuartaCuidando da comunidade.

A igreja cristã, pelo mesmo motivo das perseguições, logo deixou de frequentar as sinagogas. Com isso, seus encontros e cultos passaram a ser nas casas, em pequenos grupos. Naturalmente, isso proporcionou um conhecimento maior das necessidades que lhes eram comuns, e, por conseguinte, resultou em ajuda mútua.

A primeira geração, talvez por ter presenciado o ministério de Jesus, mas com certeza pelo testemunho dos líderes que haviam sido Seus discípulos, começou a praticar na igreja o sistema de apoio espiritual e material aos irmãos em dificuldades. Na verdade, resgatou os ensinos do Velho Testamento – ensinos que os judeus infelizmente haviam deixado de lado.

Dada a perseguição, os cristãos perdiam seus empregos, suas contas bancárias, as suas propriedades. Mas na igreja eles encontravam o suprimento. Tudo lhes era em comum.

Saibam os irmãos que em alguns países o evangelismo sofre fortes restrições. Saibam, porém, que isso não faz nossos irmãos ficarem de mãos atadas. A igreja tem ido adiante, tem avançado. A igreja tem trabalhado através do testemunho do amor fraterno, a começar entre os próprios membros, e deles para a comunidade. Isso é chamado de “pregar o evangelho” e “viver o evangelho”. (Eu recomendo: Envolvam-se com as Dorcas/ADRA/ASA. Excelente frente de trabalho!).

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Quinta Um legado de amor.

Reparem que a Lição deu mais um salto no tempo. Estava em Jerusalém antes da destruição, no ano 70, e agora, na Lição de hoje, pula para a igreja dos anos 100 e 200. (Pelas igrejas do Apocalipse, de Éfeso para Esmirna).

Os discípulos de Jesus morreram. O último livro bíblico havia sido escrito no ano 90. A igreja agora é dos bisnetos e tataranetos da primeira geração, lhe tendo sido acrescentada milhares de conversos. De onde vieram esses conversos? Somente dos estudos bíblicos? Não. Vieram também como resultado do amor que a igreja manifestou a eles diante das calamidades que passaram. A sociedade “viu” o amor que existia no coração dos cristãos, e quis fazer parte dessa igreja.

Judeus e estrangeiros foram convertidos. Governados e governantes foram convertidos. O cristianismo impactou a sociedade da época.

Irmãos, no coração em que Deus governa, há amor. No coração em que Deus é destronado, o amor vai embora, e prevalece aquilo que o homem é: egoísta. Eis portanto a questão central do grande conflito.

Mais uma vez, lembramos nossos leitores: nossa intenção não é que vocês copiem ipsis litteris esse Comentário. (Nem sei o que é ipsis litteris). Queremos é ser úteis a vocês, estudiosos da Lição. Queremos é que vocês percebam uma linha de raciocínio, anotem as palavras-chave, e façam a recapitulação em classe do jeito que lhes é próprio.

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Deus nos abençoe.

Carlos Bitencourt / Ligado na Videira

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Comentário da Lição da Escola Sabatina 2024 – O Grande Conflito / Lição 1 – A guerra por trás de todas as guerras.

Toda construção deve começar certinha já no primeiro tijolo. Se começar errada no início, vai dar problema lá na frente.

Por que começo assim este Comentário? Começo assim para chamar a atenção de alunos e (principalmente) de professores da Escola Sabatina. Comecem dando uma boa olhada em todos os títulos e subtítulos do trimestre. Saibam como a Lição começa, como se desenvolve, e como termina. Saibam onde o autor está e aonde quer chegar, e cheguem junto com ele.

Quanto ao autor, é o famoso evangelista Mark Finley. E sendo ele, não esperem uma Lição muito acadêmica, muito teológica, como se fosse um professor na sala de aula. É da natureza de Mark Finley escrever de forma mais pastoral, pois ele é um pregador de púlpito.

Outra coisa que precisamos prestar atenção é ao fato de os escritos originais do autor passarem pelas mãos de uma equipe que os transformam em Lição. É daí que surgem as divisões por dias e as perguntas.

Quanto as perguntas, tomem muito cuidado. As perguntas numeradas têm passagens bíblicas para apoio, e são esclarecidas no parágrafo seguinte, mas as perguntas de rodapé e as de sexta-feira (para consideração) são livres, e pode ser que aí more o perigo. O achismo tende a prevalecer nesses casos. E cabe, principalmente ao professor, responder tais perguntas em conformidade com a teologia adventista. Que não fiquem especulações ou dúvidas.

Por falar em “teologia adventista”, recomendamos a aquisição e estudo do volume 9 da coleção “Comentário Bíblico” (Série Logos). Esse volume 9 é chamado de “Tratado de Teologia”. De nota zero a dez, nota mil.

Também, destaquem os princípios básicos da Lição. Expliquem bem esses princípios. Que eles fiquem claros na mente de vocês e de seus ouvintes.

Bem, este primeiro Comentário ficou longo. Foi preciso construir uma ideia inicial, o que demandou muitas palavras. Porém, nossa intenção não é que vocês copiem e repitam em suas classes exatamente tudo o que está aqui. Peguem a ideia. Peguem a linha de raciocínio. Anotem em suas lições as palavras-chave, e desenvolvam os argumentos de vocês. Porém, que prevaleça a lembrança de não deixarem a construção começar errada.

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Lição 1 – A guerra por trás de todas as guerras. Traduzindo: O mal que existe por trás de todos os males. O conflito que existe antes dos nossos conflitos. Os bastidores. A queda de um anjo no Céu antes da queda de Adão e Eva no Jardim do Éden.

Como vocês sabem, são cinco os livros da série “Conflito dos Séculos”: Patriarcas e Profetas,  Profetas e Reis, O Desejado de Todas as Nações, Atos dos Apóstolos, e O Grande Conflito.

O primeiro livro (Patriarcas e Profetas) começa com estas palavras: “Deus é amor. Sua natureza, Sua Lei, são amor. Assim sempre foi; assim sempre será”.

“Sua natureza” é o Seu caráter. Ele é amor. E a “Sua Lei” é o Seu governo, a Sua maneira de governar. É como Ele age. Como Ele faz. Não há razão de imaginar que Ele aja diferente do que Ele é!

Já o último livro (O Grande Conflito), termina assim: “Desde o minúsculo átomo até ao maior dos mundos, todas as coisas, animadas e inanimadas, em sua serena beleza e perfeito gozo, declaram que Deus é amor”.

Reparem: o “Conflito dos Séculos” começa e termina dentro do IMUTÁVEL princípio de que Deus é amor. Portanto, todas as histórias contadas no meio, com todos os seus milhares de parágrafos, estão amparadas na IMUTÁVEL verdade de que Deus é amor. Sendo assim, entre o primeiro “Deus é amor” e o último “Deus é amor”, lembrem-se: Deus é amor.

Mas Deus também não é justiça? Sim. Também é. Porém, esse “também é” não exclui os Seus demais ETERNOS atributos, Seus IMUTÁVEIS atributos. Jamais façam parecer que o amor elimina a justiça, ou que a justiça elimina o amor. Não permitam que colocações mal colocadas provoquem atrito entre os atributos Divinos. (Divinos com D maiúsculo, pois estamos falando da pessoa, da natureza e do caráter de Deus). Deus é justiça e Deus é amor. Deus é amor e Deus é justiça.

No sábado, a Lição começa com as incômodas perguntas: “Se Deus é tão bom, por que o mundo é tão mau? Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?” Faltou aqui a famosa pergunta: “Onde estava Deus quando deu tsunami?” E faltou também aquela frase famosa que ouvimos nos velórios: “Deus quis assim!”

Vamos recorrer aos escritos do Espírito de Profecia para responder perguntas desse tipo? Diz assim O Grande Conflito, na pág. 36: “A misteriosa providência que permite aos justos sofrerem perseguição das mãos dos ímpios tem sido causa de grandes dúvidas a muitos que são fracos na fé. Alguns decidem até deixar de confiar em Deus por Ele permitir a prosperidade dos homens mais desprezíveis, enquanto que os melhores e mais puros são afligidos e atormentados pelo cruel poder desses opressores. Pergunta-se como pode Aquele que é justo e misericordioso, e que tem poder infinito, tolerar tal injustiça e opressão. Essa é uma questão que não cabe responder. Deus deu suficientes evidências de Seu amor, e não devemos duvidar de Sua bondade por não compreendermos a atuação de Sua providência”.

Irmãos, para perguntas que não temos respostas, o correto é não dar vazão para dúvidas e mais dúvidas. Simplifiquemos tudo, falando afirmativamente: Deus é amor, e sendo amor, vou descansar na certeza desse amor.

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No domingo, Guerra no Céu. Ou seja, uma guerra que começou antes da semana da criação. Uma guerra que começou antes de Gênesis 1.

Um coisa importante: Toda vez que formos falar em “início” do pecado, vamos dar preferência em separar os “tempos”. Se não fizermos a separação, vai dar confusão.

No Céu, dois tempos: um antes e um a partir do pecado. No Éden, também dois tempos: um antes e um a partir da queda de Adão e Eva.

Antes do pecado no Céu, Deus criou todos os anjos. Sendo Deus perfeito, o que Ele criou também era perfeito. Sendo santo, o que Ele criou também era santo. Sendo amor, o que Ele criou também era amor. Ou seja, tudo o que Ele faz é igual ao que Ele é.

O pecado é uma “imperfeição”. Aquele que é perfeito não criou uma imperfeição. Sendo assim, não havia uma imperfeição fora de Lúcifer para que entrasse nele, como também não havia uma dentro dele para que um dia brotasse. Portanto, Deus não criou um anjo imperfeito. Deus não criou Satanás.

Mas, então, como se originou o mal? Resposta: Não tem explicação. É inexplicável. Tentar explicar é tentar dar razão para a sua existência. Nesse caso, o silêncio é ouro. E reparem que a Bíblia faz esse silêncio. Em vez de gastar tempo para explicar o inexplicável, ela revela, explica e comenta apenas o Plano da Redenção. Na Bíblia, Deus está afirmando: “Filhos, o que interessa é o Plano da Salvação!”

Em Deuteronômio 29:29 está escrito: “As coisas encobertas são para o SENHOR, nosso Deus; porém, as reveladas são para nós e nossos filhos”. Pronto! Está resolvido. Fiquemos com as reveladas. É dessas que vamos dar conta. As encobertas pertencem a Deus.

No livro O Desejado de Todas as Nações, na pág. 22, está escrito: “Desde o princípio, Deus e Cristo sabiam da apostasia de Satanás, e da queda do homem mediante o poder enganador do apóstata. Deus não ordenou a existência do pecado. Previu-a, porém, e tomou providências para enfrentar a terrível emergência”.

E na pág. 834: “Antes que os fundamentos da Terra fossem lançados, o Pai e o Filho Se haviam unido num concerto para redimir o homem, se ele fosse vencido por Satanás. Haviam-Se dado as mãos, num solene compromisso de que Cristo Se tornaria o fiador da raça humana”.

É por isso que vai ser escrito na Bíblia, mais adiante, que Cristo é o Cordeiro morto antes da fundação do mundo. Desde antes, a cruz do Calvário já havia sido estabelecida como a solução para o nosso problema, assim como referência para o juízo final.

Mas, na pág. 22, que já lemos, não está escrito que Deus sabia que Lúcifer se tornaria Satanás e que Adão iria comer do fruto proibido? Sim, está escrito. Mas, acrescentemos em nosso dicionário a palavra “causativo” (de causa, de razão, de motivo). O saber de Deus não é causativo. Ele saber o futuro não significa que Ele causou esse futuro, que Ele fez esse futuro.

Falar que um bêbado vai morrer de cirrose não faz do falador o causador da cirrose (e nem da pinga).

Pergunta número 1: “Quando Lúcifer se rebelou, de que maneira Deus poderia ter reagido?” Resposta simples e direta: Ele só poderia reagir em conformidade com o Seu caráter, com a Sua natureza, com os Seus atributos. Ele é perfeito, a Sua reação seria perfeita.

Em Tiago 1:13, está escrito que “Deus não pode ser tentado pelo mal”. Ou seja, Deus não Se modifica em razão do surgimento do mal. O mal não afeta a Sua maneira de pensar e agir. O mal criado por Lúcifer não muda o coração de Deus. Deus não muda!

Mas Ele não poderia destruir o agora Satanás? Respondemos com perguntas: Essa é natureza de Deus? O Seu caráter é de destruição? Sua justiça iria se sobrepor ao Seu amor?

Em O Grande Conflito, pág. 497, está escrito: “Deus, em Sua sabedoria, permitiu que Satanás levasse avante a sua obra” – “Era necessário que seus planos se desenvolvessem completamente, para que sua verdadeira natureza e tendência pudessem ser vistas por todos” – “Antes que se desenvolvesse completamente, o pecado não parecia o mal que em realidade era”.

Nas págs. 498 e 499: “Mesmo quando foi decidido que ele não mais poderia permanecer no Céu, a Sabedoria infinita não destruiu a Satanás” – “Os habitantes do Céu e de outros mundos, não estando preparados para compreender a natureza ou consequências do pecado, não poderiam ter visto então a justiça e misericórdia de Deus com a destruição de Satanás. Houvesse ele sido imediatamente excluído da existência, e teriam servido a Deus antes por temor do que por amor” – “Para o bem do Universo inteiro, através dos séculos sem fim, devia Satanás desenvolver mais completamente seus princípios, para que suas acusações contra o governo divino pudessem ser vistas sob sua verdadeira luz por todos os seres criados”.

Na Bíblia, tempos depois, Jesus disse: “Pelos seus frutos os conhecereis”. Ou seja, o tempo serviria para que o próprio inimigo mostrasse os frutos daquilo que ele mesmo inventou. Por falar nisso, o milênio e a segunda ressurreição vão mostrar direitinho como teria sido o governo de Satanás caso não tivesse sido instituído o Plano da Redenção.

É pensando assim que se conclui e compreende que o mal não se levantará segunda vez.

Na sexta-feira, está escrito que “o poderoso argumento da cruz demonstra a todo o Universo que o governo de Deus não foi, de forma alguma, responsável pela conduta pecaminosa que Lúcifer adotou”.

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Na segunda-feira, Lúcifer engana, Cristo prevalece.

Tendo criado o mal, Satanás não mais obedecia. Se pedido que os incomodados se retirassem do Céu, de boa é que eles não sairiam. Então, houve batalha no Céu.

O importante, porém, é saber que Cristo venceu. Venceu no Céu, e confirmou Sua vitória na cruz do Calvário. Com isso, nós estamos do lado do Vencedor. Apocalipse 17:14 diz assim: “Vencerão os que estão com Ele, chamados, eleitos e fiéis”.

Mas a Lição também fala de “livre-arbítrio”. Aqui, mais uma resposta afirmativa: não é porque tinha livre-arbítrio que Satanás ou Adão tinham que pecar. Basta ver que outros anjos e outros mundos, também com livre-arbítrio, não pecaram.

Sendo Deus perfeito, o livre-arbítrio que Ele nos deu também era perfeito.  Livre-arbítrio não é causa de pecado. Relembrando, não há explicação e nem justificativa para a origem do pecado.

Mas, não foi então a beleza e formosura de Lúcifer que fez ele virar Satanás? Não, não foi. Deus é belo, e tudo o que Ele fez e faz é belo. Não tentemos achar que beleza é causa para origem do pecado.

Veja a primeira parte da pergunta para consideração na sexta-feira. Perceba o perigo de um professor não estar afiado na resposta.

[Leia uma Meditação Matinal de Ellen White para hoje – clique aqui]

Terça: O planeta Terra se envolve. Nosso planeta vira o palco do conflito. O centro da guerra.

Irmãos, a prova de Adão e Eva não era eles irem até a árvore proibida e falar para a serpente que eles não iriam comer daquele fruto. A prova era eles não irem. A prova era obedecer o que Deus disse porque Deus sabe o que diz. A prova era jamais se aproximarem daquele que só pensa em derrubar quem está em pé. 

Certa ocasião, Jesus foi tentado a transformar pedras em pães, e comê-los. Diferente de Eva, que foi até o tentador, com Jesus, o tentador veio até Ele. Porém, Jesus fez o que Adão e Eva deixaram de fazer: Jesus obedeceu a ordem de Deus.

É nisso que Jesus é nosso exemplo! Em depender totalmente da Palavra de Deus! 

E se Eva não tivesse ido até a árvore? Resposta simples: o planeta Terra não teria se envolvido. Não haveria espinhos, e nem sofrimentos, e nem lágrima, e nem morte. E Jesus não teria que passar o que passou. Teríamos poupado o sofrimento de Jesus.

[Leia uma Meditação Matinal de Ellen White para hoje – clique aqui]

Quarta: O amor encontra um caminho. Repetindo, O AMOR encontra um caminho!

Direto ao ponto: Somente na cruz do Calvário é que ficou totalmente entendido quem é Deus e quem é Satanás. Se porventura havia alguma dúvida sobre Deus e se havia alguma simpatia pelo inimigo, na cruz do Calvário tudo ficou completamente desnudado.

Não foi por força, não foi por violência. Não foi por dilúvio, não foi por fogo e enxofre caindo do céu. Deus resolveu tudo unicamente demonstrando o Seu amor, sem que isso implicasse em não usar a Sua justiça.

Foi revelado amor, justiça, e muito sofrimento! A cruz não foi brincadeira não!!!

Por sinal, cabe aqui a pergunta feita pelo apóstolo Paulo, em Hebreus 2:3 – “Como escaparemos nós se não atentarmos para uma tão grande salvação?”

Num determinado momento, muitos seguidores de Jesus O abandonaram. “Então, disse Ele aos doze: ‘Quereis vós também retirar-vos?’ Respondeu-Lhe, pois, Simão Pedro: ‘Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna” (João 6:67-68).

[Leia uma Meditação Matinal de Ellen White para hoje – clique aqui]

Quinta: Nosso Sumo Sacerdote.

“Sacerdote” significa representante, mediador. Então, no contexto bíblico, Jesus veio até nós representando o Pai, e na cruz adquiriu o direito de nos representar diante do Pai. Ele é o nosso Representante! Ele fez a ponte. Ele é o Pontífice! Ele faz a mediação entre nós e o Pai.

O Pai pode nos salvar porque a justiça foi satisfeita por aquilo que Jesus fez. Sendo assim, só temos palavras de gratidão, de gratidão, e de gratidão. E em reação a ação dEle, só podemos nos entregar, nos entregar, e nos entregar.

[Leia uma Meditação Matinal de Ellen White para hoje – clique aqui]

Deus nos abençoe.

Carlos Bitencourt / Ligado na Videira

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Meditação Matinal – para cada dia de 2024

Para 2024 – A Fé pela qual eu vivo – Meditação de 1959:

JANEIRO – clique no dia desejado:
[2ª 1º][3ª 2][4ª 3][5ª 4][6ª 5][7º 6][D 7][2ª 8][3ª 9][4ª10]
[5ª11][6ª12][7º13][D14][2ª15][3ª16][4ª17][5ª18][6ª19][7º20]
[D21][2ª22][3ª23][4ª24][5ª25][6ª26][7º27][D28][2ª29][3ª30][4ª31]

FEVEREIRO – clique no dia desejado:
[5ª 1º][6ª 2][7º 3][D 4][2ª 5][3ª 6][4ª 7][5ª 8][6ª 9][7º10]
[D11][2ª12][3ª13][4ª14][5ª15][6ª16][7º17][D18][2ª19][3ª20]
[4ª21][5ª22][6ª23][7º24][D25][2ª26][3ª27][4ª28][5ª29]

MARÇO – clique no dia desejado:
[6ª 1º][7º 2][D 3][2ª 4][3ª 5][4ª 6][5ª 7][6ª 8][7º 9][D10]
[2ª11][3ª12][4ª13][5ª14][6ª15][7º16][D17][2ª18][3ª19][4ª20]
[5ª21][6ª22][7º23][D24][2ª25][3ª26][4ª27][5ª28][6ª29][7º30][D31]

ABRIL – clique no dia desejado:
[2ª 1º][3ª 2][4ª 3][5ª 4][6ª 5][7º 6][D 7][2ª 8][3ª 9][4ª10]
[5ª11][6ª12][7º13][D14][2ª15][3ª16][4ª17][5ª18][6ª19][7º20]
[D21][2ª22][3ª23][4ª24][5ª25][6ª26][7º27][D28][2ª29][3ª30]

MAIO – clique no dia desejado:
[4ª 1º][5ª 2][6ª 3][7º 4][D 5][2ª 6][3ª 7][4ª 8][5ª 9][6ª10]
[7º11][D12][2ª13][3ª14][4ª15][5ª16][6ª17][7º18][D19][2ª20]
[3ª21][4ª22][5ª23][6ª24][7º25][D26][2ª27][3ª28][4ª29][5ª30][6ª31]

JUNHO – clique no dia desejado:
[7º 1º][D 2][2ª 3][3ª 4][4ª 5][5ª 6][6ª 7][7º 8][D 9][2ª10]
[3ª11][4ª12][5ª13][6ª14][7º15][D16][2ª17][3ª18][4ª19][5ª20]
[6ª21][7º22][D23][2ª24][3ª25][4ª26][5ª27][6ª28][7º29][D30]

JULHO – clique no dia desejado:
[2ª 1º][3ª 2][4ª 3][5ª 4][6ª 5][7º 6][D 7][2ª 8][3ª 9][4ª10]
[5ª11][6ª12][7º13][D14][2ª15][3ª16][4ª17][5ª18][6ª19][7º20]
[D21][2ª22][3ª23][4ª24][5ª25][6ª26][7º27][D28][2ª29][3ª30][4ª31]

AGOSTO – clique no dia desejado:
[5ª 1º][6ª 2][7º 3][D 4][2ª 5][3ª 6][4ª 7][5ª 8][6ª 9][7º10]
[D11][2ª12][3ª13][4ª14][5ª15][6ª16][7º17][D18][2ª19][3ª20]
[4ª21][5ª22][6ª23][7º24][D25][2ª26][3ª27][4ª28][5ª29][6ª30][7º31]

SETEMBRO – clique no dia desejado:
[D 1º][2ª 2][3ª 3][4ª 4][5ª 5][6ª 6][7º 7][D 8][2ª 9][3ª10]
[4ª11][5ª12][6ª13][7º14][D15][2ª16][3ª17][4ª18][5ª19][6ª20]
[7º21][D22][2ª23][3ª24][4ª25][5ª26][6ª27][7º28][D29][2ª30]

OUTUBRO – clique no dia desejado:
[3ª 1º][4ª 2][5ª 3][6ª 4][7º 5][D 6][2ª 7][3ª 8][4ª 9][5ª10]
[6ª11][7º12][D13][2ª14][3ª15][4ª16][5ª17][6ª18][7º19][D20]
[2ª21][3ª22][4ª23][5ª24][6ª25][7º26][D27][2ª28][3ª29][4ª30][5ª31]

NOVEMBRO – clique no dia desejado:
[6ª 1º][7º 2][D 3][2ª 4][3ª 5][4ª 6][5ª 7][6ª 8][7º 9][D10]
[2ª11][3ª12][4ª13][5ª14][6ª15][7º16][D17][2ª18][3ª19][4ª20]
[5ª21][6ª22][7º23][D24][2ª25][3ª26][4ª27][5ª28][6ª29][7º30]

DEZEMBRO – clique no dia desejado:
[D 1º][2ª 2][3ª 3][4ª 4][5ª 5][6ª 6][7º 7][D 8][2ª 9][3ª10]
[4ª11][5ª12][6ª13][7º14][D15][2ª16][3ª17][4ª18][5ª19][6ª20]
[7º21][D22][2ª23][3ª24][4ª25][5ª26][6ª27][7º28][D29][2ª30][3ª31]

São 21 Meditações de Ellen White publicadas no Brasil.

Aqui já lemos 1953 + 1956 + 1962 + 1968 + 1971 + 1974 + 1977 e este ano será 1959

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Comentário da Lição da Escola Sabatina – O Livro de Isaías – Consolo para o povo de Deus

Há uma história antes, e durante, e após o tempo de Isaías. E é importante dar uma espiada nesse contexto maior para, então, começar a entender a razão da demanda entre Deus e Seu povo. Povo rebelde! E põe rebelde nisso!!!

Ao mesmo tempo, veja a mão de Deus conduzindo o Seu propósito maior, que era a humilde primeira vinda de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, o Emanuel, o Deus-conosco.

Porém, o Livro de Isaías não é só história, não é só data, e não é só geografia. É uma “lição”. Uma lição pra nós. Nós que somos Seu povo, o povo que deve estar preparado e que prepara o mundo para a gloriosa segunda vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.

Vamos começar conhecendo os reis:

Saul (1050-1011), Davi (1011-971), Salomão (971-931), e Roboão, quando então houve uma divisão: Ao sul, na capital Jerusalém, o Reino de Judá, com apenas duas tribos. Ao norte, em Samaria, o Reino de Israel, com as demais dez tribos.

O Reino de Israel vai “cair” primeiro: Jeroboão 1º (931-910) – Nadabe (910-909) – Baasa (909-886) – Elá (886-885) – Zinri (885) – Onri (885-874) – Acabe (874-853) – Acazias (853-852) – Jorão (852-841) – Jeú (841-814) – Jeoacaz (814-798) – Jeoás (798-782) – Jeroboão 2º (782-753) – Zacarias (753-752) – Salum (752) – Manaém (752-742) – Pecaías (742-740) – Peca (740-732) – e, por último, Oseias (732-722).

Em 722 aC, Salmaneser 5º, rei da Assíria, dominou por completo o Reino de Israel (Samaria), que nunca mais se levantou. Acabou o Reino de Israel. Foram 19 reis em 209 anos. Não houve uma dinastia. Não eram necessariamente reis da mesma família ou da mesma tribo. Foi uma confusão atrás da outra. Confusão que levou essa parte do povo de Deus a “cair”. É dito que o rei atual era pior que o anterior.

Lembre-se, no entanto, que caíram porque quiseram. Deus alertou, e alertou, e alertou! Lembre-se que por lá estiveram os profetas Elias e Eliseu (nos dias de Acabe), e também o profeta Oseias (755-732) – ou seja, de Jeroboão 2º até Peca.

As dominações da Assíria eram terríveis. A arqueologia prova que o negócio era feio! E por falar em Assíria, interessante também é a sua história. Nos dias do rei Adad-Nirari 3º (810-782) não ia sobrar pedra sobre pedra de Nínive, mas Deus para lá enviou o profeta Jonas, e em resposta ao arrependimento e conversão de todo o povo, foram poupados de um juízo imediato. Pena que as gerações seguintes abandonaram os caminhos do Senhor, deixando reservado para um futuro próximo um encontro com Nabucodonosor, o rei da Babilônia.

Agora o Reino de Judá: Roboão (931-913) – Abias (913-911) – Asa (911-869) – Josafá (869-848) – Jeorão (848-841) – Acazias (841) – Atalia (841-835) – Joás (835-796) – Amazias (796-767) – Uzias (767-739) – Jotão (739-731) – Acaz (731-715) – Ezequias (715-686) – Manassés (686-642) – depois a gente continua com os demais.

Lembre-se: Lá em Samaria estava o profeta Oseias. Agora, saiba: Em Jerusalém estavam os profetas Amós, Miqueias e Isaías. Saiba também que estes profetas não profetizaram só para Judá. Em seus Livros há mensagens também para Israel, Egito, Síria e Assíria. Todas as nações são de Deus. Todos os povos são de Deus. Ele tem interesse na salvação de toda a humanidade. Daria [e deu] o Seu Filho em favor de todo o mundo!

Mas, para Judá havia um algo a mais: havia a triste história de Israel, que estava caindo, caindo, caindo, até que caiu. Se era de exemplo que eles precisavam, eis um, e bem forte! Seus irmãos foram por água abaixo!

Bem, Isaías de posiciona no último ano do rei Uzias, passa por Jotão, Acaz, Ezequias, e vai até o primeiro ano de Manassés. Anos e anos de ministério. Mensagens e mais mensagens em favor de seu povo. E é sobre isso que vamos estudar o trimestre inteiro.

Minha recomendação: Não use a Lição para chicotear nem Israel e nem Judá. Não use a Lição para arrepiar a “igreja”. Não faça de nenhum irmão da igreja o alvo de suas palestras. Apenas pense em Deus. Deus misericordioso. Deus compassivo. Deus que está administrando os Seus planos apesar de quem somos. Deus que revela, através do Seu povo passado, como Ele conduz o Seu povo atual. Pense em Deus!

Bem, a Lição não vai tratar, mas, por curiosidade, veja como ficou o Reino de Judá de Manassés pra frente: Manassés (686-642) – Amon (642-640) – Josias (640-609) [609: queda da Assíria] – Jeoacaz (609) – Jeoaquim (609-598) [primeira invasão de Nabucodonosor: 605] – Joaquim (598-597) [segunda invasão: 597] – Zedequias (597-586) [terceira invasão: 586 – destruição do Templo].

Manassés serrou Isaías ao meio, mas não calou a voz profética. Vieram Naum, Sofonias, Jeremias, Habacuque, Daniel e Ezequiel. Nunca tantos profetas de uma só vez.

Irmãos, se plantarmos o que Israel e Judá plantaram, vamos colher o que Israel e Judá colheram. Que a nossa história, então, seja diferente!!!

Nós temos um privilégio. Na verdade, um privilégio e uma bênção: Temos todos os profetas em um só Livro. Temos a Bíblia toda em nossas mãos. Então, façamos uso dela. Estudemos as Sagradas Escrituras. Façamos dela o nosso guia. Sejamos diferente deles!

Leia 2Reis 15 a 20 + 2Crônicas 26-32 + Isaías 1 e 5.

Carlos Bitencourt
Cascavel-Paraná

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Compreendendo as Escrituras – Índice

ÍNDICE

Capítulo 1 – Antecedentes históricos da interpretação bíblica adventista – Alberto R. Timm     

Capítulo 2 – A fé, a razão e o Espírito Santo na hermenêutica – John T. Baldwin   

Capítulo 3 – Pressuposições na interpretação das Escrituras – Frank M. Hasel  

Capítulo 4 – Revelação e inspiração – Fernando Canale

Capítulo 5 – A autoridade das Escrituras – Peter M. van Bemmelen  

Capítulo 6 – O texto e o cânon das Escrituras – Gerald A. Klingbeil  

Capítulo 7 – Diretrizes para a interpretação das Escrituras – Ekkehardt Müller  

Capítulo 8 – Interpretação interbíblica: Lendo as escrituras intertextualmente – Ganoune Diop

Capítulo 9 – Interpretando a narrativa histórica do Antigo Testamento – Greg A. King

Capítulo 10 – Lendo os Salmos e a literatura sapiencial – Gerhard Pfandl e Ángel M. Rodríguez

Capítulo 11 – Interpretando a profecia do Antigo Testamento – Richard M. Davidson

Capítulo 12 – Interpretação dos evangelhos e epístolas – George E. Rice

Capítulo 13 – Interpretação dos tipos, parábolas e alegorias bíblicas – Tom Shepherd

Capítulo 14 – A hermenêutica da apocalíptica bíblica – Jon K. Paulien

Capítulo 15 – Hermenêutica e cultura – Lael O. Caesar

Capítulo 16 – Interpretando e aplicando a ética bíblica – Ron du Preez

Capítulo 17 – Ellen G. White e hermenêutica – Gerhard Pfandl

Apêndice A – Métodos de estudo da Bíblia

Apêndice B – O uso da versão modificada da abordagem crítico-histórica por eruditos adventistas – Ángel M. Rodriguez

PRÓLOGO À EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

O cristianismo enfrenta uma das maiores crises hermenêuticas e comportamentais de sua história. Abdicando dos princípios da sola Scriptura (exclusividade da Escritura) e da tota Scriptura (totalidade da Escritura), muitas denominações cristãs têm diluído os princípios universais da Palavra de Deus no subjetivismo cultural da sociedade contemporânea. A religião se transformou em um negócio altamente lucrativo para um crescente número de igrejas-empresas que prometem status social, saúde psicossomática e prosperidade financeira em troca de generosos donativos para seus cofres eclesiásticos. O misticismo religioso das antigas relíquias e indulgências medievais está ressurgindo em muitos segmentos cristãos na forma de objetos abençoados na Terra Santa, seções de descarrego e mesmo cerimônias de troca de anjos da guarda. Além disso, a mídia, com suas atrativas opções de informação e lazer, tem se infiltrado nos lares cristãos, sugerindo a substituição dos antigos tabus morais pela nova liberdade do mundo virtual.

Chegou o tempo em que os cristãos precisam, mais do que nunca, enaltecer a perpetuidade da Palavra de Deus, em contraste com a transitoriedade das ideologias humanas. Em Isaías 40:6 a 8, lemos: “Toda a carne é erva, e toda a sua glória é como a flor da erva; seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do Senhor. Na verdade, o povo é erva; seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a Palavra de nosso Deus permanece eternamente”. Em Mateus 7:24 a 27, Cristo concluiu o Sermão do Monte com a analogia dos dois fundamentos. A casa espiritual que desabou foi a construída sobre a areia, por alguém que ouvia as palavras de Cristo e não as praticava; e a casa que permaneceu, foi edificada por alguém que ouvia e praticava essas palavras. Nenhuma comunidade cristã e nenhum cristão individualmente pode sobreviver aos vendavais ideológicos dos últimos dias sem um compromisso pessoal com a Palavra de Deus.

Devemos valorizar o legado interpretativo da Bíblia deixado pelas gerações passadas em suas exposições e comentários bíblicos. Mas a validade de tais produções é diretamente dependente de sua fidelidade ao texto bíblico. Mais importante do que apenas aceitar a interpretação de outros é aprender a interpretar corretamente a Bíblia com base em princípios e métodos que permitam ao texto sagrado dizer o que ele realmente pretende, e não necessariamente o que gostaríamos que dissesse. É precisamente com esse propósito que a UNASPRESS disponibiliza a presente obra em língua portuguesa. Tenho certeza que este manual contribuirá significativamente para termos ainda em nossos dias “um povo que mantenha a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas” (O Grande Conflito, p. 595).

 Alberto R. Timm – Diretor do Centro de Pesquisas Ellen G. White (2007-2011), Brasil.

PRÓLOGO À EDIÇÃO ORIGINAL EM INGLÊS

Os adventistas do sétimo dia são uma comunidade de crentes moldada pelas Escrituras em suas convicções e práticas doutrinais, bem como em sua interação diária com os outros. A leitura e o estudo da Bíblia, acompanhados de oração, constituem a disciplina espiritual básica na vida da Igreja. Essa disciplina espiritual deve ser exemplificada e promovida pelos dirigentes da Igreja ao redor do mundo: professores, pastores e anciãos.

O Instituto de Pesquisas Bíblicas da Associação Geral sempre esteve muito interessado na função vital da Bíblia em nutrir a comunidade de crentes. Consequentemente, tem se empenhado em prover materiais de estudo que aprofundem a compreensão da Bíblia pelos membros da Igreja e os preparem para estudá-la por si mesmos. Este novo volume, produzido sob o patrocínio do Instituto de Pesquisas Bíblicas e dos eruditos que fazem parte da sua Comissão, trata do assunto de como interpretar as Escrituras. Seu objetivo fundamental é estimular o estudo do livro sagrado, utilizando-se de princípios básicos de interpretação que reduzam e, se possível, eliminem interpretações arbitrárias da Palavra de Deus.

Este volume leva ao conhecimento do leitor uma série de princípios de interpretação bíblica que é compatível com a elevada concepção adventista da Bíblia como a Palavra de Deus. Pela inclusão de capítulos que tratam da natureza da revelação, inspiração e autoridade da Bíblia, o trabalho revela as pressuposições escriturísticas que os adventistas do sétimo dia imprimem ao texto ao procurarem obter uma melhor compreensão da Bíblia e de suas próprias pressuposições.

O Instituto de Pesquisas Bíblicas é especialmente grato a George W. Reid por aceitar a tarefa de editor deste volume. Seus 18 anos como diretor do instituto o habilitaram de uma maneira especial para o trabalho de editar este importante livro. Somos gratos também a Gerhard Pfandl, editor-associado, e a Marlene Bacchus, especialista em editoração eletrônica, pelas muitas horas que passaram com George Reid no preparo deste livro para publicação. A Igreja como um todo e, particularmente, os professores de Bíblia, sempre lhes serão devedores pelo excelente trabalho feito. Possa a Igreja ser continuamente abençoada pelas páginas deste livro.

Ángel M. Rodríguez – Diretor do Instituto de Pesquisas Bíblicas (2001-2011), Washington, EUA.

PREFÁCIO

A fé e prática adventista do sétimo dia apoiam-se nas Escrituras como autoridade final, evidenciada pelo fato de que uma declaração bíblica está no princípio da declaração oficial de crenças da Igreja. Somos um povo do livro pelo qual Deus tem falado à humanidade em termos inteligíveis a todos, apesar de transmitidos dentro dos limites de nossa linguagem e experiência.

As Escrituras revelam um extraordinário panorama de ideias que demandam o conhecimento de cada elemento da necessidade humana. Ali Deus revela seu caráter, propósitos, atos históricos e vontade. Ele traça os elementos do cosmo, inclusive a origem da raça humana, sua redenção em Cristo e a promessa de um destino final em seu reino. Essa arrebatadora cosmovisão é absolutamente sem rival, inundando nosso intelecto e emoções de significado máximo. Sem a Palavra de Deus, nossa compreensão seria reduzida a suposições conjeturais, construídas sobre uma inconstante análise do nosso ambiente.

Dada a suprema manifestação da Palavra em Cristo Jesus, no qual “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”, vemos sua pessoa expressa em termos humanos. Mas sua forma escrita deve ser – e será – interpretada reiteradamente por todas as gerações. Esta é a tarefa da hermenêutica e este é o motivo principal pelo qual foi escrito este livro.

O primeiro livro sobre hermenêutica do Instituto de Pesquisas Bíblicas apareceu em 1974. Desde então, porém, grandes mudanças têm ocorrido em nosso mundo, exercendo um acentuado impacto sobre estudos bíblicos e sobre interpretação. A comunicação instantânea tem extinguido o anterior isolamento encontrado em muitas partes do mundo. Em tal ambiente esta nova publicação vem auxiliar pastores e leigos que buscam uma salutar abordagem da Palavra de Deus.

Hoje enfrentamos problemas que demandam atenção e que simplesmente devem ser confrontados. As tendências pós-modernas vão além dos estudos historicamente fundamentados para a maneira como surge o significado religioso dentro da pessoa, a fim de tornar-se a força controladora na interpretação. O pensamento contemporâneo abandona largamente a ideia de que o propósito fundamental das Escrituras é comunicar objetivamente mensagens do Deus soberano. Tanto quanto possível, este livro procura descobrir modos de interpretação que surgem das próprias Escrituras, que requerem afirmação da universalidade de verdade final, tendo a Deus como sua fonte suprema.

Por que tudo isto é importante? O trabalho primordial da Igreja em cumprir a obra que Jesus lhe confiou repousa sobre a mensagem e a missão, naquilo que acreditamos estar englobado na comissão deixada por Ele. A maneira pela qual interpretamos as Escrituras é de tremenda importância. Falarão as Escrituras com autoridade no sentido de prover um modelo transcendente e aplicável a todas as culturas e a todos os povos, ou serão elas simplesmente uma fonte de ideias da qual os de inclinação religiosa possam extrair textos para moldar suas concepções pessoais do que realmente importa? A sã interpretação leva à compreensão, e aquilo que compreendemos controla nossas ações. Assim, este livro focaliza as pedras fundamentais, dentre as quais a Bíblia na vida cristã mantém uma posição dominante.

Como leitor, você encontrará aqui uma série de capítulos especializados, cada um escrito com uma preocupação acompanhada de oração e aberta à orientação do Espírito. Todos os autores são eruditos adventistas altamente qualificados, comprometidos em mordomia com o Senhor Jesus, escrevendo com a finalidade de ajudar cada leitor das Escrituras a reaver o intento incorporado na Palavra de Deus. Conquanto sua doação fosse expressa em ambientes humanos, além deles procuramos as eternas verdades que revelam o caráter de Deus e os Seus propósitos.

Os escritores destes capítulos provêm originalmente de muitos países e culturas, todavia partilham um compromisso comum com Cristo e com a Palavra escrita. Constituem um exemplo vivo de como as Escrituras estendem a mão para expressar a mensagem universal de Deus.

Estendemos nossa gratidão aos autores, por sua obra e por sua paciência com um processo editorial que, com frequência, condensava sua obra em até cinquenta por cento a fim de conservar o produto final dentro de um tamanho razoável. Somos gratos, especialmente, ao quadro de funcionários do Instituto de Pesquisas Bíblicas, sob cujo patrocínio apresentamos este livro a todos os que sinceramente procuram compreender a Deus e pôr em prática viva os tesouros de Sua Palavra.

George W. Reid – Diretor do Instituto de Pesquisas Bíblicas (1984-2001)

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ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA ADVENTISTA

Introdução

A igreja cristã foi originalmente construída sobre a plataforma hermenêutica da Bíblia como seu próprio intérprete. Logo depois do período apostólico, porém, a Igreja começou a sair dessa plataforma aceitando certas alternativas hermenêuticas não-bíblicas. As Escrituras vieram a ser reinterpretadas em muitos círculos cristãos a partir de perspectivas extraídas das culturas pagãs adjacentes, tradições culturais, autoridade eclesiástica, raciocínio humano e, mesmo, de experiências pessoais. Grandes lutas e tensões surgiram entre aqueles que concordavam com tais alternativas hermenêuticas e os que tentavam reorientar a Igreja na direção de sua plataforma hermenêutica original.

Resumindo, esta avaliação histórica enfatiza alguns dos importantes pontos hermenêuticos decisivos dentro da igreja cristã que proveram a base mais ampla para o desenvolvimento da interpretação adventista das Escrituras.

Do judaísmo ao cristianismo moderno

Antecedentes judaicos

Um ponto de referência histórico definidor da religião judaica foi o cativeiro babilônico no sexto século a.C. Antes desse evento, os israelitas eram fortemente tentados a abandonar os preceitos da Lei e as advertências dos profetas e a aceitar os componentes pagãos da cultura cananeia que os circundava. Percebendo que eles e seus antepassados foram levados em cativeiro por causa de suas transgressões da Lei e do sábado (Jeremias 17:19 a 27; 2Crônicas 36:15 a 21), os judeus pós-exílicos mudaram progressivamente em direção a uma obediência mais rígida da Lei e do sábado, conforme definida pela tradição. Essas regras extra-bíblicas tendiam a sobrecarregar e obscurecer alguns ensinos básicos das Escrituras (Mateus 15:5 a 9).

Fatores geográficos, culturais e religiosos no seio do judaísmo, porém, ajudaram a desenvolver três grandes abordagens distintivas às Escrituras, as quais floresceram no primeiro século d.C.1 O judaísmo rabínico centralizava-se em Jerusalém e na Judéia, promovendo obediência à Lei mosaica e às escrituras hebraicas a fim de proteger a tradição e a identidade judaica de ser diluída pela cultura greco-romana. O judaísmo helenístico, por outro lado, conquanto amplamente disperso, manifestava-se principalmente na grande comunidade judaica de Alexandria, Egito. Fortemente influenciado por Filo,2 esse ramo adotou as interpretações alegóricas das Escrituras a fim de acomodar suas crenças à expressão platônica da filosofia grega. A comunidade ascética de Qumran, na costa noroeste do Mar Morto, assumiu uma acentuada tendência escatológica, tentando mostrar como os eventos contemporâneos relacionados com sua própria comunidade cumpriam as profecias do Antigo Testamento.3

O cristianismo realmente nasceu dentro do contexto do judaísmo rabínico e, posteriormente, se expandiu para os domínios do judaísmo helenístico antes de enfrentar os maiores desafios do paganismo, que caracterizava a maior parte do Império Romano.

Igreja antiga e medieval

Cristo e seus apóstolos romperam com os limites hermenêuticos do judaísmo de seus dias enfatizando a autoridade exclusiva das Escrituras sobre todas as outras fontes de conhecimento religioso (Mateus 5:18). O alto valor que eles davam às Escrituras e sua equilibrada interpretação de seu conteúdo são evidentes, não apenas na maneira como Cristo e os escritores do Novo Testamento interpretavam as escrituras hebraicas, mas também no modo como eles enfrentavam certas distorções hermenêuticas do judaísmo de seu tempo. Cristo condenou as severas tradições rabínicas e rituais exteriores como “tradições que invalidavam a palavra de Deus” (Mateus 15:6; Mateus 23:1 a 38). Ele também se opôs a qualquer acomodação cultural da Palavra de Deus que anulasse seu poder santificador (João 17:6 a 23), como fizeram os judeus helenistas com suas próprias crenças. Contrastando uma forma de religião acentuadamente ascética, conforme praticada na comunidade de Qumran, Cristo enviou seus seguidores a pregar o evangelho a “todas as nações” (Mateus 28:19).

Em João 17, Cristo orou para que seus seguidores cumprissem sua missão no mundo sem serem do mundo (João 17:9 a 19). Mas, à semelhança do judaísmo helenístico, o cristianismo pós-apostólico também perdeu muito de sua identidade bíblica original acomodando-se à cultura greco-romana. Até mesmo líderes preeminentes como Irineu, Orígenes e Agostinho evidenciaram em seus escritos tais mudanças. Muitos intérpretes cristãos encontraram no método alegórico de Alexandria amplitude suficiente para sua acomodação sincrética das Escrituras à cultura popular.

Por si mesmo, o método alegórico teria levado a igreja cristã a uma interpretação pluralista das Escrituras, distorcendo sua identidade religiosa. Todavia, a incerteza criada pela interpretação da Palavra de Deus por meio de vários paralelismos alegóricos deixava muitos insatisfeitos, levando-os a procurar uma única voz autorizada. A função da hierarquia eclesiástica – principalmente o Bispo de Roma – interveio para preencher essa procura, favorecendo desse modo a pretensão da Igreja de ser a única intérprete correta da Escritura. Interesses eclesiásticos começaram a invalidar a verdadeira fidelidade à Palavra de Deus, construindo uma forte tradição hermenêutica não-bíblica.

A interpretação bíblica na Idade Média foi dominada pelo método alegórico de Orígenes, que via cada passagem da Bíblia como tendo quatro sentidos: “literal (ou histórico), alegórico (ou doutrinal), moral (ou tropológico) e anagógico (ou escatológico)”.4 Com tal variedade de opções interpretativas e sob a influência da elevação da tradição acima das Escrituras, fomentada por Irineu, a igreja medieval podia facilmente reivindicar apoio bíblico para muitos de seus ensinamentos não-bíblicos. Pela elevação da tradição eclesiástica ao mesmo nível de autoridade da Bíblia, a Igreja foi capaz de transferir muitas das prerrogativas salvíficas de Cristo e das Escrituras para si mesma e seu sistema sacramental.

Nem todos os intérpretes da Bíblia aceitavam o método alegórico. Já no quarto século d.C., a escola catequética cristã de Antioquia da Síria ensinava “a interpretação histórico-gramatical das Escrituras: que cada passagem tem um significado claro e simples transmitido por sua gramática e palavras”.5 Durante a Idade Média, pré-reformadores, tais como John Wycliff, John Huss, Jerônimo de Praga, e os valdenses, tentaram restaurar a autoridade das Escrituras acima das decisões eclesiásticas. A Devotio Moderna holandesa, ou Irmãos da Vida Comum (fundada por Gerard Groote no século 14 d.C.), estava profundamente preocupada com sua própria vida espiritual e sua compreensão pessoal das Escrituras. Entretanto, foi somente na primeira metade do século 16 d.C. que uma mais difundida reforma hermenêutica reinstalou a autoridade normativa das Escrituras.

Reforma e pós-Reforma

A Reforma do século 16 foi primeiramente uma reforma hermenêutica. Foi capaz de abalar a autoridade da Igreja Católica Romana e de gerar uma duradoura reforma eclesiástica. Martinho Lutero rompeu com muitas tradições medievais extra-bíblicas e com a hegemonia hermenêutica católica romana, permitindo, assim, que a Bíblia falasse diretamente a cada crente. A Bíblia foi restaurada ao seu lugar central por meio dos princípios de sola scriptura (a exclusividade das Escrituras) e tota scriptura (a totalidade das Escrituras). Mais uma vez permitiu-se às Escrituras o interpretarem-se a si mesmas pelo método histórico-gramatical; e seus elementos profético-apocalípticos começaram a explicar a história da igreja cristã em desenvolvimento usando a abordagem historicista.6 Exceto no tocante à salvação pela graça por meio da fé (Efésios 2:8 a 10), os reformadores magisteriais, como Lutero, Calvino e Zuínglio, não foram longe no sentido de restaurar várias outras importantes doutrinas bíblicas que haviam se tornado obscurecidas em seguida ao período apostólico. Mas eles puseram em evidência renovados princípios hermenêuticos que finalmente levariam a tal restauração.

A obra de Lutero e de outros reformadores do século 16 tais como Zuínglio, Bullinger, Calvino, Beza, e alguns dos reformadores radicais, conduzia uma influência de vasto alcance. A despeito de sua incapacidade de mudar o catolicismo romano além dos ajustes mínimos do Concílio de Trento (1545-1563), os reformadores lançaram o movimento protestante com suas várias ramificações e denominações. Com a intenção de conservar sua própria identidade, essas ramificações e denominações expressaram suas respectivas crenças em credos paralelos e confissões de fé. Apesar da utilidade de tais declarações para a manutenção da unidade doutrinal, elas levaram finalmente a tradições fixas que limitavam novas pesquisas das verdades bíblicas. Tais tradições permaneceram mais ou menos estabilizadas em seus ensinos até o Iluminismo, durante o qual a filosofia racionalista e a ciência naturalista começaram a desafiar abertamente a integridade das Escrituras.

Cristianismo moderno

A última metade do século 18 e a primeira metade do século 19 trouxeram uma radical mudança de paradigma à cultura ocidental. Muitos dos líderes pensantes da época começaram a substituir a crença na revelação sobrenatural pelos métodos naturalistas. Como compreender a Bíblia tornou-se o âmago de um forte debate entre aqueles que tentavam defender sua origem sobrenatural e sua autoridade normativa; aqueles que preferiam considerá-la como simplesmente um produto de culturas antigas; e aqueles que procuravam reinterpretá-la partindo da perspectiva da moderna cultura racionalista.

Enquanto os judeus helenistas e os cristãos medievais empregavam o método alegórico para acomodar a Bíblia em direção às respectivas culturas em que viviam, os modernos racionalistas desenvolveram o método crítico-histórico para acomodar a Bíblia retrocedendo às antigas culturas em que ela foi produzida. A crítica histórica depende da análise literária para estudar documentos partindo da perspectiva do seu compromisso com o ambiente sócio-cultural específico em que eles foram produzidos.7 O método desenvolveu-se partindo da suposição (ou pressuposição básica) do Iluminismo de que a História pode ser compreendida sem se levar em consideração uma intervenção sobrenatural. Quando aplicado à Bíblia, o método crítico-histórico levou muitos a reinterpretar suas referências a milagres e intervenções sobrenaturais como artifícios retóricos humanos e sua mensagem como obsoleta em face do moderno ambiente científico.

A partir do início do século 19, muitas denominações protestantes tradicionais começaram a enfrentar crescente polarização entre aqueles que continuavam defendendo a interpretação histórico-gramatical protestante das Escrituras e aqueles que subscreviam a reinterpretação crítico-histórica modernista da Bíblia. A crítica histórica continuou dominante na obra erudita dos intérpretes bíblicos até à segunda metade do século 20, durante a qual ela começou a perder influência devido ao surgimento do pós-modernismo.8

Contudo, ao mesmo tempo em que a filosofia racionalista e a ciência naturalista começavam a minar a autoridade normativa das Escrituras, a ciência da arqueologia bíblica em desenvolvimento entrou em cena, apoiando, em alguns exemplos, a historicidade dos relatos bíblicos.9

Interpretação desde Guilherme Miller aos adventistas do sétimo dia

Guilherme Miller

O final do século 18 e início do século 19 testemunharam um reavivamento mundial sem precedentes de interesse nos ensinos bíblicos sobre a segunda vinda de Cristo. Muitos intérpretes protestantes ficaram convencidos, por seu estudo das profecias bíblicas, de que Cristo viria em seus dias. Guilherme Miller (1782-1849), batista de Low Hampton, New York, proveu um dos mais desenvolvidos cálculos cronológicos dos 2.300 dias de Daniel 8:14 e de outras profecias das Escrituras sobre o fim do tempo, concluindo que o iminente cumprimento desse evento ocorreria por volta de 1843 d.C. Posteriormente, Samuel S. Snow calculou com mais precisão que os 2.300 dias se cumpririam no outono de 1844, isto é, em 22 de outubro de 1844.

Miller estudava as Escrituras dentro da estrutura hermenêutica provida (1) pelo princípio protestante de tomar a Bíblia como seu próprio intérprete (sola scriptura), (2) pelo método histórico-gramatical protestante, e (3) pelo ramo da escola protestante historicista pré-milenial de interpretação profética, que não aceitava a teoria dispensacionalista da restauração dos judeus na Palestina como um cumprimento da profecia.10 Mas a utilização milerita dessa estrutura hermenêutica estava grandemente restrita às profecias das Escrituras quanto ao fim do tempo, pois Miller não hesitou em insistir com seus companheiros de fé a não “entrar em discussão de questões estranhas àquelas do advento.” 11

O fato de que Cristo não veio na data esperada (22 de outubro de 1844) gerou um severo desapontamento, fragmentando o movimento milerita em muitas diferentes ramificações. Entre elas, estava um pequeno grupo de adventistas sabatistas que eventualmente se organizariam na Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Os primeiros adventistas do sétimo dia

Em geral, os adventistas sabatistas continuaram com a hermenêutica profética básica de Miller, mas foram além, aplicando sua hermenêutica às Escrituras como um todo. Resumindo, tanto mileritas quanto adventistas sabatistas subscreviam o princípio sola scriptura. Entretanto, os sabatistas eram muito mais coerentes do que os mileritas em seu compromisso com tota scriptura. Esse compromisso se desenvolveu, em grande parte, de duas realidades históricas.

Negativamente, o efeito desintegrador do desapontamento de outubro de 1844 danificou seriamente o sistema de crenças dos mileritas. Positivamente, os desafiou a encontrar uma explicação convincente para o fracasso. Muitos adventistas não-sabatistas que não abandonaram sua esperança na Segunda Vinda admitiram que o desapontamento era o resultado de um erro cronológico baseado em escolher cedo demais uma data para finalizar os 2.300 dias. Para eles, não era necessária nenhuma outra pesquisa das Escrituras em busca de tal resposta, porque o dilema do desapontamento seria resolvido esperando-se a chegada da futura data correta. Contrastando, os fundadores do adventismo sabatista acreditavam que 22 de outubro de 1844 era realmente a data correta para o fim dos 2.300 dias, porém buscaram uma mais convincente compreensão bíblica do evento a ocorrer no final desse período. Estudando a Bíblia, eles não somente descobriram tal resposta, mas também descobriram vários outros ensinos bíblicos duradouros esquecidos pelo Cristianismo em geral. Isso levou os sabatistas a rever e expandir o sistema milerita de interpretação profética.

Os adventistas sabatistas avançaram significativamente além do sistema milerita de interpretação profética. Como antes foi notado, a mensagem milerita concentrava-se muito exclusivamente nas profecias das Escrituras sobre o fim do tempo, com ênfase especial no iminente cumprimento dos 2.300 dias de Daniel 8:14. Os sabatistas retiveram essa ênfase escatológica do fim do tempo na estrutura básica hermenêutica para o desenvolvimento de um único e mais amplo sistema doutrinal, incorporando o conceito da purificação do santuário de Daniel 8:14 e das três mensagens angélicas de Apocalipse 14:6 a 12.12 Os componentes doutrinais desse sistema de “verdade presente” abrangiam aquelas “doutrinas escatológicas derivadas do histórico e/ou supra-histórico cumprimento de profecias específicas das Escrituras sobre o fim do tempo”, e aquelas “doutrinas históricas das Escrituras que haviam sido esquecidas e desconsideradas pela igreja cristã em geral, mas que seriam restauradas no fim do tempo”.13

Foram fundamentais para o desenvolvimento do sistema doutrinal os princípios hermenêuticos de tipologia e analogia da Escritura. Crendo que a relação entre o Antigo e o Novo Testamento era de inter-relacionamento tipológico em vez de oposição, os sabatistas aplicaram coerentemente o princípio de analogia das Escrituras a todo o conteúdo da Bíblia. O santuário do Antigo Testamento foi tratado como uma sombra típica do sacrifício e do ministério sacerdotal de Cristo no Novo Testamento (veja Hebreus 7:1 a 10:18). Essa todo-abrangente inter-relação tipológica proveu um sólido modelo global de coerência para a interpretação das Escrituras.

O estudo da literatura adventista sabatista por Don F. Neufeld mostra que tais desenvolvimentos doutrinais foram controlados pelos sete “princípios hermenêuticos gerais”: (1) sola scriptura; (2) “a unidade da Escritura”; (3) “passagem explica passagem”; (4) deve ser dada às palavras da Bíblia o seu devido significado”; (5) “atenção ao contexto e antecedentes históricos”; (6) “a Bíblia deve ser interpretada de acordo com o significado claro, óbvio e literal em vez de empregar-se uma figura”, e (7) “o princípio tipológico”. Neufeld dá a entender que subsequentemente os adventistas do sétimo dia têm feito apenas uma “pequena mudança nesses princípios”.14

  1. Mervyn Maxwell observa que embora os adventistas sabatistas reivindicassem o princípio sola scriptura da Reforma do século 16, eles o desenvolveram além dos reformadores com referência à restauração mais plena da verdade bíblica. De acordo com Maxwell isso aconteceu porque os sabatistas (1) usaram uma tipologia mais extensa; (2) reduziram mais extensamente a importância da tradição; (3) demonstraram “uma apreciação mais incisiva da autoridade de toda a Bíblia”; (4) usaram o “cumprimento da profecia no movimento adventista como uma ferramenta hermenêutica”, e (5) “tiveram em alta consideração os dons espirituais do tempo do fim, principalmente conforme manifestados no ministério de Ellen G. White”.15

Todavia, até meados da década de 1880 os adventistas do sétimo dia focalizavam seus estudos das Escrituras mais nos componentes bíblicos adventistas de sua própria mensagem do que naquelas doutrinas bíblicas evangélicas partilhadas por outros cristãos. Foi somente na ênfase pós-1888 na salvação pela graça por meio da fé, estimulada pela Sessão da Conferência Geral de Mineápolis (1888), que um verdadeiro equilíbrio doutrinal global foi alcançado.16 Isto significa que de 1844 a 1888 os adventistas do sétimo dia foram além dos reformadores do século 16 pela aplicação do princípio tota scriptura no processo de restauração das esquecidas doutrinas bíblicas, mas falharam negligenciando a doutrina bíblica da justiça pela fé restaurada muito mais cedo pelos reformadores. Por isso, desde a década de 1880, os adventistas do sétimo dia têm permitido que o princípio tota scriptura desempenhe um papel de mais vasto alcance na interpretação bíblica.

Muito do compromisso adventista com os princípios sola scriptura e tota scriptura foi estimulado pelos esforços de Ellen G. White para levar os adventistas para mais perto da Bíblia (Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 663 a 668; Evangelismo, p. 256 e 257). Num tempo em que as reinterpretações culturais da Bíblia estavam extinguindo a identidade original de muitas denominações cristãs, a voz profética de Ellen G. White ajudou os adventistas do sétimo dia a reter os princípios universais das Escrituras. Enquanto encorajava a investigação pessoal da Bíblia, ela exerceu também uma importante influência estabilizadora pela identificação de interpretações fanáticas que não permitiriam que a Bíblia falasse claramente à mentalidade moderna e às acomodações culturais que poderiam corroer a plena identidade de sua mensagem original.

Ciente de como o método crítico-histórico (então conhecido como “alta crítica”) estava solapando a autoridade da Bíblia em alguns círculos protestantes não-adventistas, Ellen G. White advertiu, em 1903, que “a obra da alta crítica, dissecando, conjeturando, reconstruindo, estava destruindo a fé na Bíblia como uma revelação divina; estava despojando a Palavra de Deus do poder de dirigir, enobrecer e inspirar as vidas humanas” (Educação, p. 227).

Conferência Bíblica de 1919

Na conferência bíblica realizada de 1° a 19 de julho de 1919, vários problemas causadores de divisão vieram à tona.17 R. W. Schwarz compreendeu bem a tendência geral da conferência ao caracterizá-la como preocupada com “debates sobre o que não é essencial.”18 Mesmo uma revisão superficial dos relatórios da conferência revela que ocorreu muita discussão e debate sobre assuntos periféricos tais como a identificação do “diário” ou “contínuo” (Daniel 8:11 e 12), a interpretação das “sete trombetas” (Apocalipse 8 a 10), e a identificação do “rei do Norte” (Daniel 11). Mas a conferência, infelizmente, trouxe pouca harmonia hermenêutica para os círculos acadêmicos adventistas do sétimo dia ao discutir esses assuntos.

Mais significativo foi o Concílio dos Professores de Bíblia e História realizado em combinação com a Conferência Bíblica de 1919. Ali, Arthur G. Daniells, presidente da Associação Geral, criticou abertamente os conceitos de “inspiração verbal” e “infalibilidade” dos escritos proféticos, produzindo fortes reações por parte dos ouvintes. Mas as opiniões de Daniells tiveram muito pouco impacto sobre a Igreja durante as poucas décadas seguintes, porque os relatórios da Conferência Bíblica de 1919 e do Concílio dos Professores de Bíblia e História foram arquivados e não trazidos à atenção do público até a década de 1970.19 Seus pontos de vista não foram refletidos no conteúdo de vários livros e panfletos subsequentes ou nos trimensários da Escola Sabatina publicados durante as décadas de 1920 e 1930 em defesa da Bíblia como a Palavra de Deus.

Conferência Bíblica de 1952

Em assinalado contraste com a Conferência Bíblica de 1919, com seus debates sobre assuntos sem importância, a Conferência Bíblica de 1952 focalizou muito exclusivamente os componentes básicos da fé adventista do sétimo dia.20

Entre os assuntos discutidos na Conferência de 1952 estavam as maneiras pelas quais a Arqueologia confirmava a Bíblia, a pregação cristocêntrica, o Espírito de Profecia, a doutrina do santuário, a expiação na cruz, os concertos e a lei, as três mensagens angélicas, a segunda vinda de Cristo, a mensagem de saúde, e o grande conflito. As várias preleções da conferência foram publicadas subsequentemente pela Review and Herald na série de dois volumes intitulada Our Firm Foundation (1953).21 Esses volumes deram uma forma permanente e ampla circulação ao conteúdo da conferência.

Também durante a década de 1950, uma equipe de trinta e sete eruditos adventistas produziram os sete volumes do Seventh-day Adventist Bible Commentary (1953-1957) [Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia]. O significado hermenêutico do comentário é devido, em grande parte, ao fato de que o comentário representava pela primeira vez uma exposição de toda a Bíblia partindo de uma perspectiva adventista do sétimo dia. Não apenas integrava em uma só obra as opiniões de seus diferentes colaboradores, mas também proporcionava diferentes interpretações de certas passagens bíblicas. Conquanto muitos eruditos adventistas considerassem tal abertura hermenêutica como o melhor meio de evitar conclusões e controvérsias dogmáticas, a outros parecia a primeira mudança adventista do sétimo dia para uma interpretação mais pluralista das Escrituras.

No final da década de 1960, os eruditos adventistas preocuparam-se com a tarefa exegética mais prática de interpretar corretamente as várias passagens das Escrituras, utilizando princípios hermenêuticos já definidos nos primeiros dias do movimento. Contudo, principiando com o início da década de 1970, alguns eruditos adventistas começaram a expressar publicamente sua preferência por metodologias hermenêuticas alternativas (especialmente o método crítico-histórico) em lugar do método histórico-gramatical.22 A escalada dessa tensão metodológica demonstrou a necessidade de uma nova discussão do método hermenêutico.

Conferência Bíblica de 1974

Conseqüentemente, em 1974 as Conferências Bíblicas foram realizadas em três localidades: Southern Missionary College (13-21 de maio), Andrews University (3-11 de junho) e Pacific Union College (17-25 de junho). Patrocinadas e organizadas pela Comissão do Instituto de Pesquisas Bíblicas da Associação Geral, as conferências de oito dias trataram especificamente do tema da hermenêutica bíblica, partindo de uma perspectiva histórico-gramatical. Um volume intitulado A Symposium on Biblical Hermeneutics23 e um caderno de apontamentos intitulado North American Bible Conference 1974 foram publicados para utilização dos 2 mil delegados que assistiram.

Com as contribuições de vários importantes eruditos adventistas, o Symposium on Biblical Hermeneutics compreende 14 capítulos, classificados sob cinco grandes seções. Até a publicação do presente volume, ele foi a principal e mais influente exposição hermenêutica adventista do sétimo dia.24 Apesar de proveitosas para a Igreja Adventista, as Conferências Bíblicas de 1974 foram incapazes de conciliar completamente as discussões metodológicas dentro da denominação.

Quatro desafios contemporâneos

  1. Durante as décadas de 1980 e 1990, os adventistas enfrentaram vários desafios hermenêuticos. Um deles estava relacionado com a aceitação por alguns de versões modificadas do método crítico-histórico. A interrogação sobre se o método adequado para o estudo de escritos “inspirados” dividiu finalmente os eruditos adventistas do sétimo dia em três grupos: (a) aqueles que aceitam o método com suas pressuposições básicas, (b) aqueles que creem que uma versão modificada do método pode ser usada à parte de suas pressuposições básicas, e (c) aqueles que sustentam que o método é inaceitável porque não pode ser isolado de suas pressuposições básicas.

O Concílio Anual de 1986 da Associação Geral, reunido no Rio de Janeiro, votou um documento oficial intitulado “Methods of Bible Study”25 [Métodos de Estudo da Bíblia] em que os adventistas estudantes da Bíblia foram advertidos a “evitar a confiança no uso das pressuposições e as resultantes deduções associadas ao método crítico-histórico”. Sob a admissão de que “a razão humana está sujeita à Bíblia, não igual ou acima dela”, o documento declarou que “mesmo o uso modificado” do método crítico-histórico “que retém o princípio de crítica que subordina a Bíblia à razão humana é inaceitável aos adventistas”. A despeito de sua natureza oficial, “Methods of Bible Study” não convenceu todos os eruditos adventistas a evitar o uso do método crítico-histórico.

  1. Outra controvérsia hermenêutica foi precipitada pela introdução do chamado princípio apotelesmático de interpretação profética, que provia um refúgio hermenêutico para interpretações preteristas do “chifre pequeno” como Antíoco Epífanes. Respostas eruditas para esta interpretação de Daniel 8:14 foram providas pela Comissão de Revisão do Santuário de Glacier View (1980), mas também pela Comissão Daniel e Apocalipse (1982-1992).26
  2. Um terceiro desafio hermenêutico desenvolveu-se em torno de certas interpretações proféticas futuristas baseadas em interpretações literais dos três períodos proféticos de Daniel 12 e referências repetitivas em Apocalipse 11. Tem sido publicado material elucidativo em resposta a tais tentativas futuristas.27
  3. Além das discussões relacionadas com o método crítico-histórico, o princípio apotelesmático e o futurismo, desde a década de 1980 a hermenêutica adventista do sétimo dia se defronta com elementos do pós-modernismo com sua crítica das Escrituras “orientadas para o leitor”.

Tais questões hermenêuticas têm provido oportunidade para contínuo refinamento da metodologia nos círculos adventistas.

Resumo e conclusões

Esta avaliação histórica tem realçado alguns dos grandes pontos decisivos hermenêuticos dentro da igreja cristã que proveem o fundamento mais amplo para a interpretação adventista das Escrituras. O método alegórico usado pelos judeus helenistas e pelos cristãos pós-apostólicos permitiu que muitos ensinos das Escrituras fossem acomodados à cultura greco-romana. Numerosas tradições não-bíblicas foram depois consideradas oficialmente como canônicas pela igreja medieval. A Reforma do século dezesseis, porém, restaurou princípios hermenêuticos básicos que permitiriam uma recuperação mais completa das doutrinas da Bíblia. Com o passar do tempo, ocorreu tal restauração doutrinal entre os adventistas do sétimo dia pela adoção do método gramático-histórico protestante de interpretação bíblica e a escola historicista protestante de interpretação profética.

Desde o início da década de 1970, um pequeno número de eruditos têm procurado mais abertamente introduzir um apelo mais contemporâneo adotando seletivamente ferramentas hermenêuticas, tais como elementos do método crítico-histórico e métodos revisados de interpretação profética que incorporam componentes preteristas, futuristas e pós-modernistas. Isto tem gerado tensões entre os efeitos desintegradores dessas novas metodologias hermenêuticas e os principais ensinos doutrinais adventistas baseados nos princípios sola scriptura e da tota scriptura.

A história da Igreja apresenta numerosos exemplos em que as denominações cristãs têm permitido que a autoridade das Escrituras seja obscurecida por tradições humanas, razão, experiência pessoal e cultura contemporânea. Os adventistas estão convictos de que Deus suscitou a Igreja Adventista do Sétimo Dia, dentro dos desafios dos “últimos dias” (2Timóteo 3:1), para restaurar e enaltecer a autoridade de Sua Palavra e promover um sistema de interpretação bíblica derivado da própria Escritura.

Referências

  1. Importantes regras rabínicas desse período podem ser encontradas em Biblical Exegesis of the Apostolic Period de Richard Longenecker (Grand Rapids, MI: Wm B. Eerdmans, 1975), p. 19-50.
  2. Escritor judeu (primeiro século d.C.). Ele combinou o monoteísmo do Antigo Testamento com a filosofia grega e utilizou o método alegórico na interpretação das Escrituras. Muitos intérpretes cristãos das Escrituras nos primeiros séculos seguiram sua orientação, por exemplo, Ambrósio e Orígenes.
  3. William W. Klein, Craig L. Blomberg e Robert L. Hubbard, Introduction to Biblical Interpretation (Dallas, TX: Word, 1993), p. 21-28.
  4. Ibid., p. 38.
  5. Ibid., p. 35.
  6. A escola historicista de interpretação profética defende que cada profecia apocalíptica da Bíblia tem um cumprimento histórico específico entre o tempo em que ela foi dada e o estabelecimento do eterno reino de Deus. Os períodos de tempo proféticos são interpretados à base do princípio dia-ano. Para uma história compreensiva do desenvolvimento do historicismo, veja The Prophetic Faith of Our Fathers: The Historical Development of Prophetic Interpretation, de Leroy E. Froom, 4 vols. (Washington, D.C.: Review and Herald, 1946-1954).
  7. Veja The Historical-Critical Method, de Edgar Krentz (Filadélfia, PA: Fortress, 1975), p. 35-54. Biblical Hermeneutics, de Gerhard Mayer (Wheaton, IL: Crossway, 1994), p. 209-306.
  8. Para exposições da hermenêutica bíblica pós-moderna, veja, por ex., Postmodern Use of the Bible: The Emergence of Reader-oriented Criticcism, de Edgar V. McKight (Nashville, TN: Abingdon, 1988); New Horizons in Hermeneutics, de Anthony C. Thiselton (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992); The Postmodern Bible: The Bible and Culture Collective, de George Aichele, et al., (New Haven, CT: Yale University Press, 1995).
  9. Exposições criteriosas sobre como a arqueologia tem confirmado a Bíblia são providas, por exemplo, por Alfred J. Hoerth, Archaeology and the Old Testament (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1998); Kenneth Kitchen, On the Reliability of the Old Testament (Grand Rapids, MI: Wm B. Eersdmans, 2003). John McRay, Archaeology and the New Testament (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1991).
  10. Para estudos críticos dos princípios hermenêuticos de Miller, veja “Roots of the Prophetic Hermeneutic of William Miller”, de Steen R. Rasmussen (tese de mestrado, Newbold College, 1983); The End of Historicism: Millerite Hermeneutic of Time Prophecies in the Old Testament, de Kai Arasola [Uppsala: Universidade de Uppsala], 1990).
  11. William Miller, “Letter from Mr. Miller”, Midnight Cry, 23 de maio de 1844, p. 355.
  12. Veja The Sanctuary and the Three Angels’ Messages: Integrating Factors in the Development of Seventh-day Adventist Doctrines, de Alberto R. Timm. Adventist Theological Society Dissertation Series, vol. 5 (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society Publications, 1995).
  13. Ibid., p. 185 (grifos supridos).
  14. Don F. Neufeld, “Biblical Interpretation in the Advent Movement”, em A Symposium on Biblical Hermeneutics, ed. Gordon M. Hyde (Washington, D.C.: Biblical Research Committee, 1974), p. 117-122.
  15. C. Mervyn Maxwell, “A Brief History of Adventist Hermeneutics”, JATS 4, nº 2 (outono de 1993): 212-217.
  16. Veja Angry Saints: Tensions and Possibilities in the Adventist Struggle over Righteousness by Faith, de George R. Knight (Washington, D.C.: Review and Herald, 1989).
  17. Veja “The Bible Conference”, de Arthur G. Daniells, Review and Herald, 21 de agosto de 1919, p. 3-4; Light Bearers to the Remnant, de R. W. Schwarz (Boise, ID: Pacific Press, 1979), p. 393-407.
  18. Schwarz, p. 393.
  19. Os relatórios da Conferência Bíblica de 1919 e do Concílio dos Professores de História foram colocados fora de lugar até dezembro de 1974, quando o curador F. Donald Yost os descobriu nos arquivos da Associação Geral. M. Couperus, “The Bible Conference of 1919”, Spectrum 10 (maio de 1979): 23-57.
  20. Veja “The Bible Conference”, de F. D. N[ichol], série em 2 partes em Review and Herald, 28 de agosto de 1952, p. 1, 13-14; 4 de set. de 1952, p. 13-14; “Historic Bible Conference Convenes”, de Frederick Lee, Review and Herald, 25 de set. de 1952, p. 1, 8-10; “Objectives of the Bible Conference”, de W. H. Branson, Review and Herald, 25 de set. de 1952, p. 3-4.
  21. Esses volumes não devem ser confundidos com a revista também intitulada Our Firm Foundation, publicada mais recentemente por um ministério independente norte-americano denominado Hope International.
  22. Alberto Ronald Timm, “A History of Seventh-day Adventist Views on Biblical and Prophetic Inspiration (1844-2000)”, JATS 10 (1999): 513-524.
  23. Veja rodapé 14.
  24. Quanto a outras valiosas contribuições para a interpretação bíblica adventista veja Understanding the Living Word of God, de Gerhard F. Hasel (Mountain View, CA: Pacific Press, 1980); Handbook for Bible Study, de Lee J. Gugliotto (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1995); e “Biblical Interpretation”, em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, de Richard M. Davidson, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), p. 58-104.
  25. Veja Apêndice A, “Métodos de Estudo da Bíblia”, Declarações da Igreja, p. 179-189, (Tatuí, SP: 2003, Casa Publicadora Brasileira), p. 179-189. Cf. AR, 22 de jan. de 1987, p. 18-20; Ministry, abril de 1987, p. 22-24.
  26. Veja “Special Sanctuary Issue”, de Ministry, outubro de 1980; Selected Studies on Prophetic Interpretation, de William H. Shea; Daniel And Revelation Committee Series, vol. 1 (Washington, D.C.: Instituto de Pesquisas Bíblicas, Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, 1982) e os seis volumes restantes do Daniel and Revelation Committee Series, editado por Frank B. Holbrook.
  27. Respostas proveitosas para a interpretação futurista dos 1.260, 1.290 e 1.335 dias são providas em Delayed Time-Setting Heresias Exposed, de Victor Michaelson (Payson, AZ: Leaves-of-Autumn, 1985); “Time Prophecies of Daniel 12 and Revelation 12-13”, de William H. Shea em Symposium on Revelation, Book 1, Daniel and Revelation Committee Series, ed. Frank B. Holbrook, (Silver Spring, MD: Instituto de Pesquisas Bíblicas, 1992), p. 327-360; idem, Daniel 7-12: Prophecies of the End-Time, Abundant Life Bible Amplifier (Boise, ID: Pacific Press, 1996), p. 217-223; Time Prophecies in Daniel 12, de Gerhard Pfandl, Biblical Research Institute Releases, nº 5 (Silver Spring, MD: Instituto de Pesquisas Bíblicas, 2005).

Bibliografia selecionada

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Burrows, Mark, e Paul Rorem, eds. Biblical Hermeneutics in Historical Perspective: Studies in Honor of Karlfried Froehlich on His Sixtieth Birthday. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1991.

Dockery, David S. Biblical Interpretation Then and Now: Contemporary Herneneutics in the Light of the Early Church. Grand Rapids, MI: Baker, 1992.

Froom, LeRoy E. The Prophetic Faith of Our Fathers: The Historical Development of Prophetic Interpretation. 4 vols. Washington, D.C.: Review and Herald, 1946-1954.

Grant, Robert M. A Short History of the Interpretation of the Bible. Ed. rev. New York: Macmillan, 1963.

Hyde, Gordon M., ed. A Symposium on Biblical Hermeneutics. Washington, D.C.: Comissão de Pesquisas Bíblicas, Associação Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, 974.

Maxwell, C. Mervyn. “A Brief History of Adventist Hermeneutics”. Journal of the Adventist Theological Society 4, no. 2 (outono de 1993): 209-226.

Timm, Alberto R. “A History of Seventh-day Adventist Views on Biblical and Prophetic Inspiration (1844-2000)”. Journal of the Adventist Theological Society 10 (1999): 486-542.

White, Ellen G. The Great Controversy Between Christ and Satan. Washington, D.C.: Review and Herald, 1911.

Alberto R. Timm, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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FÉ, RAZÃO E O ESPÍRITO SANTO NA HERMENÊUTICA

Introdução

Interpretar corretamente as Escrituras é tanto um privilégio quanto uma despretenciosa responsabilidade. O enfoque especial deste capítulo é descobrir princípios bíblicos e teológicos que se relacionem com a função da fé, da razão, das faculdades espirituais e do Espírito Santo no processo hermenêutico. A seguinte abordagem baseia-se na unidade e clareza das Escrituras como um todo e no conceito de que toda a Bíblia é a proposicional e infalível Palavra de Deus. Admite que o que o texto significava originalmente é, em princípio, o que o texto significa para nós hoje.

A fé e a razão na hermenêutica              

Fé e razão em diálogo

A hermenêutica envolve um processo racional que utiliza as faculdades de raciocínio do intelecto humano, atribuindo, desse modo, uma função central à razão humana na interpretação das Escrituras. Contudo, uma série de indagações discute a razão e a fé conforme relacionadas com a hermenêutica. São as verdades franqueadas à descoberta pela razão comparáveis com as verdades da fé? É possível o diálogo entre as duas dimensões? Além disso, é a razão – compreendida como a capacidade humana de pensar, deliberar, resolver problemas, distinguir, julgar e escolher livremente – um recurso plenamente fidedigno ou o fator exclusivo na interpretação da Palavra escrita de Deus? Que efeito poderia ter o pecado sobre a razão humana? Ademais, pode a razão ser influenciada positiva ou negativamente por poderes sobrenaturais talvez mesmo desconhecidos ao intérprete?

Por outro lado, a fé – reconhecida como uma confiança divinamente inspirada e um compromisso com Deus e com a Escritura canônica como a autorizada Palavra Escrita de Deus – desempenha também uma função na hermenêutica? Nesse caso, qual é sua função e como essa espécie de fé se relaciona com a razão na hermenêutica?

Além do mais, há limites para a razão humana na hermenêutica? Se é assim, quais são eles, e sobre o que estão eles fundamentados? Se a fé e a razão parecem colidir no tocante a uma interpretação particular das Escrituras, como será a tensão resolvida? Deve a fé ou a razão ter a autoridade final em tais exemplos? Nesse caso, sobre que base poderia ser concedida a uma ou a outra a autoridade final?

Esses problemas são tão básicos que têm recebido grande atenção ao longo da era cristã, continuando hoje a ser vigorosamente discutidos.

Fé, razão e evidência

Por um lado, discutindo-se a fé e a razão há um senso de que, de certo modo, é bom tomar em consideração a crítica por meio da análise racional. Pedro exorta os crentes a estarem preparados para apresentar uma “razão” ou uma “defesa” a qualquer que lhes pergunte sobre alguma postura cristã (1Pedro 3:15). Isto implica a importância da evidência em relação à crença e, portanto, parece endossar, de certa forma, o que tem sido chamado de “crença cristã fundamentada”.1 Embora o cristão possa não ter prova demonstrável como garantia para as crenças, pode-se esperar a existência de suficiente evidência. Ellen G. White descreveu a relação entre evidência e fé, como segue:

“O Senhor nunca exige que creiamos em alguma coisa sem nos dar suficientes provas sobre que fundamentemos nossa fé. Sua existência, Seu caráter, a veracidade de Sua Palavra, baseiam-se em testemunhos que falam à nossa razão; e esses testemunhos são abundantes. Todavia, Deus não afasta a possibilidade da dúvida. Nossa fé deve repousar sobre evidências, e não em demonstrações. Os que quiserem duvidar, hão de encontrar oportunidade; ao passo que os que desejam realmente conhecer a verdade, encontrarão abundantes provas em que basear sua fé” (Caminho a Cristo, p. 105).

Por outro lado, em discussões da fé e da razão, também reconhecemos o valor da fé pessoal, experimentando o auto-autenticador poder do Espírito Santo sobre a mente. Surge a interrogação: Qual é a relação entre a razão, a fé e o Espírito Santo? Poderia a resposta ser a de que esses elementos estão relacionados funcionalmente? O Espírito Santo nos atrai por meio da evidência. Isto amplia a importância das faculdades do raciocínio com respeito à evidência, especialmente a evidência textual. Também sanciona a imprescindível obra contemporânea de Deus como conduzindo verdade por meio da evidência. Todavia, são as faculdades humanas do raciocínio sempre e plenamente confiáveis? Esta pergunta nos leva à discussão da distinção entre a razão humana regenerada e não-regenerada.

Razão não-regenerada versus razão santificada em hermenêutica

Segundo a cosmovisão bíblica, a capacidade racional humana, razão ou mente, está consistentemente caracterizada como impelida pelo pecado. Descrevendo a faculdade racional natural como “coração”, Jeremias afirma que ele “enganoso mais do que todas as coisas e desesperadamente enfermo” (Jeremias 17:9). Pode esta razão natural “enferma” que, de acordo com a Palavra de Deus, ama a “impureza ou cobiça” as “palavras vãs ou chocarrices” (Efésios 5:3 e 4) e outras obras das “trevas” (Efésios 5:8), interpretar corretamente a Bíblia? Paulo responde a esta pergunta como segue: “O homem natural [razão ou raciocínio não transformado] não recebe as coisas do Espírito de Deus: porque elas são para ele loucura: nem pode conhecê-las, porque elas são discernidas espiritualmente” (1Coríntios 2:14).

Paulo admoesta seus ouvintes a serem transformados “pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12:2). Esta passagem parece sugerir que se requer uma razão renovada para que a pessoa compreenda adequadamente a vontade de Deus. Paulo equipara a renovação da mente com a regeneração pelo Espírito Santo (Tito 3:5). Concorda Ellen G. White: “A graça de Cristo é necessária para refinar e purificar a mente” (Review and Herald, 23/09/1884, p. 609).

Isto suscita a interrogação sobre se a fé ou a razão deve ter prioridade na hermenêutica quando surgem aparentes conflitos entre essas duas maneiras contrastantes de conhecer.

A prioridade da fé sobre a razão em hermenêutica

O Novo Testamento, particularmente, trata desse assunto. Utilizando linguagem metafórica militar, Paulo exorta seus ouvintes a levar “cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Coríntios 10:5). A inferência é a de que os ensinamentos de Cristo, conforme se encontram nas Escrituras, devem ser elevados em autoridade sobre reivindicações competitivas da razão humana. Em outras palavras, todos os pensamentos, sejam geológicos, filosóficos ou teológicos devem estar “cativos” aos ensinos de Cristo.

O ato de pôr, desse modo, a fé acima da razão, prepara o cristão para estar disposto a negar as evidências dos sentidos humanos se os fenômenos empíricos parecem questionar alguns ensinos das Escrituras, por exemplo, Jesus predisse vindas forjadas de futuros falsos cristos (Mateus 24:24 a 27). Em vista disso, indaga Ellen G. White: “Acha-se hoje o povo de Deus tão firmemente estabelecido em Sua Palavra que não venha a ceder à evidência de seus sentidos? Apegar-se-á nesta crise à Bíblia, e a Bíblia só?” (O Grande Conflito, p. 625).

Conquanto seja importante, em casos de evidente conflito, pôr a fé na Bíblia e suas reivindicações acima daquelas do raciocínio secular humano, talvez precisemos confessar temporária e livremente nosso atual nível de ignorância em descobrir métodos de resolver certos problemas. Não obstante, podemos descansar pela fé na certeza de que quando Deus finalmente revelar todas as coisas na Nova Terra, haverá harmonia genuína em assuntos que agora parecem dissonantes e irreconciliáveis.2 Voltamo-nos agora para a discussão das influências da hermenêutica espiritual.

O conflito cósmico e a hermenêutica

Além do impacto do pecado sobre a razão humana, a aceitação de uma interpretação literal das Escrituras enfatiza os motivos por que é difícil, se não impossível, para a mente natural interpretar corretamente a Bíblia. Potestades espirituais caídas, Satanás e seus anjos, podem influenciar o exegeta. Isto é particularmente verdade quando o intérprete da Bíblia nega que esses poderes sobrenaturais caídos existam como seres reais, capazes de influenciar a mente, e alegoriza-os em meros símbolos do mal.3 As tentativas de Satanás e anjos maus para redirecionar interpretações da Bíblia não podem ser negadas. Também devemos considerar a função hermenêutica positiva dos santos anjos sobre os seres humanos. Conquanto o efeito dessas forças seja facilmente enfatizado em excesso na hermenêutica, precisamos ser conscientes da influência tanto dos santos anjos quanto dos anjos maus.

A influência hermenêutica positiva dos santos anjos

Em algumas passagens bíblicas anjos são comissionados a trabalhar com indivíduos específicos na compreensão da Palavra de Deus. Um exemplo clássico é relatado em Daniel 8, em que Gabriel é enviado para “dar a entender a este [Daniel] a visão” (Daniel 8:16). No capítulo seguinte Daniel pede mais assistência e a recebe; Gabriel lhe diz: “Agora, saí para fazer-te entender o sentido… considera, pois, a cousa e entende a visão” (Daniel 9:22 e 23).

A assistência angélica na hermenêutica aparece também no Novo Testamento. Falando a Maria e às outras mulheres na tumba vazia, disse um anjo: “Lembrai-vos de como vos preveniu… que o Filho do homem… seja crucificado, e ressuscite no terceiro dia” (Lucas 24:6 e 7). Aqui o anjo não somente as ajuda a se lembrar das palavras de Jesus, mas as ajuda a compreender o verdadeiro significado de suas palavras.

Concedem os anjos hoje a mesma espécie de assistência por meio de sua capacidade de impressionar a mente humana? Escreveu Ellen White: “Se vos achegardes ao estudo das Escrituras em humildade, com fervorosa oração pedindo orientação, anjos de Deus vos abrirão suas vivas realidades” (Signs of the Times, 18/09/1893, p. 6). Mais especificamente, ela declara que “anjos, porém, acham-se em redor dos que estão desejosos de serem ensinados nas coisas divinas; e no tempo de grande necessidade lhes trarão à lembrança as mesmas verdades de que necessitam” (O grande Conflito, p. 600).

Também Ellen G. White partilha notáveis ideias da influência hermenêutica dos anjos celestiais nos tempos pós-apostólicos. Acerca de quando Lutero descobriu uma Bíblia latina na biblioteca da universidade, ela declara: “Anjos celestiais estavam a seu lado, e raios de luz procedentes do trono de Deus traziam-lhe à compreensão os tesouros da verdade” (O grande Conflito, p. 122). Concernente a Guilherme Miller nos é dito que “Deus mandou Seu anjo mover o coração de um lavrador, que não havia crido na Bíblia, a fim de o levar a examinar as profecias. Anjos de Deus repetidamente visitavam aquele escolhido, para guiar seu espírito e abrir à sua compreensão profecias que sempre tinham sido obscuras para o povo de Deus” (Primeiros Escritos, p. 229).

A influência hermenêutica negativa dos poderes angélicos caídos

Usando a imagem da guerra, Paulo apresenta um amplo comentário concernente ao impacto sobre os seres humanos do que Satanás é capaz: “Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne e, sim, contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Efésios 6:12). Posteriormente, Paulo desenrola algumas das consequências específicas da guerra: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios” (1Timóteo 4:1). Esta declaração indica que anjos caídos têm o poder de seduzir a razão humana, e infere que eles têm poder para originar doutrinas essencialmente contrárias à Palavra de Deus. Comentando sobre esse tema e passagem, Merrill F. Unger, cuja dissertação doutoral examinou a demonologia bíblica, declara: “Paulo conecta o erro à sua fonte real na atividade satânica e demoníaca, em vez de ao agente humano”.4

O próprio Satanás desempenha uma função na interpretação humana equivocada da Palavra de Deus. Paulo parece inferir esta conclusão na seguinte passagem: “Mas, se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo” (2Coríntios 4:3 e 4). Satanás possui fatais habilidades hermenêuticas com respeito à capacidade de raciocínio do intérprete bíblico. Esta verdade deve erguer o brado de advertência na mente do intérprete da Palavra de Deus. Neste mesmo contexto, o comentário de Ellen G. White é esclarecedor:

“Quando a Palavra de Deus é aberta sem reverência e sem oração, quando os pensamentos e afeições não estão firmados em Deus ou em harmonia com a Sua vontade, a mente é obscurecida por dúvidas; e no próprio estudo da Bíblia, se fortalece o ceticismo. O inimigo assume o controle dos pensamentos, e sugere interpretações que não são corretas (O grande Conflito, p. 704 e 705).

A habilidade demoníaca sobrenatural de despertar a mente a fim de produzir exposições inadequadas da Palavra de Deus representa de fato um desafio. Se anjos bons e anjos maus podem influenciar a mente humana (mas sua identidade não é revelada), como pode alguém estar certo quanto à validade de uma resultante interpretação escriturística? Em resposta, a seguinte declaração de Ellen G. White provê importantes indícios: “Os que se desviam dos claros ensinos das Escrituras, e do poder convincente do Espírito Santo de Deus, estão convidando o domínio dos demônios” (O Desejado de Todas as Nações, p. 258). Expandindo-se sobre esse tema, Ellen G. White apresenta uma solução para distinguir a fonte sobrenatural da influência hermenêutica.

“Não devemos nos empenhar no estudo da Bíblia com aquela confiança própria com a qual tantos entram nos domínios da ciência, mas com uma dependência piedosa de Deus, e um sincero desejo de conhecer a Sua vontade. Devemos achegar-nos com um espírito humilde e dócil a fim de obter conhecimento do grande EU SOU. Caso contrário, anjos maus nos cegarão de tal forma o entendimento e endurecerão o coração que não seremos impressionados pela verdade” (The Spirit of Prophecy, vol. 4, p. 417).

Da citação podemos deduzir que seres racionais podem exercer o seu livre arbítrio para adotar um espírito humilde, dócil e piedoso, inteiramente dependente de Deus, e, assim, evitar a influência hermenêutica demoníaca. A seguir, White desenvolve esta verdade animadora: “O espírito com que vindes à pesquisa das Escrituras, determinará o caráter do assistente ao vosso lado. Anjos do mundo da luz, estarão com aqueles que com humildade de coração buscam a direção divina. Mas se a Bíblia for aberta com irreverência, com sentimento de presunção, se o coração está cheio de preconceitos, Satanás se acha ao vosso lado, e apresentará as declarações simples da Palavra de Deus numa luz pervertida” (Testemunhos Para Ministros e Obreiros Evangélicos, p. 108).

A função do Espírito Santo na hermenêutica

O Espírito Santo dirige o processo hermenêutico

As conhecidas palavras de Jesus de que “quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade” (João 16:13) identifica o Espírito Santo como estando no encargo básico do processo hermenêutico. Além disso, Suas palavras também prometem que o intérprete será recompensado com a compreensão da verdade pesquisada. Se alguém tem de descobrir a verdade, a causa final será a ação do Espírito Santo.

Ainda mais, a orientação é comum a todos porque o pronome “vos” neste texto é plural. Isto sugere o valor da participação mútua da comunidade no que tange à natureza e descoberta da verdade. Em outras palavras, o Espírito da verdade guia uma comunidade de crentes em compreensões complementares, não contraditórias, de uma verdade específica. Isto pode proteger contra o injustificado absolutismo de um indivíduo carismático na hermenêutica.

A pesquisa bíblica por meio da razão regenerada, conforme demonstrada pelos bereanos, indica que o trabalho hermenêutico envolve um processo caracterizado como “examinando as Escrituras… para ver se as coisas eram, de fato, assim” (Atos 17:11). Isto sugere uma investigação comparativa temática de várias passagens bíblicas a fim de descobrir o ensino bíblico concernente a um ponto específico em discussão. Um texto esclarece o outro, sugerindo não apenas a unidade das Escrituras, mas que as Escrituras são o seu próprio intérprete. Consequentemente, as Escrituras não devem ser submetidas a uma suposta autoridade superior como a tradição ou a razão humana.

É precisamente no processo de pesquisa em que se compara uma passagem com a outra que o Espírito Santo desempenha uma importante função resumida por Ellen G. White: “É a função do Espírito Santo dirigir essa pesquisa e recompensá-la” (1888 Materials, vol. 4, p. 1538). Sendo este o caso, significa que quanto mais intensos forem os esforços humanos para interpretar corretamente as Escrituras, nas palavras de Ellen G. White, “provar-se-ão um completo fracasso, a menos que o próprio Senhor pelo Seu divino poder Se associe ao instrumento humano. ‘Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos’ [Zacarias 4:6]” (Manuscript Release, vol. 4, p. 310). Isto mostra que o método humano de comparar passagem com passagem deve ser guiado pelo Espírito Santo.

A mente transformada e a mente de Cristo

O intérprete bíblico deve tornar-se um filho do Espírito para compreender as coisas do Espírito. Nas palavras de Paulo, “temos recebido… o Espírito… para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente” (1Coríntios 2:12). Em outras palavras, o intérprete bíblico precisa ser “nascido do Espírito” (João 3:6), do contrário as “coisas do Espírito” permanecerão para sempre, hermeneuticamente falando, loucura para a mente natural e pecaminosa (1Coríntios 2:14). Isto significa que por intermédio da obra do Espírito que Deus prepara a mente de alguém para a interpretação bíblica.

Tendo a mente de Cristo. As palavras de Paulo: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo” (1Coríntios 12:13), podem indicar que o conceito de ser “nascido do Espírito” (João 3:8) pode ser comparado qualitativamente ao conceito de ser “batizados com o Espírito Santo” (Atos 1:5). Nesse caso, o intérprete bíblico faria bem em pedir com fé e receber o batismo do Espírito Santo, a fim de estar, desse modo, preparado intelectual, moral e emocionalmente para interpretar a Palavra de Deus. Esse preparo efetuado pelo Espírito Santo é descrito por Paulo como a transformação da mente do intérprete de uma “mente carnal” para a “mente de Cristo”.

Uma passagem hermenêutica essencial em toda a Escritura encontra-se em Filipenses 2:5. Aqui Paulo exorta as pessoas: “Que esteja em vós essa mente que esteve também em Cristo Jesus”. Nesta passagem a palavra para “mente” em grego é phroneo, que significa “pensar, refletir”, ou “resolver-se, pôr na cabeça”. Paulo indica que ele tem “a mente de Cristo” (1Coríntios 2:16).

Qual é o significado hermenêutico de ter a mente de Cristo? Na América do Norte, uma bem-conhecida e relevante partícula de sabedoria de pescador diz mais ou menos isto: “Se você quer pegar um peixe, você precisa pensar como um peixe”. Sendo feitos os ajustes necessários, este conselho é perfeitamente apropriado para a hermenêutica bíblica. Se alguém deseja captar o verdadeiro significado da Palavra de Deus ou interpretá-la corretamente, precisa pensar como Deus. A fim de pensarmos como Deus precisamos ter a mente de Deus. É isto possível? Alcançar esse extraordinário objetivo é precisamente a real possibilidade humana que Paulo trata na passagem de Filipenses.

Em outra parte, Paulo contrasta a mente de Cristo no ser humano com a arrogante “mente carnal” (Colossenses 2:18), também descrita como “o pendor da carne” (Romanos 8:7). Paulo indica que tal mente está em inimizade contra Deus e contra Sua lei (Romanos 8:7) e que esse tipo de mente não pode compreender as coisas do Espírito (1Coríntios 2:14).5 Em outras palavras, ter uma “mente carnal” é um empecilho para a hermenêutica.

Dada a necessidade de o intérprete bíblico ter a mente de Cristo em hermenêutica, como é a “mente carnal”, humana, natural, irregenerada transformada na “mente de Cristo”? Outra vez, Paulo abre o caminho para nossa reflexão sobre este assunto. Não devemos nos conformar como este mundo, mas devemos ser transformados “pela renovação” da nossa mente (Romanos 12:2). Como ocorre essa transformação renovadora? Respondendo a esta pergunta, Paulo apela para a obra do Espírito Santo em Sua bênção da nova aliança (2Coríntios 3:3). De acordo com Paulo, o Espírito Santo, mediante solicitação de qualquer indivíduo, e por meio do estudo das Escrituras, criará no crente a mente de Cristo.

Velamento da mente natural. A argumentação de Paulo sobre o véu que embota ou cega (2Coríntios 3:14 a 18) tem sugerido muito comentário erudito.6 Para nossos propósitos notamos que o ponto básico é o de que o intérprete bíblico contemporâneo também enfrenta o desafio desse véu obscurecedor. Paulo descreve seu efeito sobre os judeus de seus dias, dizendo: “Mas os sentidos deles [antigos israelitas] se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, [na mente dos judeus dos dias de Paulo] o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo, é removido” (2Coríntios 3:14).

O que causou a mudança na compreensão de Cristo como rei temporal para o Cristo crucificado? Paulo responde a esta interrogação: “Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu lhe é retirado. Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Coríntios 3:16 e 17). Esta passagem atribui a nova interpretação diretamente à poderosa obra da terceira pessoa da Divindade. Desse modo, Paulo parece estar sugerindo que é pela obra do Espírito Santo que o intérprete pecaminoso, espiritualmente cego é habilitado a compreender o Antigo Testamento como apontando ao futuro para o Cristo crucificado.

O Espírito Santo ilumina o intérprete

Jesus apresenta uma notável e animadora promessa concernente ao poder hermenêutico do Espírito Santo: “Mas o Consolador, o Espírito Santo, … vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (João 14:26). Que possibilidades hermenêuticas poderiam trazer estas palavras! À luz desta passagem, o Espírito pode trazer à mente do intérprete bíblico os ensinamentos explanatórios de Jesus encontrados, por exemplo, no Sermão da Montanha e nas parábolas de Jesus.

Além disso, se aquilo que o Espírito Santo traz à mente de um intérprete bíblico pode ser ampliado até abranger a coleção completa da Palavra escrita de Deus, o Espírito Santo dispõe de toda a extensão do Antigo e Novo Testamentos dos quais pode extrair material para ajudar o intérprete. A ideia essencial é a de que o exegeta bíblico pode saber que, mediante solicitação, o Espírito Santo trará à mente passagens e imagens bíblicas que, de outra forma, poderiam não estar presentes. Esta é uma prestimosa e significativa promessa hermenêutica mostrando a necessidade de fé no Espírito Santo. Isto ajuda a mostrar a base racional que sublinha a veracidade da seguinte asserção hermenêutica: “Precisamos de mais fé se quisermos ter melhor conhecimento da Palavra” (Manuscript Release, vol. 11, p. 3).

Sumário

A razão como uma ferramenta. Temos visto que o dom divino da razão deve ser defendido fortemente e empenhado rigorosamente no processo hermenêutico. A reflexão profunda, cuidadosa e envolvida é essencial para a idônea interpretação bíblica. A confiança no Espírito Santo não deve substituir o contínuo esforço das faculdades racionais humanas. Estas duas realidades são complementares, não mutuamente exclusivas. Conquanto a razão humana esteja caída, ela pode ser santificada pelo Espírito Santo e, assim, tornar-se adequada para pesquisar com humildade, voluntariamente e por indução todas as relevantes passagens com referência a um assunto bíblico. Essa espécie de pesquisa ajuda a reduzir as interpretações equivocadas das Escrituras.

A fé como base. A Bíblia apoia a postura da fé que procura compreender a abordagem adequada da relação entre fé e razão. Conquanto a razão e a fé teoricamente sejam complementares em hermenêutica, às vezes elas parecem entrar em conflito. Em tais casos, o intérprete, por meio da fé, deve elevar os ensinos da Escritura acima das reivindicações da razão.

Potestades espirituais. Trava-se um grande conflito a respeito da interpretação das Escrituras. A influência hermenêutica das potestades espirituais precisa ser reconhecida em nossa era racionalista. Os anjos não caídos e o Espírito Santo procuram influenciar a mente do intérprete das Escrituras enquanto que, ao mesmo tempo, os anjos maus e Satanás operam para contrariar a influência celestial.

O Espírito e a interpretação. A função do Espírito Santo na hermenêutica é multidimensional de quatro formas: (1) o Espírito Santo guia o processo hermenêutico; (2) pelo batismo do Espírito Santo, o intérprete bíblico é equipado com a mente de Cristo e preparado para a tarefa hermenêutica com uma mente suavizada e desvelada, tornando-se, desse modo, responsiva à direção do Espírito Santo; (3) o Espírito Santo traz as verdades e imagens bíblicas à mente do intérprete; (4) ele ilumina a mente do intérprete com novo significado.

Orientação divina. Sem a assistência sobrenatural do Espírito Santo e dos anjos celestiais, não pode haver nenhuma interpretação apropriada das verdades das Escrituras, não importa quão arduamente alguém empregue os poderes do raciocínio. O Espírito que inspirou a Bíblia é necessário para sua correta interpretação.

Esta conclusão sublinha a necessidade de o intérprete comungar constantemente com o Espírito Santo, solicitando a iluminação divina e a influência dos santos anjos a fim de compreender e aplicar adequadamente os tesouros do Antigo e do Novo Testamento (Lucas 11:13).

Outra vez, acima de tudo, a hermenêutica não pode ser feita desacompanhada. O intérprete das Escrituras que, como Paulo, tem a mente de Cristo e humildemente segue um processo hermenêutico que envolve a razão santificada, está sujeito à influência dos santos anjos e à direção iluminadora do Espírito Santo. Para tal intérprete, as recompensas são, de fato, magníficas.

Referências

  1. Veja a obra influente de Alvin Plantinga intitulada Warranted Christian Belief (New York: Oxford University Press, 2000).
  2. Cf. Jon Paulien, “The Final Deception An Evil, Counterfeit Trinity Is Now Making Ready for War”, Adventist Review, 29 de out. 1998, p. 10.
  3. Veja Church Dogmatics, vol III, capítulo 3: The Doctrine of Creation, de Karl Barth (Edinburgh, T. & T. Clark, 1960), p. 519-531; Systematic Theology, de Paul Tillich (Chicago: The University of Chicago Press, 1951-1957), 1:134, 2:27; “New Testament and Mythology”, em Kerigma and Myth: A Theological Debate, de Rudolf Bultmann, ed. Hans Werner Bartsch, trad. Reginald H. Fuller (Londres: S.P.C.K., 1957), p. 4-5.
  4. Merrill F. Unger, Biblical Demonology (Wheaton, IL: Van Kampen Press, Inc., 1953), p. 166.
  5. As implicações hermenêuticas do ensino bíblico concernente à mente humana “natural” e à mente regenerada recebem criterioso tratamento no seguinte artigo: Frank Hasel, “Theology and the Role of Reason”, Journal of the Adventist Theological Society 4, nº 2 (outono de 1993): 72-198.
  6. Veja Philip E. Hughes, Paul’s Second Epistle to the Corinthians: the English Text with Introduction, Exposition and Notes, The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1962), p. 110-121.

Bibliografia selecionada

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John T. Badwin, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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PRESSUPOSIÇÕES NA INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS

Introdução

A noção de pressuposições desempenha uma função importante na interpretação bíblica. Todos nós mantemos várias crenças que pressupomos ou aceitamos quando deparamos com a tarefa de interpretar as Escrituras. Ninguém é capaz de se aproximar do texto bíblico com uma mente em branco.

As pressuposições delimitam as fronteiras dentro das quais a interpretação bíblica pode e deve funcionar devidamente. Também determinam o método e, por meio do método, também influenciam, a um ponto considerável, o resultado de nossa interpretação. Em outras palavras, elas afetam diretamente nossa teologia e a autoridade que as Escrituras têm para nossa vida e para a doutrina. Por sua vez, nossa teologia influencia a identidade espiritual e teológica e, finalmente, também a missão da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

A aceitação de pressuposições bíblicas cristãs levará a conclusões muito diferentes de, por exemplo, um compromisso com pressuposições naturalistas e mesmo ateístas. Sendo que o método de interpretação é inseparável de suas pressuposições, as respectivas pressuposições invariavelmente influenciam o resultado. Se o método de interpretação exclui intervenções sobrenaturais, as Escrituras não serão lidas e compreendidas como relatos verdadeiros e confiáveis, mas interpretada diferentemente. Assim, ao menos até certo ponto, a conclusão pode estar implícita dentro da metodologia. O grande problema tem a ver com o método correto e adequado. Tudo o mais segue no devido curso.

Neste capítulo, sem a pretensão de sermos exaustivos, salientaremos as pressuposições básicas de uma autêntica hermenêutica bíblica adventista e descreveremos alguns princípios hermenêuticos gerais a serem derivados delas.

O desafio hermenêutico

Os intérpretes da Bíblia não podem se livrar do seu próprio passado, suas experiências, ideias fixas e noções e opiniões preconcebidas. É um truísmo aceito que neutralidade total, ou absoluta objetividade, não pode ser atingida no ato da interpretação. A exegese e a reflexão teológica sempre ocorrem contra o pano de fundo de pressuposições fundamentais acerca da natureza do mundo e da natureza de Deus. Há, inevitavelmente, uma compreensão prévia em torno da qual o intérprete inclinará sua investigação. Mesmo os chamados pesquisadores objetivos ou de ciências exatas agora reconhecem a influência dos valores.

A espiral hermenêutica

Reconhecemos que, ao objeto sob investigação, deve ser permitida alguma influência na determinação da abordagem apropriada. Uma teologia teocêntrica requer uma metodologia teocêntrica. Qualquer compreensão pessoal prévia, tal como evolução, que questiona ou nega a dimensão sobrenatural da qual as Escrituras claramente testificam, é estranha à Bíblia e não estará à altura do tema da Palavra de Deus. Nossas pressuposições e precompreensões devem ser modificadas e reformadas pelo texto da Sagrada Escritura e permanecer sob o controle da própria Bíblia. O texto bíblico deve ter prioridade sobre o intérprete.

Se lidamos com a Bíblia, então devemos permitir que a Bíblia determine nossas pressuposições e metodologia em vez da física, matemática ou biologia. O intérprete bíblico deve perceber que a compreensão da Bíblia aumenta por meio da reforma da mente e do coração pela leitura das Escrituras. A sucessiva exposição à Palavra de Deus, por meio da qual o intérprete é capaz de alinhar cada vez mais sua precompreensão com a verdade bíblica, pode ser comparada a uma espiral hermenêutica. Devemos dar lugar à Bíblia para que nos ensine suas próprias categorias essenciais. Isto habilita o intérprete bíblico a pensar cada vez mais com o texto bíblico em vez de simplesmente pensar acerca do texto da Bíblia. Assim, “Deus mesmo, por meio da Bíblia e do Espírito Santo cria no intérprete as pressuposições necessárias e a perspectiva essencial para a compreensão das Escrituras”.1 A Bíblia consistentemente demonstra que as pessoas não estão de tal modo cativas à sua compreensão prévia que não possam ser transformadas. Em Tessalônica, por exemplo, Paulo “arrazoou com eles acerca das Escrituras, expondo e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos” (Atos 17:2 e 3). Como resultado “alguns deles foram persuadidos e unidos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas distintas mulheres” (Atos 17:4).

Pressuposições bíblicas

Um Deus pessoal que fala e age

Em nenhuma parte das Escrituras os escritores bíblicos tentam provar a existência de Deus. Em vez disso, é simplesmente afirmado desde o início (Gênesis 1:1). No Novo Testamento a mensagem é semelhante: os que se aproximam de Deus devem “crer que Ele existe” (Hebreus 11:6). Nossa fonte de informação acerca de Deus é a Sua própria revelação pessoal (Hebreus 1:1 a 3), fielmente registrada nas Escrituras (Romanos 16:26). Embora seja impossível conhecer a Deus completa e exclusivamente, a Bíblia nos provê conhecimento verdadeiro suficiente que nos habilita a entrar em um relacionamento amoroso e salvífico com Ele. O testemunho próprio das Escrituras é de importância decisiva.

Quando falamos do “Deus vivo” queremos dizer que Deus é essencialmente pessoal e que ele fez-se conhecido de uma maneira sumamente pessoal, particularmente na encarnação de Cristo. Como o Deus vivo, ele é um Deus pessoal que fala e age. Um dos Seus atos comunicativos pode ser visto em Sua revelação. As coisas que Deus nos revelou são para que conheçamos (Amós 3:7; Deuteronômio 29:29). A revelação divina gera as Escrituras (2Pedro 1:19 a 21). Ao originar as “Sagradas Escrituras” (Romanos 1:2), Deus utilizou instrumentalidades humanas. Deus não lhes eliminou a individualidade nem lhes suprimiu a personalidade. E, no entanto, o Espírito Santo conduziu os escritores bíblicos, guiando-lhes a mente e os pensamentos na escolha do que falar e assistindo-os no que escrever para que eles fielmente registrassem em fidedignas e apropriadas palavras as coisas que lhes foram divinamente reveladas. Deste modo, os adventistas do sétimo dia afirmam que “toda a Escritura é uma indivisível e indistinguível união do divino e o humano”.2

A humanidade criada para a comunhão com Deus

Adão e Eva, criados à imagem divina, eram capazes de corresponder a Deus e de entrar em uma comunhão significativa com seu Criador. Deus, que criou o ser humano com a capacidade de falar e pensar, é retratado nas Escrituras como usando a linguagem humana para comunicar-se com os seres humanos (Gênesis 1:28; Gênesis 3:9; Êxodo 4:11, 12, 15 e 16; 1Samuel 3:2). Os seres humanos são descritos como sendo criados com a capacidade de compreender corretamente a Deus. Portanto, são responsáveis diante de Deus, seu Criador.

O poder demolidor do pecado

A entrada do pecado, porém, alterou radicalmente, rompeu e fraturou este inicialmente puro e santo relacionamento com Deus. Apesar de o pecado ter desfigurado e distorcido a imagem de Deus no homem, não a destruiu completamente. De outra forma, o raciocínio e a criatividade humana seriam difíceis de sondar, e exemplos genuínos de amor e sacrifício por outros seriam enigmáticos.3

Conquanto a origem do pecado permaneça um mistério que não pode ser elucidado completamente, é claro que o orgulho, a insatisfação com o cargo e o desejo de ser como Deus foram os pecados que levaram Lúcifer e os anjos caídos a se revoltarem contra Deus (Isaías 14:12 a 14; Ezequiel 28:11 a 19). O pecado é o desejo de cruzar as fronteiras da condição de criatura na tentativa de tornar-se como Deus, um rompimento da relação essencial Criador-criatura, e o desejo de viver uma vida independente, egocêntrica e autossuficiente sem Deus. Esta separação de Deus tem afetado nossa natureza humana e corrompido todos os aspectos e dimensões de nossa existência, inclusive nossas faculdades de raciocínio e nossa capacidade de compreensão.

Os efeitos do pecado sobre a interpretação das Escrituras. É raro nas discussões hermenêuticas encontrar uma descrição dos efeitos do pecado sobre a tarefa da interpretação bíblica.4 Contudo, várias predisposições interiores indicadas nas Escrituras são obstáculos para se atingir uma compreensão mais profunda e correta da verdade bíblica. Não é apenas que nosso sistema de pensamento humano seja empregado para fins pecaminosos; nossa mente e nossos pensamentos tornaram-se corrompidos e, desse modo, fechados à verdade divina.

Orgulho. Talvez a principal característica dessa corrupção seja o orgulho. Segundo a Bíblia, o orgulho está na própria raiz e na essência do pecado. Por que os fariseus do tempo de Jesus foram incapazes de reconhecer a Jesus Cristo como o Messias? Jesus os chama de espiritualmente cegos, porque sua orgulhosa pretensão de que “podiam ver” era um obstáculo para reconhecer a autorrevelação de Deus em Jesus (João 9:39 a 41; João 12:43). Em 2Timóteo 3:2 e 3 o orgulho ocorre em uma lista que descreve as características dos homens ímpios dos últimos dias. Ele conduz a ensinos errôneos e atos pecaminosos (2Timóteo 4:3 e 4; 1Timóteo 6:3 e 4).

Orgulho é uma atitude para com Deus e sua Palavra em que a pessoa orgulhosa é caracterizada por uma mentalidade arrogante que se eleva a si mesma acima de Deus e de sua Palavra e, assim, perde qualquer equilíbrio que poderia originar-se de um reconhecimento da verdadeira posição de alguém em relação a Deus e à sua Palavra.

Deus “resiste aos soberbos, contudo, aos humildes concede a sua graça” (1Pedro 5:5). O orgulho leva o intérprete a enfatizar demais a razão humana ou preocupações existenciais como o árbitro final do que alguém deve conhecer, crer e obedecer, e, ao mesmo tempo, deprecia a autoridade divina e a inspiração das Escrituras.5 Não é sem razão que Ellen G. White escreveu: “O pecado que é quase desesperador e incurável é o orgulho de opinião, a presunção. Isto impede todo crescimento” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 7, p. 199 e 200).

Autoilusão. Ligado ao obstáculo do orgulho está o problema da autoilusão. O pecado afetou todos os aspectos da nossa existência humana, inclusive nossa maneira de pensar e nossos desejos. Como pecadores, somos inclinados a ouvir apenas aquelas ideias que nos parecem atrativas, mas que não correspondem necessariamente à vontade revelada de Deus. A autoilusão é um perigo real, porque “enganoso é o coração, mais do que todas as cousas” (Jeremias 17:9). Deus nos tem advertido acerca do perigo da autoilusão, que leva a uma compreensão errônea da nossa situação (Apocalipse 3:17).

A autoilusão também afeta a devida compreensão da Palavra escrita de Deus (2Timóteo 4:3 e 4; 2Timóteo 3:13). O apóstolo Paulo instrui Timóteo e todos os crentes a não se tornarem vítimas dessa autoilusão. Devem pregar a Palavra e viver um estilo de vida coerente modelado de acordo com a instrução encontrada na Palavra de Deus (2Timóteo 4:2 e 5). É a Palavra escrita de Deus que constitui uma lâmpada para os nossos pés e uma luz para o nosso caminho (Salmos 119:105). É o Espírito Santo, operando em nosso coração por intermédio da Palavra de Deus, quem aclara nossa autoilusão e ilumina as trevas do nosso entendimento.

Dúvida. A dúvida é uma experiência dolorosa. Duvidar significa “vacilar na opinião de alguém”; significa “estar indeciso acerca da verdade de alguma coisa” e “questionar a veracidade de uma ideia”; o que duvida está “inclinado a não crer na verdade de uma asserção”.6 A dúvida como parte de uma metodologia crítica abafa a certeza da Palavra de Deus e enfraquece a convicção da fé. Uma abordagem caracterizada pela dúvida “nunca é capaz, por si mesma, de chegar a um conhecimento salvífico e santificador da verdade divina. Precisamente como a fé é a condição para o conhecimento (2Coríntios 4:13), assim a dúvida ou o ceticismo é a condição para permanecer em ignorância da verdade.7

A incerteza apenas se aprofunda quando uma pessoa duvidosa é confrontada com o testemunho verbal ou escrito da verdade (João 5:46 e 47), “porque tal declaração demanda a transferência de autoridade da própria razão de alguém como o árbitro final para o testemunho que é declarado ser verdadeiro”.8 Tem-se salientado que a fonte deste problema “jaz não em uma espécie de evidência apresentada à razão, mas na autônoma postura céptica da razão em face de toda evidência. Quando alguém começa com dúvida, a avaliação do texto nunca levará à certeza”.9 O intérprete que duvida das declarações das Escrituras julga a Palavra de Deus e, desse modo, eleva-se a uma posição em que imagina conhecer o que é aceitável e o que não é. Deus, porém, não pede uma atitude de “crítica” e “dúvida” para se obter uma compreensão de Sua Palavra, mas requer fé. Conquanto as Escrituras nos exortem a ser compassivos com os “que estão na dúvida” (Judas 22), Jesus rejeita a dúvida complacente (Mateus 16:1 a 4).

Distância e distorção. A natureza e consequência do pecado humano é descrita em Isaías 59:2 como “separação” entre a humanidade e Deus que esconde de nós o seu rosto. Esta foi a experiência de Adão e Eva no jardim do Éden. Embora Deus ainda procure contato e comunicação com a raça humana, a distância criada pelo pecado leva a uma distorção do nosso conhecimento de Deus. Uma atitude de dissecar criticamente as Escrituras, assim fragmentando e distorcendo sua unidade dada por Deus, é aguçada e estimulada pelo exercício. Nas palavras de Ellen G. White:

“Os que pensam tornar claras as supostas dificuldades da Escritura determinando por sua regra finita o que é inspirado e o que não o é, melhor fariam em cobrir o rosto… Quando homens, em seu juízo finito, julgam necessário fazer um exame de textos para definir o que é inspirado e o que não é, estão dando um passo adiante de Jesus a fim de mostrar-Lhe um caminho melhor do que aquele em que Ele nos tem guiado… Irmãos, nenhuma mente ou mão se empenhe em criticar a Bíblia. É uma obra que Satanás se deleita que qualquer de vós faça, mas não é obra a vós designada pelo Senhor.

Os homens devem deixar que Deus cuide de Seu próprio Livro, Seus oráculos vivos, como Ele tem feito por séculos. Eles começam a pôr em dúvida algumas partes da revelação, e acham falhas nas aparentes incoerências desta e daquela declaração. Começando em Gênesis, eles rejeitam aquilo que julgam questionável, e sua mente os leva adiante, pois Satanás levará a qualquer extensão a que eles o sigam em sua crítica, e vejam alguma coisa de que duvidar em todas as Escrituras. Suas faculdades de crítica são aguçadas pelo exercício, e não podem repousar em nada com certeza (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 17 e 18).

Em vez de ser capaz de ver unidade nas Escrituras, a Bíblia e suas mensagens são fragmentadas quando a razão humana caída aplica pressuposições estranhas e hostis à tarefa de interpretar as Escrituras, resultando em uma perda da autoridade bíblica. Em tal caso, a autoridade é transferida para o intérprete, que escolhe a que voz ele dará ouvidos entre a pluralidade de vozes.

Além disso, a razão humana caída também introduz distorção por meio da interpretação das Escrituras por meio dos “raciocínios falazes” ou “palavras persuasivas” (Colossenses 2:4; 2Timóteo 4:3 e 4; 2Pedro 3:16), que, não obstante, enganam. Por exemplo: “A alegação de que não se pode conhecer a verdade absoluta leva à distorção, significando que a verdade das Escrituras será interpretada como informação pessoal em vez de informação concreta que corresponde à realidade”.10 A distorção também pode ocorrer quando as preocupações correntes do intérprete não combinam com o que é atinente ao texto e o intérprete faz indagações que o texto não pode responder ou o texto está dando respostas que o intérprete não está preparado para aceitar. As Escrituras nos dizem que o pecado nos cega quanto à verdade divina (Romanos 1; 1Coríntios 1 e 2). Isto significa que o pecado impede o intérprete de reconhecer conclusões autorizadas.

Desobediência. Desobediência, a indisposição de seguir a vontade revelada de Deus, também afeta negativamente nossa capacidade de compreender corretamente as Escrituras. A desobediência é companheira do orgulho e é pecado. O pecado intencional é de fato uma barreira no conhecimento da verdade divina (Salmos 66:18). Recusando admitir que precisamos aprender coisas novas da Palavra de Deus, resistimos às verdades espirituais e nos tornamos insensíveis a elas. A oposição persistente e a rejeição da verdade revelada de Deus levam a um ponto em que o desobediente torna-se incapaz de ouvir corretamente e compreender a Palavra de Deus.

Atitudes e pressuposições necessárias para a interpretação das Escrituras

Precisamente porque Deus nos encontra nas Escrituras e nos encontra ali para um propósito específico, a abordagem no estudo da Escritura, em quaisquer outras condições que não sejam aquelas delineadas na Palavra de Deus, é aproximar-se de Deus com uma atitude errada. Necessitamos de uma disposição de espírito e de coração que leve à compreensão. Isto não é obtido simplesmente por meio de certas técnicas exegéticas.

Abertura e honestidade. Uma das atitudes fundamentais necessárias para uma compreensão adequada da mensagem bíblica é uma mentalidade aberta imbuída de uma disposição para aprender, uma mentalidade receptiva à mensagem e ao conteúdo que estão sendo estudados. Nas palavras de Ellen G. White:

“Ao estudardes a Palavra, deixai à porta de vossas pesquisas as opiniões preconcebidas, bem como as ideias hereditárias e cultivadas. Jamais conseguireis a verdade, caso estudeis as Escrituras a fim de vindicar as próprias ideias… Se, ao lerdes, vos sobrevém convicção, e vedes que vossas acariciadas opiniões não se encontram em harmonia com a Palavra, não tenteis fazer com que esta se conforme com as mesmas opiniões. Ajustem-se elas à Palavra” (Mensagens aos Jovens, p. 260).

Sem tal honestidade e abertura, nenhuma mudança ou correção é possível no que se refere à precompreensão. A honestidade visa aos motivos com que o intérprete aborda o texto bíblico e também inclui uma abertura ao uso dos métodos adequados de interpretação.

O ponto de partida ideal é uma mente aberta, não uma mente vazia. Ninguém se dirige às Escrituras com uma cabeça vazia. Mas o intérprete tem de abordar o texto bíblico com a disposição de abrir suas convicções fundamentais ao poder transformador do Espírito Santo de Deus, que está operando com a Palavra escrita e por meio dela. Conscientemente, temos de permitir que a Bíblia molde e transforme nossa precompreensão. Deus prova o coração e se agrada da sinceridade (1Crônicas 29:17; Provérbios 2:7).

É dada nas Escrituras a promessa de que qualquer que estiver disposto a fazer a vontade de Deus conhecerá se os ensinamentos procedem de Deus ou não (João 7:17). Essa honestidade torna acessível a possibilidade de vencer a subjetividade humana permitindo que Deus fale ao intérprete no texto das Escrituras e por meio dele.

A disposição de aprender da Palavra de Deus habilita o intérprete a entrar num processo de compreensão que pode ser comparado a uma espiral hermenêutica. Em primeiro lugar, conduz de um reconhecimento das ideias bíblicas para uma aceitação dessas ideias e, depois, para uma percepção mais íntima e mais adequada do tema da Bíblia, levando a uma nova investigação e mais profunda compreensão. Assim, o intérprete bíblico que está disposto a atribuir à palavra das Escrituras a primazia fundamental para o correto significado da mensagem bíblica é capaz de crescer continuamente em sua compreensão dessa mensagem.11

Fé. Sem fé é impossível agradar a Deus (Hebreus 11:6). O apóstolo já afirmou que uma verdadeira compreensão da Escritura Sagrada só é possível por meio do Espírito Santo (1Coríntios 2:14), que ilumina nosso entendimento a fim de que possamos conhecer (Efésios 1:18). É a fé que torna acessível ao leitor as verdades espirituais da Palavra de Deus. Conquanto as Escrituras possam ser lidas como qualquer outro livro, sem fé não podem ser compreendidas corretamente no sentido bíblico, porque o tema ou matéria de estudo da Bíblia, que é Deus, está disponível apenas ao crente. Saber e compreender no sentido bíblico envolvem muito mais do que simplesmente um reconhecimento intelectual. Também abrangem uma dimensão relacional e comunicativa que inclui o envolvimento de toda a pessoa no ato de conhecer. Fé é o lugar no qual o conhecer é possível.

A pessoa que tenta ler a Bíblia simplesmente como qualquer outro livro não faz justiça à sua natureza divino-humana. A interpretação das Escrituras não alcança o seu objetivo se for examinada apenas sua dimensão humana. A leitura das Sagradas Escrituras deve ter em vista uma interpretação em que Deus, o Autor das Escrituras, está sendo reconhecido e ouvido. E isto só é possível a partir de uma atitude de fé. Sem fé não é possível nenhum crescimento no conhecimento humano.

O próprio Jesus demonstrou completa confiança nas Escrituras (João 10:35). Ele aceitou o cânon do Antigo Testamento (Lucas 24:44) e reconheceu as Escrituras como a norma autorizada para nossa vida (Mateus 4:4). Não duvidava das Escrituras; em vez disso, apoiava-se nelas como uma palavra fidedigna para derrotar Satanás (Mateus 4:6 e 7). Depois da Sua ressurreição, Jesus repreendeu os discípulos no caminho de Emaús por serem néscios e “tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!” (Lucas 24:25). A falta de fé leva a uma compreensão deficiente das Escrituras.

Humildade. Uma das mais importantes pressuposições para o conhecimento da verdade é a humildade. A atitude de humildade expressa a disposição e modéstia de alguém em submeter suas crenças a uma autoridade mais elevada. Por intermédio da humildade é obtido o mais alto e mais profundo conhecimento de Deus, ou seja, a consciência de que somos dependentes de Deus para obtermos verdadeiro conhecimento, de que o homem não é a medida final de tudo. Em vez disso, o intérprete está disponível para ser dirigido e ensinado pelo Espírito Santo. Porque “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tiago 4:6). A humildade expressa o despretencioso discernimento de que Deus e Sua Palavra são maiores do que nossa razão humana e maiores do que nossa atual compreensão. Há sempre mais luz a irromper da Palavra de Deus. Esta subordinação da razão humana à autoridade mais elevada da Palavra de Deus é expressa assim:

“Deus deseja que o homem exercite suas faculdades de raciocínio… Convém, entretanto, acautelar-nos contra o deificar a razão, a qual está sujeita à fraqueza e enfermidade humanas… Ao lermos a Bíblia, a razão deve reconhecer uma autoridade superior a si própria, e o coração e a inteligência se devem curvar perante o grande EU SOU” (Caminho a Cristo, p. 110).

Qualquer que quiser compreender a Bíblia, e por meio da Bíblia, a Deus, ao mundo, e a si mesmo, deve permitir que seja dada às Escrituras prioridade normativa sobre suas próprias experiências e avaliações.

Obediência. A obediência é o caminho para mais profunda compreensão. Reflete o princípio bíblico de que ao respondermos à luz que temos é dada mais luz (Salmos 119:100; Atos 5:32; 1João 2:3). Na interpretação das Escrituras “não é suficiente ter dominado uma técnica exegética de oito passos; é igualmente um assunto de espiritualidade. Os intérpretes bíblicos têm de ser aprendizes voluntários, estudantes que estão dispostos a viver e a olhar ‘ao longo do texto’, segundo as Escrituras”.12 Porque a verdadeira finalidade do nosso trabalho hermenêutico é uma vida consagrada. A compreensão bíblica nunca é abstrata e teórica. É a compreensão da vontade e da obra do Deus vivo, que constantemente procura transformar-nos mais plenamente à Sua semelhança. Destarte, a compreensão bíblica envolve finalmente a reivindicação de Deus sobre nossa vida e o Seu propósito para ela à luz de tudo o que Ele nos tem revelado. Significa conhecer e praticar a verdade divina; tal compreensão é um dom de Deus (Efésios 3:16 a 19; Filipenses 3:15 e 16).

Amor. O requisito supremo para a compreensão da mensagem bíblica é simpatizar com o assunto ou matéria de estudo. É um fato indiscutível que para conhecermos realmente e apreciarmos alguma coisa precisamos amá-la. É a virtude do amor, fé e obediência que tornará acessível ao leitor o tesouro da Palavra de Deus. Não se pode amar sinceramente a Deus e criticar sua revelação de longe.

Oração. Por último, mas não menos importante, a oração leva o intérprete a explorar a Bíblia partindo de uma perspectiva diferente. Quando Daniel orou, foi-lhe concedida compreensão e discernimento (Daniel 2:18 e 19; Daniel 6:10). Lemos no Salmo 119:18: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei.” Pela oração, reconhecemos a necessidade do auxílio do Espírito Santo de Deus a fim de que compreendamos o que Ele inspirou.

Princípios hermenêuticos

Não podemos esperar compreender corretamente a Palavra escrita de Deus se a tratamos como qualquer outro livro. Os princípios de nosso estudo da Bíblia devem então ser coerentes com os princípios que governam todo o nosso relacionamento com Deus.13 Isto significa que o nosso estudo das Escrituras deve ser tanto acadêmico quanto devocional, envolvendo a mente e o coração na pesquisa para descobrir o verdadeiro significado do texto.

Somente pelas Escrituras – sola scriptura

Desde o início os crentes adventistas têm-se considerado como o povo do Livro, literalmente como cristãos crentes na Bíblia na tradição plena dos Reformadores do século 16.14 Os adventistas do sétimo dia reconhecem que para uma interpretação correta das Escrituras, as próprias Escrituras são fundamentais (1Coríntios 4:6). Portanto, eles ratificam o princípio escriturístico sumarizado no slogan da Reforma: sola scriptura – pelas Escrituras somente. Este apelo reconhece a autoridade única das Escrituras.

As Escrituras somente são a norma predominante (norma normans). Outras autoridades tais como experiência religiosa, razão humana e tradição são regidas pelas Escrituras (elas são normas dirigidas, norma normata). De fato, o princípio sola scriptura foi planejado para salvaguardar a autoridade das Escrituras da dependência de outras fontes, tais como a Igreja, e evitou a possibilidade de que a regra de sua interpretação pudesse vir de fora.

As Escrituras interpretam as Escrituras. Uma característica hermenêutica do princípio sola scriptura é a sua autointerpretação. Não é a tradição, a razão humana, ou a experiência religiosa, a cultura, ou o veredito de sábios e líderes que constitui a fonte e norma para a interpretação das Escrituras. As Escrituras somente são a chave que descerra as Escrituras.

Compreender sola scriptura, neste sentido, não exclui a realidade das influências culturais ou a realidade da experiência religiosa. Manter que passagem interpreta passagem não anula o critério de outros campos de estudo, tais como arqueologia bíblica, antropologia, sociologia, ou história, que podem iluminar alguns aspectos bíblicos e os antecedentes de passagens escriturísticas, contribuindo para uma melhor compreensão do significado do texto bíblico. Nem exclui o auxílio de outros recursos no trabalho de interpretação, tais como léxicos bíblicos, dicionários, concordâncias, ciências, e ajudas secundárias. Outras opiniões têm de ser cuidadosamente avaliadas do ponto de vista das Escrituras como um todo.

O princípio de passagem interpretando passagem também não exclui a comunidade da fé ou a razão humana. Quando Lutero manteve o princípio de sola scriptura, ele não estava sugerindo que a tradição da Igreja era sem valor. Antes, ele estava discutindo um caso de relativa clareza e peso. Em outras palavras, se surge um conflito na interpretação da fé, então as Escrituras possuem uma autoridade que transcende e julga qualquer uma das tradições da Igreja.

No caminho de Emaús, Jesus manteve o princípio de que as Escrituras são o seu próprio intérprete. “Começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lucas 24:27). Mais tarde, naquela noite, Jesus outra vez aludiu às Escrituras quando esclareceu os discípulos de que tudo o que dele estava escrito “na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lucas 24:44) devia se cumprir. Para Jesus, as Escrituras são a fonte autorizada por meio da qual podemos discriminar entre o certo e o errado.

A suficiência das Escrituras. Falar das Escrituras como seu próprio intérprete sugere o corolário da suficiência das Escrituras. As Escrituras são suficientes como o guia inerrante para a verdade divina. É suficiente para tornar alguém sábio para a salvação (2Timóteo 3:15). É o padrão exclusivo pelo qual toda doutrina e experiência deve ser provada (Isaías 8:20; João 7:17; Hebreus 4:12). Para conhecer a Deus e sua vontade não necessitamos de nenhuma outra fonte senão só as Escrituras. A autoridade intrínseca da Escritura como a fonte de sua própria interpretação repousa em seu caráter como a inspirada Palavra de Deus. Todavia, essa divina autoridade é reconhecida somente pelo que é quando o Espírito Santo ilumina a mente.

A unidade das Escrituras

Outro princípio fundamental de interpretação bíblica incluído no princípio sola scriptura é a analogia da fé, ou a analogia (ou harmonia) das Escrituras.15 A própria Escritura afirma que “toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Timóteo 3:16), que “nenhuma profecia das Escrituras provém de particular elucidação”, e que “homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:20 e 21). Tendo a Deus como seu autor supremo e sendo inspirada pelo Espírito Santo, podemos admitir uma unidade fundamental e harmonia entre suas várias partes.

Somente à base de sua unidade podem as Escrituras funcionar como seu próprio intérprete. Só então é possível alcançar uma harmonia em doutrina e ensino. Se não há uma unidade superior nas Escrituras procura-se em vão um ensino normativo delas em qualquer assunto. Sem a unidade das Escrituras, a Igreja não tem nenhum meio de distinguir a verdade do erro e repudiar a heresia. Não há nenhuma base para aplicar medidas disciplinares ou corrigir desvios da verdade divina. As Escrituras perderiam seu poder convincente e libertador.

Os escritores do Novo Testamento, porém, testificam das Escrituras de maneira altamente favorável e admitem sua unidade. Isto se torna óbvio quando eles defendem sua opinião citando várias fontes do Antigo Testamento como de peso igual e harmônico.16 Isto indica que diferentes escritores da Bíblia proveem ênfases diferentes sobre o mesmo evento ou tema, contribuindo, assim, para uma fecunda e multifacetada expressão da verdade divina em que todas as doutrinas da Bíblia concordam entre si. Deus nunca Se contradiz.

Tota Scriptura – Toda a Escritura. A unidade das Escrituras inclui o conceito de tota scriptura (toda a Escritura). A fim de saber o que as Escrituras têm a dizer sobre determinado assunto devemos considerar tudo o que é declarado por elas. A fim de adquirir um discernimento pleno e compreensivo do que Deus quer dizer na Bíblia não é suficiente escolher uma declaração em detrimento de outras declarações sobre o mesmo assunto. Isto significa que “os dois Testamentos têm uma relação recíproca em que mutuamente se iluminam um ao outro… Nem um Testamento é anulado pelo outro, embora a última revelação seja testada pela primeira”.17 O melhor exemplo para esta confiança nas Escrituras aparece entre os cristãos bereanos, que “eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram, de fato, assim” (Atos 17:11). De um modo semelhante, Jesus salientou como o Antigo Testamento esclarece o Novo Testamento. “São elas mesmas [as Escrituras] que testificam de mim” (João 5:39). De tais passagens como 1Timóteo 5:18, em que Paulo justapõe uma declaração de Jesus com uma citação do Antigo Testamento ou 2Pedro 3:15 e 16, em que Pedro parece reconhecer as cartas de Paulo como Escritura, é claro que já nos tempos do Novo Testamento os escritos apostólicos estavam sendo aceitos como parte das Sagradas Escrituras, juntamente com o Antigo Testamento.18

O contexto de uma passagem bíblica. Além disso, usar as Escrituras como seu próprio intérprete não significa enfileirar indiscriminadamente várias passagens na forma de um solto “texto-prova” sem considerar o contexto de cada passagem. Ao contrário, “sendo que as Escrituras têm, afinal, um único autor divino, é decisivo reunir tudo o que está escrito sobre um assunto específico a fim de sermos capazes de considerar todos os contornos do assunto”,19 considerando o contexto literário, bem como histórico, de uma passagem. O intérprete cuidadoso levará em consideração o contexto imediato antes e depois da passagem sob investigação; o contexto do livro da Bíblia em que a passagem se encontra, bem como o contexto mais amplo de toda a Bíblia. Na comparação de passagem com passagem é importante estudar a Bíblia inteiramente, se possível em suas línguas originais ou, ao menos, com uma tradução bíblica apropriada e fiel ao significado contido no original hebraico e grego.

A clareza das Escrituras

O apelo para as Escrituras somente faz pouco sentido se os textos são obscuros quanto ao seu significado. A mensagem da Bíblia é suficientemente clara para ser compreendida por crianças bem como por adultos. E, no entanto, o contexto das Escrituras oferece mesmo à pessoa mais letrada ampla oportunidade de crescer em conhecimento e aprofundar a compreensão de Deus e de sua vontade revelada. A verdade da clareza das Escrituras tem sido reconhecida por muitos cristãos na tradição da Reforma. A Bíblia repetidamente nos lembra de sua própria clareza. As Escrituras podem ser compreendidas não somente por teólogos, sábios, ou sacerdotes, mas por todos os crentes. O testemunho bíblico encoraja os leitores a estudar a Bíblia por si mesmos, porque são capazes de compreender a mensagem de Deus para eles (Deuteronômio 6:6 e 7; Salmos 19:7; Salmos 119:130; Isaías 34:16; Lucas 1:3 e 4; Atos 17:11; Romanos 10:17; Apocalipse 1:3).

O exemplo coerente dos escritores da Bíblia mostra que as Escrituras devem ser tomadas em seu sentido claro, normal, literal, a menos que seja dada uma figura clara e óbvia ou empregada uma passagem simbólica.20 A clareza das Escrituras admite o sacerdócio de todos os crentes em vez de restringir sua interpretação a uns poucos selecionados, ao sacerdócio clerical, ou à “comunidade” de instruídos eruditos. Isto significa que o estudo das próprias Escrituras, em vez de fontes secundárias e comentários sobre elas, deve ter prioridade.

A clareza das Escrituras e das traduções da Bíblia. A clareza das Escrituras diz respeito à linguagem, sentido e palavras. Uma consequência hermenêutica disto pode ser vista no valor de se dominar, sempre que possível, as línguas originais (hebraico, aramaico e grego), a fim de se compreender mais plenamente o significado das palavras bíblicas originais. Conquanto seja possível estudar a Bíblia comparando-se passagem com passagem, nas traduções muitas expressões idiomáticas da Bíblia ou figuras de linguagem podem ser facilmente perdidas no processo de tradução.21 A fim de descobrir como uma palavra ou conceito é usado nas Escrituras e que conotações estão associadas a essa palavra ou conceito, é indispensável comparar cuidadosamente passagem com passagem. Isto pode ser feito melhor nas línguas originais. Se uma tradução necessita ser usada, uma tradução formal deve ser preferida a uma tradução dinâmica ou paráfrase.22 Isto não significa que todas as traduções bíblicas devem ser muito literais, pois mesmo as traduções dinâmicas ou paráfrases podem ser adequadas para diferentes necessidades e situações. Contudo, certamente há um lugar importante para traduções literais que fazem menos interpretação para os leitores e, assim, os estimula a fazer mais interpretação para si mesmos, tornando-os menos dependentes do tradutor.

A clareza das Escrituras e passagens difíceis. Apesar de haver nas Escrituras mistérios de fé que podem ser compreendidos suficientemente para serem aceitos pela fé, isto não quer dizer que compreenderemos tudo exclusiva e completamente. Além disso, falar da clareza das Escrituras não significa que não há passagens que serão difíceis de compreender pelo leitor (2Pedro 3:16). Com frequência não temos conhecimento suficiente de todos os fatos envolvidos para obter uma compreensão clara de algumas passagens. Às vezes a dificuldade de compreender corretamente é talvez não tanto um assunto de “obscuridade” das Escrituras, mas de um obscurecimento de nossa mente pecaminosa e distorcida.

O estudante esclarecido da Palavra de Deus comparará cuidadosamente uma passagem das Escrituras com outras passagens, mudando-se de afirmações claras e não-ambíguas para aquelas que são mais difíceis de compreender. Um importante princípio hermenêutico derivado da clareza das Escrituras é que passagens difíceis não devem ser o ponto de partida em qualquer interpretação. Devemos começar do contexto mais amplo de claras afirmações escriturísticas da verdade.

Felizmente, as Escrituras iluminam nossa mente e compreensão (Salmos 119:105). Embora até mesmo descrentes possam ler e compreender intelectualmente o sentido literal e histórico das Escrituras (o sensus literae), o iluminador Espírito Santo deve estar presente para que a mensagem seja percebida como verdadeira. Mesmo o intérprete regenerado necessita de contínuo auxílio e iluminação do Espírito. Desse modo, o verdadeiro significado da mensagem das Escrituras pode ser compreendido apenas por mentes iluminadas pelo Espírito Santo. Somente aceitando-se a mensagem bíblica como verdadeira e seguindo-a em obediência ocorre a verdadeira e plena compreensão.

O princípio cristológico de interpretação da Bíblia

Foi Martinho Lutero que, enquanto validava a autoridade das Escrituras e era o arauto do princípio sola scriptura, também propôs outro princípio hermenêutico que pode ser denominado o “princípio cristológico”.23 Esse princípio cristológico tornou-se responsável por uma sutil, porém significativa mudança na compreensão da autoridade e da hermenêutica da Bíblia. A opinião de Lutero sobre autoridade estava intimamente ligada à sua compreensão do evangelho. Evidentemente, para Lutero, era Cristo e o evangelho da justificação somente pela fé, do qual as Escrituras testificam, que constituíam o centro das Escrituras e essencialmente sua autoridade final. Aqui, vem à mente o famoso prefácio de Lutero à epístola de Tiago no qual ele afirma que tudo o que não aponta para Cristo ou exclui a Cristo não é apostólico, mesmo que Pedro ou Paulo o ensinasse. Por outro lado, tudo quanto “anuncia” a Cristo é apostólico, mesmo que venha de Judas, Anás, Pilatos ou Herodes. Portanto, para Lutero o conteúdo das Escrituras é Cristo, e, partindo deste fato, ele parece designar reiteradamente sua autoridade.

Todas as Escrituras giram em torno dele como seu autêntico centro. Essa “concentração cristológica” pode ser vista como o elemento decisivo na interpretação de Lutero e o seu uso das Escrituras.24 Assim, Lutero realmente contendia não “pela primazia das Escrituras no sentido estrito, mas pela primazia do evangelho do qual as Escrituras testificam e, portanto, pela primazia das Escrituras como a confirmação do evangelho”.25 Consequentemente, Lutero valorizava a Bíblia, “porque ela é o berço que sustém a Cristo. Por este motivo, o evangelho da justificação pela graça por meio da fé servia como a chave hermenêutica de Lutero para as Escrituras”.26

Segundo Lutero, as Escrituras devem ser compreendidas a favor de Cristo, não contra ele. Isto significa, como tem sido ressaltado, que se uma passagem parece estar em conflito com a interpretação cristocêntica de Lutero, sua interpretação torna-se “crítica da Escritura centralizada no evangelho”.27 Cristo e as Escrituras podem ser postos um contra o outro, porque Lutero, em última análise, distinguia a Palavra pessoal (Cristo), a Palavra falada (evangelho) e a Palavra escrita (Escrituras). Esta distinção e classificação leva a um cânon dentro do cânon, em que Cristo Se torna a chave hermenêutica para a compreensão apropriada das Escrituras. É claro que isto compromete a força do princípio escriturístico, em que as Escrituras são a fonte exclusiva de sua própria elucidação. Porque “se a Escritura é interpretada quer seja por um centro doutrinal ou por uma tradição, não é mais a Escritura que está interpretando a si mesma – antes somos nós que estamos interpretando a Escritura por meio de uma doutrina ou tradição, à qual a Escritura está, em prática, sendo submetida”.28 Portanto, não é de surpreender que o método cristológico de Lutero esteja “afiado como uma ferramenta de crítica teológica” em que o intérprete torna-se o juiz e coloca-se acima da Escritura.29

Ellen G. White não tencionava separar Cristo das Escrituras quando escreveu: “O sacrifício de Cristo como expiação pelo pecado é a grande verdade em torno da qual se agrupam as outras. A fim de ser devidamente compreendida e apreciada, toda verdade da Palavra de Deus, de Gênesis a Apocalipse, precisa ser estudada à luz que dimana da cruz do Calvário” (Evangelismo, p. 190). Ela não estava propondo um centro teológico a funcionar como uma ferramenta para a crítica teológica, um cânon dentro do cânon. Antes, “toda verdade da Palavra de Deus, de Gênesis a Apocalipse, precisa ser estudada à luz que dimana da cruz do Calvário” (Evangelismo, p. 190).

Assim, Ellen G. White poderia afirmar a centralidade de certos temas bíblicos sem denegrir outras partes das Escrituras como sem importância. Porque nenhum homem tem o direito de julgar as Escrituras selecionando aquelas passagens que são consideradas mais importantes do que as outras.30 Todas as Escrituras são dada por inspiração e, portanto, são proveitosas para tornar-nos sábios para a salvação (2Timóteo 3:16).

A relação entre Cristo e as Escrituras

Como devemos então ver a relação entre Cristo e as Escrituras? O Deus vivo e falante das Escrituras preferiu revelar-se por meio da Palavra. Deus também achou adequado confiar sua Palavra falada por meio dos autores bíblicos ao meio ou instrumento de escrita, gerando, assim, a Bíblia, a Palavra escrita de Deus.

Parece que alguém precisa crer nas Escrituras antes que possa crer no Cristo das Escrituras. A Palavra encarnada (Jesus Cristo) não pode ser separada da Palavra escrita (Sagrada Escritura). De fato, existe uma íntima e muito próxima relação entre Cristo e as Escrituras.31 É indubitavelmente verdade que Cristo é central nas Escrituras. O próprio Cristo mostrou aos discípulos como as Escrituras apontam para Ele (Lucas 24:25 a 27). As Escrituras testificam de Cristo (João 5:39). No entanto, temos de distinguir cuidadosamente entre um tema central ou pessoa nas Escrituras e postular um centro teológico por meio do qual outras porções e declarações das Escrituras sejam relegadas a uma posição secundária ou inferior. Um centro teológico que funciona como uma chave hermenêutica conduz apenas a um cânon dentro do cânon que não faz justiça à plenitude, opulência e amplitude da verdade divina conforme a encontramos em todas as Escrituras.

Precisamos permitir que as Escrituras em sua inteireza (tota scriptura), em todas as suas vozes e estilos multifacetados, nos revelem a riqueza e profundidade da sabedoria divina. Somente tal leitura sinfônica da Bíblia, sob a unificadora orientação do Espírito Santo, será capaz de fazer justiça aos múltiplos fenômenos das Escrituras.

Deus envia o Espírito Santo para nos guiar à Palavra Viva (Jesus Cristo) por meio da Palavra escrita (Sagradas Escrituras). As Escrituras são fundamentais para nossa fé e devoção, porque não há nenhum outro testemunho explícito de Jesus Cristo. Não temos nenhum outro Cristo além daquele que os escritores bíblicos nos apresentam. A Bíblia é o lugar em que Deus nos falou acerca de Si mesmo. “Curvar-se ao Senhor vivo impõe submeter a mente e o coração à Palavra escrita. Os discípulos individualmente e as igrejas corporativamente estão sob a autoridade das Escrituras porque estão sob o domínio de Cristo, que governa pelas Escrituras. Isto não é bibliolatria, mas cristianismo em sua forma mais autêntica”.32

O Espírito de Cristo, que habita nos cristãos, nunca os leva a duvidar, criticar, ir além, ou ter em pouca conta os ensinos bíblicos. Ao contrário, o Espírito Santo nos leva a apreciar a autoridade divina das Escrituras. O princípio sola scriptura sem Cristo é vazio, mas e Cristo sem as Escrituras? De quem Ele é filho? Sem as Escrituras não conheceríamos a Jesus como o Cristo messiânico, e Ele poderia não ser nosso Salvador. Desse modo, nossa lealdade à Bíblia é parte de nossa lealdade a Cristo. O que é necessário não é nossa crítica humana às Escrituras – nem mesmo em nome de Cristo – mas o exame crítico de nós mesmos, da Igreja e de todas as outras áreas pelas Escritura para o qual somente o texto bíblico é divinamente apropriado. Por intermédio disto permitimos que as Escrituras sejam o princípio controlador e autoridade final para a teologia, fé e prática.

Sola Scriptura ou Prima Scriptura?

Afirmar que as Escrituras são a fonte final e exclusiva para sua própria interpretação é mais do que defender a primazia delas. Isto é afirmado até mesmo pela Igreja Católica Romana.33 Entretanto, no dogma católico romano é a Igreja, e somente a Igreja, com sua tradição, que reivindica o direito de interpretar as Escrituras autenticamente e com autoridade.34 Assim, as Escrituras, embora sejam a fonte primária para a teologia, são domesticadas pelos óculos hermenêuticos da Igreja e sua tradição. Contra isto é que os reformadores protestantes protestaram quando afirmaram sola scriptura.

Optar meramente pela primazia das Escrituras, em vez de pelas Escrituras somente como a norma final e autoridade suprema para a fé e prática, é separar-se do princípio protestante de que as Escrituras somente são a norma final para a teologia e a fonte exclusiva de sua própria interpretação. O protestantismo reivindicava mais do que a superioridade das Escrituras diante de outras fontes, ou mesmo sua prioridade. Reivindicava que as Escrituras somente são a fonte exclusiva de sua própria exposição. Caso contrário, as Escrituras não podem ser mais a autoridade final em teologia, nem podem ser o lugar em que se origina a reflexão teológica e atinge sua conclusão.

Referências

  1. Gerhard F. Hasel, Understanding the Living Word of God ((Mountain View, CA: Pacific Press, 1980), p. 71-78.
  2. Richard M. Davidson, “Biblical Interpretation”, em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2000), p. 62. Sobre o ensino bíblico de revelação e inspiração, veja também o equilibrado artigo de Peter M. van Bemmelen, “Revelation and Inspiration”, em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, p. 22-57.
  3. John M. Fowler, “Sin,” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, p. 236.
  4. Uma notável exceção é a discussão em Culture and Biblical Hermeneutics: Interpreting and Applying the Authoritative Word in a Relativistic Age, de William J. Larkin (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988), p. 293-304. Sou também grato a Jens Schwenger por ter tornado disponível sua pesquisa sobre este assunto e por estimular discussões que me têm indicado alguns destes importantes aspectos da hermenêutica bíblica. Contudo, assumo a responsabilidade pelo conteúdo e conclusões alcançadas neste estudo.
  5. Sobre a função da razão humana na teologia, veja “Theology and the Role of Reason”, de Frank M. Hasel. Journal of the Adventist Theological Society 4, nº 2 (1993), 172-198.
  6. Peter A. Angeles, “Doubt”, em Dictionary of Philosophy (New York: Barnes and Noble, 1981), p. 65-66.
  7. Larkin, p. 295.
  8. Ibidem.
  9. Ibid., p. 296.
  10. Ibid., p. 298.
  11. Helge Stadelmann, Grundlinien eines bibeltreuen Schriftverständnisses (Wuppertal: R. Brockhaus Verlag, 1985), p. 94.
  12. Kevin Vanhoozer, “The Voice and the Actor: A Dramatic Proposal About the Ministry and Minstrelsy of Theology”, em Evangelical Futures: A Conversation on Theological Method, ed. John G. Stockhouse, Jr. (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2000), p. 85.
  13. David Cupples, The Devotional Life of a Theological Student (Leicester, Inglaterra: Religious and Theological Studies Fellowship, 1987), p. 10.
  14. Em 1847, vários anos antes de a Igreja Adventista do Sétimo Dia ser formalmente organizada em 1863, Tiago White achou necessário declarar publicamente sua fidelidade ao princípio protestante histórico sobre autoridade religiosa, quando escreveu: “A Bíblia uma revelação perfeita e completa. É a nossa única regra de fé e prática” (James White, A Word to the Little Flock, 1847), p. 13. De maneira semelhante Ellen G. White declarou que “Há em nosso tempo… necessidade de uma volta ao grande princípio protestante – a Bíblia, e a Bíblia só, como regra de fé e prática” (O Grande Conflito, p. 204 e 205).
  15. Davidson, p. 64.
  16. Davidson tem salientado que “em Romanos 3:10 a 18, por exemplo, temos citações escriturísticas de Eclesiastes 7:20, Salmos 14:2 e 3; 5:10; 10:7; e Isaías 59:7 e 8. As Escrituras são consideradas como um todo inseparável e coerente” (Davidson, p. 64).
  17. Ibidem.
  18. Peter M. van Bemmelen, p. 37.
  19. Davidson, p. 65.
  20. Ibidem. Isto se aplica também às parábolas. Elas são histórias que ilustram verdades espirituais. Apesar de os detalhes concernentes a pessoas, eventos, épocas e lugares nas parábolas possam não ser realmente históricos, as verdades espirituais que elas transmitem são literais e reais.
  21. Uma obra-padrão sobre este assunto ainda é Figures of Speech Used in the Bible, de E. W. Bullinger (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1995, [originalmente 1888]; também Sprachliche Stilfiguren der Bibel: Von Assonanz bis Zahlenspruch, de Walter Bühlmann e Karl Scherer (Giessen: Brunnen Verlag, 1994).
  22. Cf. Gerhard F. Hasel, p. 100-105, sobre as diferenças daquelas traduções.
  23. Foi a coragem de Lutero de enfatizar as Escrituras somente como a norma autorizada pela qual toda doutrina da Igreja deve ser provada que parece ter mais impressionado Ellen G. White acerca do grande reformador protestante. Ellen G. White claramente não aprovava tudo o que Martinho Lutero disse ou ensinou ( O Grande Conflito, capítulos 7 e 8, p. 120 a 170; especialmente p. 139, 148 e149).
  24. Cf. Frank M. Hasel, Scripture in the Theologies of W. Pannenbergand D. G. Bloesch: An Investigation and Assessment of Its Origin, Nature, and Use (Frankfurt: Peter Lang, 1996), p. 44-46.
  25. Stanley J. Grenz, Renewing the Center: Evangelical Theology in a Post-Theological Era (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2000), p. 57-58.
  26. Ibid., p. 58.
  27. Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, trad. Robert C. Schultz (Filadélfia: Fortress Press, 1966), p. 81.
  28. Brian Gaybba, The Tradition: An Ecumenical Breakthrough? (Roma: Herder, 1971), p. 221.
  29. Werner Georg Kümmel, The New Testament: The History of the Investigation of Its Problems, trad. S. McLean Gilmour e Howard C. Kee (Nashville: Abingdon, 1972), p. 24.
  30. “Não permitais que qualquer ser vivente venha a vós e comece a dissecar a Palavra de Deus, dizendo o que é revelação, o que é inspiração e o que não é, sem uma repreensão… Não queremos que ninguém diga: ‘Isto eu rejeitarei, e isto eu receberei’, mas queremos ter fé implícita na Bíblia como um todo e como ela é” (Ellen G. White, Comentário Bíblico Adventista, vol. 7, p. 919; Parábolas de Jesus, p. 39; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 17, 42, e 245; Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 700 e 701; Testemunhos Para a Igreja, vol. 8, p. 319).
  31. Um estudo definitivo sobre a compreensão e uso das Escrituras por Jesus é Christ and the Bible, de John Wenham (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1994).
  32. James I. Packer, Truth and Power: The Place of Scripture in the Christian Life (Wheaton, IL: Harold Shaw Publishers, 1996), p. 40. O termo “bibliolatria” subentende que a Bíblia está sendo transformada em um ídolo. Como protestantes não adoramos o papel e tinta e a capa de couro que irão formar uma Bíblia. Amamos esse Livro por causa de sua mensagem. Suas palavras verdadeiras são entesouradas em nosso coração porque cremos que Deus queria comunicar sua mensagem por meio dessas palavras e que é por meio dessas palavras que nosso coração pecaminoso é levado para mais perto do Senhor Jesus Cristo.
  33. Cf. Catechism of the Catholic Church (Libreria Editrice Vaticana, 1994), pp. 26-38.
  34. “‘A tarefa de prover uma interpretação autêntica da Palavra de Deus, quer em sua forma escrita ou na forma de tradição, foi confiada somente ao magistério vivo da Igreja. Sua autoridade neste assunto é exercida em nome de Jesus Cristo’. [DV 10 .§ 2]. Isto significa que a tarefa da interpretação foi confiada aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o Bispo de Roma” (Catechism of the Catholic Church, p. 27). “Está claro, portanto, que na supremamente sábia providência de Deus, a sagrada Tradição, as Sagradas Escrituras e o Magistério da Igreja estão de tal forma unidos e associados que um deles não pode subsistir sem os outros” [DV 10 § 3] (ibid., p. 29).

Bibliografia selecionada

Davidson, Richard M. “Biblical Interpretation”. Em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen, p. 58-104. Hagersstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 2000.

Grudem, Wayne A. “Scripture’s Self-Attestation and the Problem of Formulating a Doctrine of Scripture”. Em  Scripture and Truth, eds. D. A. Carson e John Woodbridge, p. 19-59, 359-368. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1982.

Hasel, Frank M. Scripture in the Theologies of W. Pannenberg and D. G. Bloesch: An Investigation and Assessment of its Origin, Nature and Use. Frankfurt/Main: Peter Lang Verlag, 1996.

Hasel, Frank M. “Theology and the Role of Reason”. Journal of the Adventist Theological Society 4, nº 2 (1993): 172-198.

Hasel, Gerhard F. Biblical Interpretation Today. Washington, D.C.: Instituto de Pesquisas Bíblicas, 1985.

Larkin, William J., Jr. Culture and Biblical Hermeneutics: Interpreting and Applying the Authoritative Word in a Relativistic Age. Grand Rapids MI: Baker Book House, 1988.

Maier, Gerhard. Biblical Hermeneutics. Wheaton, IL: Crossway Books, 1994.

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Schnabel, Eckhard. Inspiration und Offenbarung: Die Lehre vom Ursprung und Wesen der Bibel. Wuppertal: R. Brockhaus Verlag, 1997.

Van Vemmelen, Peter M. “Revelation and Inspiration”. Em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen, p. 22-57. Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000.

Weeks, Noel. The Sufficiency of Scripture. Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust, 1988.

Zinke, E. Edward. “A Conservative Approach to Theology”, Suplemento de Ministry 50/10 (1977): 24A-24P.

Frank M. Hasel, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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REVELAÇÃO E INSPIRAÇÃO

Introdução

Conhecemos acerca de Deus somente por meio de sua revelação, e os cristãos têm geralmente reconhecido as Escrituras como a revelação pública e específica do pensamento e da vontade divina para nós. Além da revelação especial de Deus nas Escrituras (2Timóteo 3:16), os teólogos também falam sobre uma revelação geral por meio da natureza, pela qual todas as pessoas têm algum conhecimento de um ser supremo. Deus nos tem especificamente brindado com tal pensamento nas Escrituras (Romanos 1:18 a 20). Este capítulo discutirá a evidência bíblica para a inspiração das Escrituras e para os vários modelos usados em sua articulação. Sugerirá uma nova compreensão da evidência baseada em pressuposições bíblicas e uma cuidadosa atenção ao completo alcance da evidência bíblica.

Revelação, Escrituras e interpretação

Com o advento das eras moderna e pós-moderna, muitos cristãos têm concluído que uma revelação cognitiva especial de Deus é impossível. Infelizmente, esses teólogos procuram interpretar as Escrituras partindo da suposição de que elas foram escritas apenas por seres humanos. Estão dogmaticamente persuadidos de que Deus não pode comunicar conhecimento aos seres humanos. Portanto, as Escrituras e a teologia são o produto das sempre mutáveis imaginações humanas. Desta maneira, esses teólogos negam a convicção de Pedro de que nas Escrituras não encontramos mitos, mas verdades (2Pedro 1:16).

Autor e interpretação

Sempre que lemos um texto, admitimos corretamente que alguém o escreveu. Nem sempre precisamos conhecer o autor de um texto para compreender seu significado, mas tal conhecimento pode adicionar profundidade ao significado.

A mesma dinâmica ocorre quando lemos as Escrituras. Na maioria das vezes compreendemos o significado manifesto nos textos. Se estamos convencidos de que Deus é o autor do que lemos nas Escrituras, nossa compreensão teológica disto diferirá consideravelmente de um leitor que está persuadido de que as Escrituras foram escritas por pessoas religiosas bem-intencionadas descrevendo suas próprias experiências. Desse modo, a compreensão do que são o autor ou autores das Escrituras torna-se uma pressuposição essencial com a qual crentes e teólogos elaboram sua interpretação das Escrituras, formulam os ensinos cristãos e experimentam seu poder transformador na vida diária. Resumindo, nossa compreensão de revelação-inspiração (R-I) torna-se uma suposição necessária para nossa hermenêutica das Escrituras e sua teologia.1

Evidência bíblica

Sabemos que alguém é o autor das Escrituras. Todavia, como sabermos quem era a pessoa ou pessoas? Respondendo a esta pergunta, começamos prestando minuciosa atenção ao que os autores bíblicos têm a dizer sobre a origem das Escrituras. Ampla evidência do Antigo e do Novo Testamento nos diz que os autores bíblicos consideravam a Deus como o Autor das Escrituras. As passagens clássicas utilizadas na formulação da doutrina bíblica das Escrituras são 2Timóteo 3:15 a 17 e 2Pedro 1:20 e 21.

O theopneustos de Paulo

A declaração de Paulo sobre a origem das Escrituras é breve e geral. “Toda a Escritura é inspirada por Deus [pasa graph theopneustos]” (2Timóteo 3:16). Conquanto nossa palavra “inspiração” venha do equivalente latino divinitus inspirata, Paulo usa a palavra theopneustos, que literalmente significa “Deus soprou” ou “soprada por Deus”. Não temos nenhuma ideia acerca do que um “sopro divino” poderia significar quando aplicado literalmente à geração das Escrituras. Contudo, podemos tentar compreendê-lo metaforicamente. Assim compreendido, o texto diz que Deus está envolvido diretamente na origem das Escrituras, embora não explique o modo e pormenores da operação divina.

O pheromenoi de Pedro

As observações de Pedro sobre a origem das Escrituras são mais variadas, analíticas e específicas. Declarando que “homens falaram da parte de Deus sendo dirigidos [pheromenoi, “sendo movidos”] pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:21), Pedro realça explicitamente o fato de que seres humanos escreveram as Escrituras sob a direção do Espírito Santo. Em resumo, tanto Deus quanto seres humanos estiveram envolvidos na produção das Escrituras.

No entanto, Pedro qualificou cuidadosa e vigorosamente a intervenção de agentes humanos: “Sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém [ginetai] de particular elucidação [epiluseōs]” (2Pedro 1:20). Dado o contexto em que ele usa a palavra grega epilusis, Pedro pode estar argumentando que mesmo quando seres humanos estavam envolvidos em escrever as Escrituras, eles não originaram as explanações, exposições, ou interpretações dos vários assuntos ali apresentados.

Em uma sentença repetida, Pedro explica que “não foi pela vontade humana que a profecia foi dada/derivada [de pherō], mas homens falaram da parte de Deus, sendo dirigidos [pheromenoi] pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:21). Pedro outra vez nega a origem humana das Escrituras excluindo a vontade de seres humanos. O que fizeram os seres humanos? Eles falaram [elalēsan], proclamaram e comunicaram as explanações, exposições e interpretações que se originaram em Deus como autor. A fala e a escrita são expressões do pensamento. Assim, a direção divina acompanhou os escritores da Bíblia não somente quando eles escreveram, mas também quando falaram. O que eles disseram era a manifestação dos pensamentos e ações de Deus.

O problema por trás de revelação-inspiração

Notavelmente, embora Pedro e Paulo afirmem de modo inequívoco o direto envolvimento de Deus na produção das Escrituras, eles não explicam as maneiras concretas pelas quais as agências divinas e humanas interagiram, nem detalham seu modus operandi específico. Em parte alguma as Escrituras tratam desse problema. Prover respostas de nossa própria iniciativa é envolver-se em uma tarefa teológica, porque a teologia busca compreensão.

Antes, as declarações de Paulo e de Pedro ensinam significativamente que Deus é o autor das Escrituras, de todas as Escrituras (2Timóteo 3:16; 2Pedro 1:20 e 21). Os teólogos devem procurar um meio de compreender como isto ocorreu, e, ao mesmo tempo, esclarecer sobre o lado humano que aparece na maneira pela qual as Escrituras foram concebidas e escritas.

As várias respostas dadas a esta indagação ao longo da História têm se tornado importantes pressuposições hermenêuticas. Elas influenciam decididamente todo o trabalho da pesquisa exegética e teológica, até mesmo a ponto de dividir a cristandade em duas escolas distintas de pensamento entre as fileiras denominacionais.

Método e modelos

Antes de considerarmos brevemente alguns importantes modelos de interpretação de R-I, fazemos uma “pausa” metodológica. Precisamos (1) averiguar com precisão o significado técnico de R-I, (2) determinar sobre que evidência os teólogos desenvolvem sua compreensão de R-I, e (3) notar a partir de quais pressuposições hermenêuticas eles desenvolvem seus pontos de vista. Isto nos ajudará a compreender o que outros têm dito sobre este problema e o que devemos ter em mente em nossa própria interpretação dele.

Operando definição de revelação-inspiração

Quando os teólogos lidam com a doutrina R-I, eles usam as palavras “revelação” e “inspiração” em um sentido técnico. “Revelação amplamente se refere ao processo por meio do qual as matérias das Escrituras surgiram na mente dos profetas e apóstolos. “Inspiração”, geralmente falando, se refere ao processo por intermédio do qual as matérias foram comunicadas à mente dos profetas e apóstolos nas formas oral e escrita. Desse modo, a revelação é um processo cognitivo, ao passo que a inspiração é principalmente um processo linguístico.

É necessária uma palavra de precaução a fim de evitar confusões. Os escritores bíblicos não usaram a palavra “inspiração”. Além disso, nem os autores bíblicos, nem Ellen G. White utilizaram as noções de “revelação” e “inspiração” no sentido técnico-analítico com que as estamos usando neste capítulo. Eles as usaram intercambiavelmente. Segundo o contexto, eles podem se referir à origem das matérias na mente dos profetas e apóstolos, ao processo de comunicá-las em um formato escrito, ou a ambos. Não é de surpreender que um grande número de teólogos adventistas e evangélicos façam o mesmo. Uma compreensão adequada da origem das Escrituras, porém, requer uma análise cuidadosa dos processos cognitivos e literários envolvidos.

A evidência

Sobre que evidência os teólogos desenvolvem suas interpretações de R-I? Sendo que hoje não se observa diretamente R-I em andamento, os teólogos operam a partir dos resultados de R-I, a saber, das Escrituras. Os teólogos têm reconhecido duas linhas de evidência nas Escrituras. São a doutrina das Escrituras e os fenômenos das Escrituras. Sendo que neste capítulo já lidamos com a doutrina bíblica das Escrituras, introduziremos brevemente a noção dos “fenômenos” das Escrituras.

Os fenômenos escriturísticos. Quando os teólogos falam sobre os “fenômenos” das Escrituras, geralmente não estão se referindo aos ensinos bíblicos delas, mas às suas características como uma obra escrita e a todas as suas matérias. Consequentemente, embora o acesso à “doutrina bíblica das Escrituras” envolva análise teológica, o acesso aos “fenômenos” das Escrituras ocorre por meio da análise histórica e literária. A primeira linha de evidência realça a função da agência divina em R-I, ao passo que a segunda revela a função das agências humanas. A falha em integrar com adequação ambas as linhas de evidência conduz respectivamente às interpretações fundamentalistas ou liberais de R-I.

Hermenêutica e revelação-inspiração

É evidente que “chegou o tempo em que os adventistas do sétimo dia devem mudar-se das preocupações apologéticas para a tarefa de desenvolver uma mais construtiva teologia de inspiração”.2 Mas como desenvolveremos a compreensão de um tema que as Escrituras tratam indiretamente? O que se requer é simplesmente uma tarefa pioneira e construtiva em teologia sistemática. Sendo que toda interpretação teológica baseia-se em pressuposições, a formulação de uma interpretação adventista de R-I poderia beneficiar-se analisando a maneira pela qual outras interpretações foram concebidas.

O trabalho de teologia sistemática aqui conjecturado deve tomar em consideração três diferentes níveis de hermenêutica: (1) a hermenêutica do texto, (2) a hermenêutica dos problemas teológicos, e (3) a hermenêutica dos princípios filosóficos. A interpretação de textos bíblicos e questões teológicas é condicionada pela doutrina de R-I, que, por sua vez, depende dos princípios teológicos pressupostos pelo exegeta.

Assim, quais são as pressuposições envolvidas na compreensão de R-I? Quem decide que pressuposições devem ser usadas? Iniciemos com a última interrogação. Sendo que a evidência bíblica mostra que o fenômeno R-I sempre envolve ações divinas e humanas, os teólogos inevitavelmente levam suas próprias concepções das naturezas divina e humana a ter um desempenho em suas doutrinas de R-I. Esses são princípios filosófico-hermenêuticos porque eles são aceitos como princípios na hermenêutica bíblica e teológica. A natureza e ações divinas, bem como a natureza e ações humanas, têm sido variavelmente interpretadas por teólogos cristãos. Diferentes opiniões da natureza divina e da natureza humana têm produzido diferentes interpretações de R-I.

Recapitulemos nossa discussão nesta seção metodológica. Primeiro, decidimos usar as palavras “revelação” e “inspiração” no sentido técnico para favorecer a clareza. Segundo, percebemos que uma compreensão adequada de R-I deve começar prestando-se atenção ao que os escritores bíblicos dizem sobre a origem das Escrituras e considerando-se a obra real que eles produziram (fenômenos das Escrituras).

Terceiro, aprendemos que as doutrinas de R-I são interpretações que envolvem não somente dados bíblicos, mas também pressuposições. Qualquer doutrina de R-I é uma interpretação que depende da maneira pela qual os teólogos compreendem a natureza e ações de Deus e dos seres humanos. Tendo em mente estes esclarecimentos metodológicos, voltemos à história das interpretações de R-I.

Modelos de revelação-inspiração

Os teólogos têm interpretado R-I de muitas maneiras. Contudo, a maioria das explanações cai nos dois principais modelos de interpretação, a saber, os modelos clássico e moderno. Precisamos nos familiarizar com esses modelos, porque eles têm influenciado o desenvolvimento do pensamento adventista sobre R-I.

Inspiração verbal. Durante os primeiros dezoito séculos após a morte de Cristo, a doutrina de R-I não foi um assunto controvertido. Seguindo o exemplo de Cristo, seus seguidores tomavam o ensino bíblico acerca de sua inspiração em sentido literal. Brevemente falando, eles admitiam que Deus, por meio da instrumentalidade humana, escreveu a Bíblia.

Enquanto os teólogos clássicos maximizavam o papel da atividade divina em R-I, eles estavam minimizando o papel das agências humanas, vendo os profetas e apóstolos meramente como instrumentos usados por Deus para escrever as próprias palavras das Escrituras. Uma vez que se acreditava que Deus havia escrito as palavras das Escrituras, esta noção, que levou a uma elevada opinião da autoridade bíblica, veio a ser conhecida como a teoria da inspiração “verbal”. As palavras da Bíblia são as palavras de Deus.

Este ponto de vista forma uma compreensão filosófica extra-bíblica de hermenêutica. A substituição da noção bíblica de Deus pela ideia grega de um Deus atemporal tornou a ideia da soberana providência divina um fenômeno casual, irresistível, todo-abrangente. Por volta do quinto século d.C., Agostinho já estava usando essas ideias, ligando a noção de vontade e atividade divinas com a natureza atemporal de Deus.3 Séculos depois, isto veio a moldar a compreensão do evangelho por Lutero, bem como a compreensão da inspiração verbal das Escrituras. Consequentemente, a afirmação bíblica de que o Espírito Santo dirigiu a escrita dos profetas foi entendida na suposição de que Deus operava como uma influência soberana irresistível, dominando qualquer iniciativa originada na liberdade humana. Nesta suposição, Deus se torna não somente o autor das Escrituras, mas também o escritor.

Nos séculos dezenove e vinte, teólogos evangélicos usaram a teoria da inspiração verbal para combater o modernismo com seu desafio à teologia cristã tradicional. Operando a partir da perspectiva filosófico-hermenêutica da soberana providência divina, Archibald A. Hodge (1823-1886) e Benjamin B. Warfield (1851-1921), embora negassem o ditado, falaram de inspiração como superintendência divina na confluência das agências divinas e humanas.

A analogia do escultor que cinzela a escultura nos ajuda a visualizar o modo pelo qual a teoria verbal de inspiração concebe a maneira como as agências divinas e humanas operam quando geram os escritos da Bíblia. Como o escultor, e não o cinzel, é o autor da obra de arte, assim Deus, e não o escritor humano, é o autor das Escrituras. Os escritores humanos, como o cinzel, desempenham apenas uma função instrumental.

Os mais notáveis efeitos hermenêuticos da teoria verbal são a recontextualização e a inerrância. (1) Afirmando que um Deus atemporal é o autor e escritor da Bíblia, a inspiração verbal coloca a origem do pensamento bíblico no domínio não-histórico do sobrenatural. Os contextos e matérias históricas são deixados de lado a favor das verdades divinas atemporais.

Essa recontextualização não-histórica tem assumido várias formas. Elas se difundem partindo da depreciação clássica do significado histórico-literal dos textos bíblicos para os significados espirituais alegóricos e para a interpretação fundamentalista das Escrituras, em que cada declaração bíblica é uma comunicação objetiva de verdade absoluta sobrenatural. (2) Estamos mais familiarizados com a noção de inerrância, segundo a qual cada afirmação bíblica é verdade absoluta.

Revelação do encontro. Os tempos modernos geraram uma interpretação radicalmente nova de R-I, baseada em complexos argumentos filosóficos. Friedrich Schleiermacher (1768-1834), o pai da teologia moderna, propôs um esquema que posteriormente seria seguido pelos proponentes da revelação do encontro.

Brevemente falando, a revelação é um encontro divino-humano destituído da comunicação de conhecimento. “Assim, o conteúdo da revelação não é mais considerado como conhecimento acerca de Deus, nem mesmo informação de Deus, mas o próprio Deus”.4 Consequentemente, nem uma só palavra ou pensamento que encontramos nas Escrituras vem de Deus. A revelação do encontro é o oposto da inspiração verbal.

Se a matéria das Escrituras não vem de Deus, então de onde vêm? A resposta é simples: da reação historicamente condicionada dos seres humanos ao encontro pessoal não-cognitivo com Deus. A Bíblia é um livro humano como qualquer outro livro. O estudo de como as matérias das Escrituras se originaram é deixado à investigação histórica.

Admitindo que Deus não contribuiu para as matérias das Escrituras, os críticos históricos veem as Escrituras como o produto de um longo processo de evolução cultural. A imaginação humana, a comunidade e a tradição tornaram-se os fundamentos dos quais os livros totalmente humanos das Escrituras surgiram.

Consequentemente, alguns exegetas creem que a inspiração opera não em indivíduos, mas em toda a comunidade. Segundo esta opinião, a “inspiração” não atingiu diretamente o nível pessoal de pensamentos ou palavras proféticas, mas influenciou o nível social da comunidade dentro da qual os autores das Escrituras viveram e escreveram. Não é de surpreender, as matérias das Escrituras permanecem humanas, não divinas.

A mudança da forma como a inspiração é vista resulta diretamente da aplicação da restrição de Immanuel Kant (1724-1804) das habilidades da razão ao domínio de tempo e espaço.

Os teólogos modernos achavam-se admitindo que Deus é atemporal e que a razão humana não pode atingir objetos atemporais. Dentro desses parâmetros, não pode haver nenhuma comunicação cognitiva entre Deus e o ser humano. Mas o cristianismo gira em torno da noção de que Deus se relaciona com os seres humanos. A revelação do encontro sugere que a relação divino-humana (encontro) ocorre não em nível cognitivo, mas em um nível “existencial” ou “interpessoal”, por meio da alma. Desse modo, a revelação é um encontro divino-humano, real e objetivo, mas não envolvendo qualquer comunicação de Deus.

Os mais perceptíveis efeitos hermenêuticos da teoria de inspiração do encontro podem ser resumidos em duas palavras, recontextualização e crítica. (1) Como a teoria de inspiração verbal levou à recontextualização, assim faz a teoria de revelação do encontro. Enquanto a inspiração verbal admite que as Escrituras revelam verdades objetivas atemporais, a revelação do encontro afirma que as Escrituras apontam para um encontro divino-humano existencial, não-cognitivo. As Escrituras, portanto, não têm nenhum conteúdo revelador, mas é simplesmente um indicador ou testemunha da revelação. (2) Sendo que o conteúdo das Escrituras originou-se (contrariamente às opiniões de Paulo e de Pedro) do impulso e sabedoria de seres humanos, devemos submetê-lo à crítica científica e utilizá-lo para fins religiosos apenas metaforicamente. (3) Devido à origem humana das matérias bíblicas, o intérprete admite que as Escrituras contêm erros não apenas em detalhes históricos, mas também em tudo o que ela ensina expressamente, até mesmo ensinos acerca de Deus e sua salvação.

O recente debate adventista

Como essas ideias afetam hoje os adventistas? Talvez Edward Heppenstall tenha descrito adequadamente a maneira geral pela qual a maioria dos escritores adventistas aborda o estudo de R-I, afirmando que “esta Igreja não tem nenhuma doutrina claramente definida e desenvolvida de revelação e inspiração. Temos nos alinhado à posição evangélica ou tradicional.”5

Neste capítulo, nosso objetivo continua sendo muito modesto, tentando apenas descrever, a partir de uma perspectiva geral, os principais modelos de R-I que os teólogos adventistas têm adotado.

Inspiração verbal

No início desta história, os adventistas usaram a inspiração verbal como um argumento apologético contra o deísmo.6 Essa tendência se intensificou após a morte de Ellen G. White, quando os adventistas se defrontaram com o modernismo.

Durante a primeira metade do século vinte, Carlyle B. Haines, por exemplo, tratou do assunto em dois capítulos do seu God’s Book.7 Sua adoção implícita da teoria verbal de inspiração aparece quando ele afirma que “a revelação é inteiramente sobrenatural, e completamente controlada por Deus.”8 “Quer seja lidando ou com revelação ou com fatos dentro do seu conhecimento”, explica Haines, “o escritor da Bíblia necessitava de inspiração para produzir um registro preservado de todo erro e engano.”9 A absoluta inerrância resulta do controle total do agente humano pelo Espírito Santo; Deus está totalmente no controle do processo de escrita, e o agente humano é um instrumento muito passivo. Esse conceito pode ser a compreensão deficiente de R-I mantida por muitos adventistas que ainda não consideraram explicitamente o assunto.10

Inconscientemente, portanto, a teoria de inspiração verbal aceita por teólogos adventistas conservadores, extrai da compreensão agostiniano-calvinista de hermenêutica filosófica pressuposições derivadas de uma determinada visão grega da realidade. Conquanto a teoria de inspiração verbal mantenha uma elevada opinião das Escrituras, de fato nega sua supremacia reveladora (o princípio sola scriptura) na tarefa de formar a teologia cristã, sendo que a própria teoria não está construída sobre fundamentos bíblicos.

Inspiração do pensamento

Ellen G. White influenciou intensamente o pensamento adventista sobre R-I. Por seu exemplo e ensinos, ela se afastou da inspiração verbal e da revelação do encontro. Isto, porém, não desencorajou alguns adventistas, no passado e no presente, de adotar tais opiniões. Procurando compreender R-I tirando indícios dos ensinamentos e experiência profética de Ellen G. White, muitos adventistas têm adotado a ideia chamada “inspiração do pensamento”, convencidos de que sua exposição desse ponto de vista reflete devidamente as opiniões dela sobre inspiração. Assim, por “inspiração do pensamento” queremos dizer, especificamente, a reflexão teológica de alguns eruditos adventistas sobre R-I, supostamente baseada nas opiniões de Ellen G. White sobre inspiração. Essas observações, portanto, não somente afirmam que os pensamentos dos profetas eram inspirados, mas que de um modo muito particular, nas palavras de Ellen G. White, os próprios “homens” eram inspirados.

Uma das mais antigas expressões da inspiração do pensamento entre os adventistas ocorreu em 1883. Ela afirmava: “Nós [adventistas] cremos que a luz dada por Deus aos seus servos é pela iluminação da mente, comunicando assim o pensamento, e não (exceto em casos raros) as próprias palavras em que as ideias devem ser expressas.”11 A ideia de que a inspiração age sobre o pensamento dos escritores bíblicos, e não sobre suas palavras, assinala um claro afastamento da inspiração verbal. Esta declaração inicial foi uma tabuleta ao longo do caminho, não uma teoria.

Oitenta e sete anos mais tarde, Edward Heppenstall articulou essa ideia dentro de um amplo perfil teórico. A obra de Heppenstall veio como uma alternativa à revelação do encontro e um afastamento da inspiração verbal. Rejeitando corretamente o fundamento não-cognitivo da revelação do encontro, Heppenstall sugeriu que a revelação divina ocorria ao nível das ideias, conceitos e ensinos do escritor bíblico na mente do escritor.12 Infelizmente, ele não especificou os meios pelos quais tal revelação conceitual era formada. Também a inspiração, diz Heppenstall, ocorria na mente do escritor. Ele sugeriu que na inspiração o Espírito Santo assumia o controle da mente do escritor humano a fim de garantir “a exatidão daquilo que é revelado”.13 “A inspiração é co-extensiva ao escopo do que é revelado e nos assegura que as verdades reveladas correspondem ao que Deus tinha em mente.”14

Tanto na revelação quanto na inspiração, Deus opera sobre o pensamento, não sobre as palavras. Por meio da revelação, as idéias são geradas na mente do profeta e por intermédio da inspiração essas ideias são fielmente comunicadas. Contudo, a incerteza é introduzida sobre a base de que “um dos fatores desconhecidos na inspiração é o grau do controle do Espírito Santo sobre a mente dos escritores bíblicos”.15 A opinião de Heppenstall inferia que a inspiração divina não se estende às palavras das Escrituras. Consequentemente, ele avança para o que poderia ser chamado de “inerrância do pensamento”. Somente os pensamentos bíblicos, não as palavras, são inerrantes.

Muito convenientemente, por causa da apologética contra as críticas bíblicas e científicas das matérias escriturísticas, o crente pode argumentar que os erros e incoerências são devidos à linguagem imperfeita, não ao pensamento ou verdade imperfeita. Resumindo, segundo a inspiração do pensamento, a divina R-I opera na verdade por trás das palavras, mas deixa de afetar as palavras. Por isso, nas Escrituras temos a verdade infalível apresentada em linguagem falível. A Escritura, portanto, contém erros em assuntos de detalhe que não afetam o pensamento revelado.

Trabalhando a partir da declaração clássica de Ellen G. White sobre inspiração do pensamento, alguns eruditos têm concluído que a inspiração do pensamento opera sobre o processo de pensamento dos escritores bíblicos, mas não consegue alcançar suas palavras. Também admitem uma dicotomia entre pensamento e palavras. Os pensamentos são independentes das palavras. Nas Escrituras, portanto, temos verdades ou pensamentos perfeitos transmitidos em palavras falíveis e imperfeitas. Baseados nisto, eles sugerem que as Escrituras apresentam uma limitada errância verbal em matérias de detalhe ao nível das palavras. A mensagem salvífica das Escrituras, porém, permanece inerrante.

Em 1991, vindo precisamente da perspectiva de estudos bíblicos, Alden Thompson elevou o problema da inspiração bíblica ao primeiro plano da discussão adventista.16 Um ano depois, um grupo de teólogos adventistas publicaram uma resposta crítica à sua sugestão.17

Thompson distingue entre revelação e inspiração. Revelação é a comunicação sobrenatural de pensamentos e verdade aos profetas, “algum tipo de entrada especial de Deus, uma mensagem dele para suas criaturas na Terra”.18 O pensamento divino é comunicado por meio de intervenções sobrenaturais, tais como visões, sonhos, uma voz do céu, milagres, palavras escritas em pedra, e Jesus Cristo. A inspiração, porém, torna-se um muito vago e subjetivo “fogo em seus ossos”19 que move os profetas e apóstolos a escrever e falar devido à presença do Espírito Santo. Longe de afirmar que a inspiração transforma as palavras dos profetas nas palavras de Deus, Thompson acha que inspiração significa que “Deus se coloca perto o suficiente dos escritores para que as conclusões surjam com clareza suficiente”.20 Note que, na inspiração do pensamento, Deus não opera nem sobre os pensamentos do profeta nem sobre suas palavras. A inspiração é uma presença divina que o profeta sente nos ossos, não na mente, para Thompson.

A pergunta é: Quem é o originador das conclusões que surgem “suficientemente claras” nas palavras das Escrituras? A esta altura surge outra característica da opinião de Thompson sobre R-I. Embora todas as Escrituras sejam inspiradas (a presença divina sentida nos ossos do escritor), somente algumas porções são reveladas (vindas do pensamento, proposições e ações miraculosas divinas). Thompson discute este assunto afirmando, incorretamente, que “a Bíblia não diz que toda a Escritura foi dada por revelação”.21 Reagindo contra esta noção, Raoul Dederen conclui que “defender que tudo é inspirado, mas somente parte – isto é, uma pequena parte – é revelada, e sobre esta base discutir e tentar resolver as declarações aparentemente contraditórias da Escritura continua insatisfatório”.22

Pelo fato de as Escrituras não assumirem a distinção técnica entre revelação e inspiração que usamos para pesquisar dentro da compreensão das origens das Escrituras, Paulo afirma que todas as matérias das Escrituras se originaram em Deus. Desse modo, segundo as Escrituras, toda a Bíblia é tanto revelada quanto inspirada.

De onde, então, segundo Thompson, vêm as outras porções das Escrituras? Ele corretamente afirma que muitas porções das Escrituras se originaram da pesquisa e experiência. Tais matérias, porém, sendo de origem humana, podem possuir autoridade somente quando baseadas em inspiração. Todavia, se os escritores bíblicos não experimentaram inspiração nem cognitiva nem linguística, mas subjetiva, como um fogo em seus ossos, somos deixados com a inevitável conclusão de que grandes porções das Escrituras apresentam ideias humanas falíveis.

O uso de Thompson da inspiração do pensamento para fins exegéticos mostra como o método crítico-histórico pode ser usado na teologia adventista, a saber, circunscrevendo as matérias bíblicas que caem fora do alcance da inspiração do pensamento.

Vantagens e dificuldades da inspiração do pensamento. A inspiração do pensamento, conforme retratada por teólogos adventistas já mencionados, envolve pontos positivos e negativos. Do lado positivo, por exemplo, ela provê um meio termo entre a revelação do encontro modernista não-cognitiva e a inspiração verbal clássica absolutamente inerrante. A inspiração do pensamento tem também o efeito positivo de dirigir a atenção do intérprete para as matérias de mais relevância discutidas nas Escrituras e longe de minúcias. Finalmente, essa visão de inspiração tem a evidente vantagem de esclarecer os fenômenos bíblicos que não se ajustam dentro da teoria de inspiração verbal.

Entretanto, as reflexões sobre a inspiração do pensamento têm certas desvantagens. A dicotomia pensamento-palavras leva à alegação de que a inspiração não atinge as palavras das Escrituras. Infelizmente, essa afirmação e a dicotomia pensamento-palavras não são apoiadas pelas Escrituras, Ellen G. White, ou a análise filosófica. Embora a inspiração do pensamento esclareça os fenômenos das Escrituras e a experiência de Ellen G. White na escrita de seus livros melhor do que a inspiração verbal, a compreensão radical disto deixa de elucidar a clara afirmação bíblica de que a inspiração alcança as palavras (2Timóteo 3:16).

Além disso, um estudo detalhado do pensamento de Ellen G. White sobre inspiração parece sugerir que, segundo ela, a inspiração divina alcança as palavras e assegura a “total confiabilidade do relato bíblico”.23 A citação clássica de Ellen G. White da qual se servem os expositores da inspiração do pensamento para persuadir outros quanto à sua opinião diz: “Não são as palavras da Bíblia que são inspiradas, mas os homens é que o foram. A inspiração não atua nas palavras do homem ou em suas expressões, mas no próprio homem que, sob a influência do Espírito Santo, é possuído de pensamentos. As palavras, porém, recebem o cunho da mente individual. A mente divina é difusa. A mente divina, bem como sua vontade, é combinada com a mente e a vontade humanas; assim, as declarações do homem são a Palavra de Deus” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21). Infelizmente, eles omitem a última sentença do parágrafo em que Ellen G. White diz claramente que a inspiração atinge as palavras dos profetas. Ellen G. White afirma claramente que a inspiração divina – que inclui nossa técnica revelação e inspiração – não atua nas palavras (como afirma a teoria verbal), mas na formação do pensamento do escritor. Entretanto, a inspiração alcança as palavras dos profetas, que “são as palavras de Deus.” Em numerosas passagens, Ellen G. White alude às Escrituras como “a palavra inspirada”, ou “palavras” de Deus (Evangelismo, p. 269; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 17; Caminho a Cristo, p. 108), e “palavras da inspiração” (Life Sketches, p. 198; Testemunhos Para a Igreja, vol. 2, p. 605). Parece claro que Ellen G. White não apoiaria a inspiração do “pensamento” tal como muitos a compreendem no início do século vinte e um. Consequentemente, parece ilusório usar um aspecto de sua opinião complexa sobre inspiração para conferir autoridade à teoria que ela não aprovaria.

Embora como adventistas não creiamos que as palavras das Escrituras foram inspiradas, isto é, elas nem foram ditadas nem representam a linguagem divina por si mesma, todavia o processo de R-I alcança as palavras dos profetas. Em outras palavras, o Espírito Santo guiou os profetas no processo da escrita, assegurando que as próprias palavras dos profetas expressassem a mensagem que eles recebiam de uma forma fidedigna e confiável. Às vezes, Ellen G. White não sabia como melhor expressar o que lhe era mostrado; “enquanto a pena hesita por um momento”, escreveu ela, “as palavras apropriadas” lhe vinham à mente (Mente, Caráter e Personalidade, vol. 1, p. 318; Manuscript Release, vol. 2, p. 156 e 157).

A reflexão filosófica sugere que “a linguagem e o pensamento acerca das coisas estão de tal modo ligados, que é uma abstração conceber o sistema de verdades como um sistema previamente oferecido de possibilidades do ser [pensamentos] para o qual o sujeito significante [escritor bíblico] seleciona os sinais correspondentes [palavras]”.24 Pensamentos e palavras se pertencem mutuamente. Um pensamento sem nenhuma palavra ou palavras para ser comunicado perece na mente do pensador.

Outro problema é que, para todos os fins práticos, a inspiração do pensamento, conforme já definida, reduz inspiração a revelação. Devemos explicar. Tecnicamente, revelação lida com a formação de ideias na mente dos escritores bíblicos e inspiração com a parte do processo de comunicar revelação em formatos escritos ou orais. Quando a inspiração do pensamento alega que a assistência divina ao profeta não se estende às palavras está nisso limitando a intervenção divina na revelação. O problema prático deste ponto de vista é que não temos nenhum acesso ao pensamento profético, que morreu com os profetas deixando apenas suas palavras humanas falíveis.

Finalmente, a dicotomia pensamento-palavra cria uma disjunção entre a História e a salvação, que encontra seu fundamento não no pensamento bíblico, mas platônico. Sendo que o conteúdo teológico não está estritamente ligado às palavras das Escrituras, exegetas e teólogos acabam usando sua imaginação e apresentando-o como o conteúdo teológico do texto. Não é de surpreender que alguns teólogos e cientistas adventistas do sétimo dia, tentando harmonizar o relato bíblico da Criação com os ensinos científicos evolucionistas, usem a inspiração do pensamento na forma já discutida para justificar sua abordagem.

Mas se a separação entre pensamento e palavras dá lugar a pequenos erros, por que não deve também dar lugar a erros substanciais nos ensinos teológicos?

Revelação do encontro

O bem-argumentado artigo do erudito do Novo Testamento Herold Weiss, publicado em 1975, representa outra maneira de dar lugar ao uso do método crítico-histórico na teologia adventista. Weiss crê que a revelação ocorre como um encontro divino-humano não-cognitivo. “Eu não compreendo revelação”, explica ele, “como sendo essencialmente a comunicação de informação divina dada pelo Espírito aos escritores da Bíblia; nem considero fé como sendo a aceitação dessa informação. Antes, revelação é, primeiramente, uma manifestação divina que cria uma comunidade em que a vida expressa essa revelação em símbolos de ação, imaginação e pensamento sob a direção dos profetas”.25

O que, então, é a fonte dos conceitos e palavras das Escrituras? Não Deus, mas os profetas e apóstolos. Esta opinião produz uma dicotomia entre fé e crença. Enquanto a crença pertence ao domínio da História e é verificável, a fé pertence ao domínio da transcendência divina e não é verificável. As Escrituras como uma obra escrita representam os pensamentos e palavras dos profetas, não de Deus. O objetivo dessa aplicação não é descobrir a verdade, mas delinear a experiência mística, não-cognitiva, não histórica com Deus a fim de inspirar nossas próprias experiências de vida.

Resumindo estes pontos, podemos dizer que eruditos adventistas atualmente trabalham admitindo três diferentes interpretações de R-I. As diferenças revelam diferentes escolas e paradigmas teológicos. Elas influenciam decididamente todo o trabalho de pesquisa exegética e teológica mesmo a ponto de dividir os adventistas ao redor do mundo em distintas escolas de pensamento.

Em busca de uma compreensão bíblica de revelação-inspiração

Devemos escolher uma interpretação sobre as outras? Alternativamente, devemos procurar uma nova compreensão? Para responder a estas perguntas devemos começar avaliando as atuais teorias sobre R-I. Como as avaliamos? Nós as avaliamos prestando cuidadosa atenção a toda a evidência. Nossa interpretação, portanto, sem distorção, deve esclarecer tensões ou contradições encontradas em toda a extensão do autotestemunho e em outros fenômenos das Escrituras. Além disso, devemos olhar para a origem e o conteúdo das pressuposições hermenêutico-filosóficas explícita ou implicitamente envolvidas na concepção e na formulação de cada modelo de R-I.

Indo para além da revelação do encontro, da inspiração verbal e da inspiração do pensamento

Raoul Dederen aborda uma compreensão diferente de R-I usando uma metodologia diferente. Em vez de aceitar interpretações disponíveis para fins apologéticos ou hermenêuticos, Dederen submete os atuais modelos interpretativos à crítica baseada em um ouvir atento do que os autores bíblicos e Ellen G. White têm a dizer sobre o assunto.26 Sobre esta base, ele descobre que a revelação do encontro e a inspiração do pensamento são alternativas deficientes.

Dederen reconhece que a revelação não é apenas um fenômeno intelectual, mas um encontro pessoal do profeta com Deus. Todavia, segundo as Escrituras, argumenta ele, no encontro de revelação, Deus comunica, embora parcialmente, o conhecimento sobre si mesmo e sua vontade. Além disso, a disjunção entre o ato divino e a palavra humana sobre a qual a revelação do encontro constrói seu argumento não tem nenhum apoio bíblico. Esse ponto de vista só pode ser discutido em uma base científica e filosófica.27

Prosseguindo sobre a mesma base bíblica, Dederen descarta implicitamente a inspiração do pensamento conforme já discutida. Ele afirma que nas Escrituras palavra e pensamento se pertencem mutuamente. Consequentemente, “as palavras são intrínsecas ao processo revelação-inspiração”.28 Também corretamente, ele afirma que depois de examinar os escritos de Ellen G. White sobre R-I “tudo aponta para o fato de que Deus imbuiu a mente dos profetas de pensamentos e os inspirou no cumprimento de sua tarefa. Também velou sobre eles em suas tentativas de expressar ‘ideias infinitas’ e as incorporou nos ‘veículos finitos’ da linguagem humana”.29 As Escrituras são, “no mais elevado e mais verdadeiro sentido, criação de Deus.30 Finalmente, Dederen sente-se desconfortável com a noção de que as Escrituras são apenas parcialmente reveladas, mas totalmente inspiradas, e encoraja a Igreja a encontrar “outras soluções”.31

Esta sucinta avaliação desqualifica os três pontos de vista de R-I atualmente operantes na teologia adventista. Pelo fato de que cada opinião opera a partir de definições filosóficas de pressuposições hermenêuticas, nenhuma soma de reflexão as tornará responsivas a todo o alcance da evidência bíblica. Portanto, devemos desenvolver uma nova interpretação usando definições bíblicas das pressuposições hermenêuticas envolvidas em R-I.

Construindo a partir das Escrituras

Contudo, nada é realmente novo. Em nossa procura de outro modelo de interpretação, devemos reconhecer a força e contribuições dos atuais modelos sobre R-I. Da revelação do “encontro” devemos reter a convicção bíblica de que a obra de Deus de R-I ocorre dentro de uma relação histórica pessoal face a face (Deuteronômio 34:10). Da inspiração do “pensamento” devemos reter o ensino bíblico de que a obra divina de R-I enfoca o nível de processo-pensamento dos escritores bíblicos (2Pedro 1:21). Da inspiração “verbal” devemos reter o ensino bíblico de que a obra divina de R-I também alcança o nível das palavras (2Timóteo 3:16). Finalmente, porque na Escritura Deus encarnou seus pensamentos no pensamento e na escrita humana, os elementos humanos e divinos são inseparáveis. Consequentemente, nunca devemos tentar distinguir entre as contribuições divinas e humanas na concepção e na escrita da Bíblia.

Deste ponto de partida, devemos considerar as muitas maneiras com que Deus e os escritores bíblicos interagiram no processo de conceber as ideias e de reunir a informação que encontramos nas Escrituras. Devemos perguntar o mesmo no que concerne ao processo por meio do qual essas ideias e informação deviam ser postas em forma escrita (Hebreus 1:1). É verdade que Deus age de maneiras ocultas de nossa vista. Contudo, as Escrituras e Ellen G. White nos oferecem abundante evidência sobre a qual devemos construir nossa interpretação. A evidência que encontramos nelas inclui o autotestemunho e os fenômenos das Escrituras.

Em nossa procura de uma compreensão bíblica de R-I seguimos dois passos. Primeiro: consideraremos cuidadosamente as pressuposições hermenêuticas envolvidas em nossa interpretação dos agentes humanos e divinos envolvidos em R-I. Segundo: tentaremos formular de maneira sucinta uma interpretação bíblica de R-I usando as noções obtidas no primeiro passo, a fim de compreendermos as declarações gerais de Paulo e de Pedro sobre inspiração (2Timóteo 3:16; 2Pedro 1:20 e 21).

Pressuposições hermenêuticas fundamentais

A chave para qualquer interpretação jaz em aplicar os princípios hermenêuticos apropriados. O procedimento científico básico requer que derivemos nossas pressuposições hermenêuticas do assunto que queremos compreender. Sendo que em nosso caso estamos tentando compreender a origem das Escrituras, não somente devemos dar ouvidos ao que os autores bíblicos dizem sobre R-I, mas também tomar nota das pressuposições hermenêuticas que eles usaram, em vez de adotá-las da filosofia e ciências humanas. Fundamentalmente, pressupomos um Deus que age pessoalmente dentro do fluxo da história humana.

Afirma Dederen: “A revelação ocorre e se desdobra dentro da História”.32 Adaptando seus pensamentos, ideias e ações infinitas ao nosso nível de criatura, aos nossos limitados e imperfeitos modelos de pensamento e palavras, Deus habilita a história divina a ocorrer dentro da história humana. Não é o profeta, mas Deus quem traduz suas ideias para nossos padrões cognitivos e linguísticos.

A ideia de que Deus age historicamente no tempo, que é admitida pelos escritores bíblicos e por Ellen G. White e que jaz no fundamento do tema do grande conflito, exige uma reinterpretação das pressuposições hermenêutico-filosóficas que sustentam a revelação do encontro, a inspiração verbal e a inspiração do pensamento, compreendidas como uma dicotomia radical entre palavras e pensamentos.

Revelação

Em contraste com a ideia clássica, evangélica e moderna de que Deus usou apenas um modelo de operação divina em R-I, as Escrituras falam acerca de uma variedade de formas divinas. A introdução à epístola aos Hebreus afirma que “havendo Deus, outrora, falado muitas vezes (polumer’s) e de muitas maneiras (polutrop’s), aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hebreus 1:1 e 2).

Alguns adventistas têm começado a reconhecer esta variedade e têm sugerido que ao modelo “profético” geralmente aceito devemos acrescentar a “pesquisa modelo” de revelação. Outras sugestões incluem os modelos de revelação “testemunha”, “conselheira”, “epistolar” e “literária”. Precisa ser feito trabalho analítico adicional a fim de descobrir, tanto quanto possível, de que maneiras as agências divinas e humanas contribuíram para a geração do pensamento e informação bíblica.

Parece claro que na produção das Escrituras, as agências divinas e humanas interagiram, no mínimo, nos seguintes modelos: teofânico (Êxodo 3:1 a 5), profético (Apocalipse 1:1 a 3), verbal (Êxodo 31:18), histórico (Lucas 1:1 a 3), sapiencial (Eclesiastes 1:1, 12 a 14; Eclesiastes 12:9 a 11) e existencial (Lamentações 3:1). A análise destes modelos e de suas pressuposições hermenêuticas nos permitirá uma compreensão melhor de como toda a Bíblia resultou da revelação e da inspiração e nos habilitará a vencer a disjunção radical pensamento-versus-palavras implícita na inspiração do pensamento.

Inspiração

Os profetas nos deixaram muita informação sobre as maneiras como as intervenções divinas operaram enquanto eles estavam comunicando suas mensagens nas formas oral e escrita. Contudo, da informação disponível somos habilitados a extrair algumas conclusões proveitosas.

Parece que os escritores bíblicos recebiam as ideias e informação antes de se assentarem para escrever. Portanto, a função do Espírito Santo na inspiração não era primariamente gerar, mas assegurar a comunicação fidedigna da informação recebida.

Quando Deus enviou Moisés para libertar Israel do cativeiro egípcio, a equipe Moisés-Arão trabalhou de maneira semelhante à equipe Deus-profeta. Moisés representava Deus ao “pôr as palavras” na boca de Arão. Entrementes, Arão, falando por Moisés ao povo, desempenhava o papel de profeta.

O ato de “pôr as palavras na boca” de alguém significava que o receptor tornava-se um representante subserviente de outro; o representante, porém, tinha a liberdade de representar. Ele tinha, por assim dizer, poder de procurador. A representação textual não faz sentido. Arão tinha acentuadas habilidades verbais, e Deus o chamou para usar o seu dom. Do mesmo modo, os profetas e apóstolos, como representantes de Deus, eram subservientes aos pensamentos divinos, mas os expressavam segundo seu entendimento e maneira de expressão.

A esta altura, devemos ter em mente que na revelação o pensamento divino se adaptava às limitações e imperfeições dos processos de pensamento humano. Com a inspiração, o pensamento divino, já adaptado ao modo humano de pensar, ajusta-se aos modelos da escrita humana. Então, a maneira de pensar e de escrever que encontramos nas Escrituras não é divina, mas humana. Portanto, Ellen G. White nos diz: “A Bíblia foi escrita por homens inspirados, mas não é a maneira de pensar e exprimir-se de Deus. Esta é da humanidade. Deus, como escritor, não se acha representado. Os homens dirão muitas vezes que tal expressão não é própria de Deus. Ele, porém, não se pôs à prova na Bíblia em palavras, em lógica, em retórica. Os escritores da Bíblia foram os instrumentos de Deus, não sua pena” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21).

Isto não significa que o conteúdo das Escrituras é indigno de confiança. Significa apenas que não devemos esperar das Escrituras absoluta perfeição divina nos mínimos detalhes, como se Deus tivesse usado Sua maneira perfeita de pensar e escrever. O conteúdo verdadeiro gerado pela revelação torna-se expresso no modo imperfeito do pensamento e da escrita humanos.

Por exemplo, os escritores bíblicos não tinham memória perfeita; eles esqueciam as coisas como nós. Não possuíam percepção sensorial perfeita. Não eram capazes de compreender toda a riqueza dos pensamentos e ideias divinos a eles revelados. Além disso, nossas palavras podem ter vários, mesmo contraditórios, significados. Nossa sintaxe permite o arranjo de sentenças de diferentes maneiras com significados diferentes, e assim por diante. Tudo isto é parte do modo humano de pensar e escrever que Deus usou ao revelar e inspirar as Escrituras.

A inspiração divina sempre apagava ou anulava as imperfeições do modo humano de pensar e de escrever? Contrário às afirmações dos inspiracionistas “verbais”, os fenômenos das Escrituras mostram claramente que isto não era assim. Deus usou nosso imperfeito meio de comunicação para revelar-se a si mesmo e sua palavra a nós. Nas Escrituras, portanto, nós encontramos a verdade divina expressa em um imperfeito modo humano de comunicação. Deus queria que fosse deste modo, porque é a melhor maneira de revelar-se a si mesmo e suas verdades salvíficas a nós.33

O objetivo das Escrituras não é elevar o modo humano de pensar ou de escrever, mas assegurar que os escritores não substituem a verdade divina por suas próprias interpretações. A direção do Espírito Santo não anulava o modo de pensar e de escrever dos escritores bíblicos, mas supervisionava o processo da escrita a fim de maximizar a clareza das ideias e prevenir, se necessário, a distorção da revelação, ou a mudança da verdade divina em uma mentira. Em outras palavras, não devemos conceber a contínua orientação do Espírito Santo no processo da escrita como se fosse contínua intervenção divina, produzindo a escolha de cada pensamento e palavra das Escrituras. Em vez disso, devemos considerar um menos intruso modelo de inspiração, mais coerente com a liberdade dos escritores humanos.

Os comentários de Ellen G. White sobre sua própria experiência como escritora nos fornecem exemplos de muitos modelos remediadores-corretivos de intervenções diretas que o Espírito Santo usou durante o processo de inspiração. Por exemplo, notamos o realce da memória (Spiritual Gifts, vol. 2, p. 292 e 293; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 36 e 37), ajudando a achar uma “palavra adequada” (Manuscript Releases, vol. 2, p. 156 e 157; Mente, Caráter e Personalidade, vol. 1, p. 318), e dando nova revelação (Mensagens Escolhidas, vol. 3, p. 36 e 110). Destes exemplos podemos ver que Deus não produz as palavras anulando a função normal da agência humana. Pelo contrário, vemos os processos de pensamento e de escrita ocorrendo livremente na agência humana sob a cuidadosa direção do Espírito Santo.

Finalmente, as Escrituras apresentam um exemplo de uma forma de intervenção divina ocasional também usada pelo Espírito Santo para guiar os escritores bíblicos. Notamos as profecias de Balaão (Números 22:1 a 24:25). O texto bíblico e os comentários de Ellen G. White deixam claro que a liberdade de Balaão foi anulada pelo Espírito Santo (Números 22:18, 20, e 28 a 31; Patriarcas e Profetas, p. 439, 443, 448 e 449). Este modelo não é o modelo costumeiro de inspiração divina, como sugere a teoria verbal. Obviamente, não podemos aplicar o exemplo de Balaão de operação divina aos profetas bíblicos.

Esse incidente nos ajuda a ver que Deus não se permitirá ser mal-representado por reconhecidos profetas que, por causa do interesse próprio, estão dispostos a mudar a verdade divina em mentira. O Espírito assegurava que os profetas escolhidos não mudassem as verdades divinas em imaginação humana.

Sobre a base precedente, podemos afirmar a total confiabilidade das Escrituras dentro dos parâmetros das limitações normais do pensamento e do processo linguístico humanos. Sendo que toda a Bíblia é revelada e inspirada dentro do nível do pensamento e linguagem humanos, ela não representa a perfeição divina; todavia, suas palavras nos revelam com segurança os pensamentos e a vontade de Deus.

Esta visão de inspiração explica por que certas discrepâncias e a ausência de absoluta precisão em matérias de detalhe que encontramos nos fenômenos das Escrituras não afetam a comunicação fidedigna dos conteúdos revelados.

Um modelo bíblico de revelação-inspiração

Nesta seção, juntaremos nossa análise da evidência bíblica reunida até aqui. Como a compreensão bíblica de Deus, a diversidade de Suas operações no processo de formar as matérias das Escrituras (revelação), e a comunicação disto em forma escrita e oral (inspiração) moldam nossa compreensão de R-I? Procuraremos descrever o que pode ser designado como um modelo bíblico.

Descobrimos anteriormente que as declarações de Pedro e de Paulo sobre inspiração (2Timóteo 3:16; 2Pedro 1:20 e 21) determinam os parâmetros gerais dentro dos quais temos procurado compreender a “orientação” do Espírito Santo e o “movidos” das agências humanas envolvidas no processo de escrever a Bíblia. Sendo que aquelas declarações não distinguiam tecnicamente entre os processos de produção das matérias e da escrita, devemos compreender suas declarações sobre “inspiração” como se aplicando a ambos, que tecnicamente analisamos nas seções sobre “revelação” e “inspiração”.

Sumário: Devemos compreender a inspiração divina das Escrituras, da qual Paulo, Pedro e Ellen G. White falaram, como incluindo, no mínimo, os seguintes pontos:

  1. “Direção” divina ou “movidos” agindo diretamente sobre a agência humana no processo de R-I.
  2. A “direção” divina ou “movidos” das agências humanas seguiu as várias maneiras da providência divina operando dentro do fluxo dos eventos históricos, não como o atemporal, soberano e absoluto poder de Deus operando por meio de decretos eternos e anulando a liberdade dos escritores bíblicos.
  3. Deus guiou a recepção de informação e a formação de ideias nos escritores bíblicos por meio de um processo histórico de revelações divinas cognitivas dadas a eles em uma diversidade de modelos.
  4. A “orientação” divina e o “movidos” das agências humanas adotaram modelos múltiplos de operações divinas, nos processos de revelação e inspiração (Hebreus 1:1) com acentuada ênfase sobre o primeiro. Esta ênfase permite a inclusão da dinâmica da inspiração do “pensamento” no modelo bíblico.
  5. Toda a Escritura foi revelada e inspirada. Neste sentido, o modelo bíblico de R-I é pleno, porque aceita a totalidade das Escrituras.
  6. A “direção” do Espírito Santo ou “movidos” utilizava-se da liberdade e habilidades literárias das agências humanas em seu desenvolvimento histórico e espiritual. A anulação divina da agência humana não era o principal modelo de “direção” divina ou “movidos”, mas um possível último recurso para evitar a má representação humana.
  7. Pelo fato de que a direção do Espírito Santo respeitava os modos humanos de pensamento e escrita, não devemos esperar encontrar nas Escrituras a perfeição absoluta que pertence unicamente à vida íntima da Trindade. Ao contrário, não nos devemos surpreender se encontrarmos nas Escrituras imperfeições e limitações que pertencem essencialmente aos modos humanos de pensar e escrever.
  8. Embora a “direção” e o “movidos” divinos operassem nas agências humanas, por meio delas são atingidas as palavras das Escrituras. Neste sentido o modelo bíblico de R-I é “verbal”.
  9. A “direção” divina no processo da escrita não assegurava absoluta perfeição divina, mas em sua totalidade as Escrituras verdadeira e fidedignamente representam os ensinamentos, vontade e obras de Deus.

Resumindo, Deus, não os escritores humanos, é o autor das Escrituras no sentido de que ele é a fonte de conteúdo, ação e interpretação.

Diferenças de outros modelos

O modelo bíblico de R-I difere de maneira significativa das teorias de revelação do encontro, verbal e do pensamento. O modelo bíblico e a teoria de revelação do encontro compartilham um elemento existencial pessoal, mas a última nega qualquer comunicação de verdade no encontro.

Com respeito à natureza da informação produzida na revelação, o modelo bíblico percebe verdades concretas, históricas, espaço-temporais, ao passo que a teoria da revelação do “pensamento” gera verdades atemporais e não-históricas. Conquanto para alguns a inspiração do “pensamento” deixe de afirmar a orientação divina na escrita da Bíblia, o modelo bíblico a afirma.

Em comum com a teoria “verbal” de inspiração, o modelo bíblico afirma que o Espírito Santo guiou os escritores bíblicos não somente enquanto recebiam informação e ideias reveladas, mas também no processo de escrever a Bíblia em sua inteireza. Entretanto, os dois modelos se afastam no nível básico das pressuposições hermenêuticas fundamentais que determinam a maneira por que compreendemos as contribuições sobrenaturais de Deus para a formação das Escrituras. A teoria “verbal” admite que Deus age atemporalmente e soberanamente, anulando a liberdade humana dos escritores bíblicos. Em contraste, o Modelo Bíblico admite que a providência divina age dentro do fluxo espaço-temporal da liberdade humana concreta e da história.

Finalmente, não devemos esquecer que estamos lidando com um mistério que conhecemos e compreendemos somente em parte. Portanto, nosso modelo de interpretação deve ser compreendido como o primeiro passo em vez de a palavra final. Sendo o primeiro passo, ele nos leva a um caminho teológico muito diferente dos atuais modelos que operam dentro das teologias adventistas e cristãs do presente. A importância de uma compreensão correta, embora parcial, de R-I centraliza-se em sua função hermenêutica na tarefa de fazer teologia cristã. Precisamos voltar agora nossa atenção para a função hermenêutica do modelo bíblico de R-I delineado neste capítulo.

Influências hermenêuticas

De que maneira a compreensão de R-I já esboçada causa impacto na nossa interpretação das Escrituras e na tarefa de fazer teologia? Influencia essas tarefas por meio dos princípios hermenêuticos que derivam dela. Se é assim, quais são os importantes princípios derivativos?

Plena encarnação do pensamento divino nas palavras humanas

Segundo o modelo bíblico de R-I, Deus se revelou de muitas maneiras condescendendo com os modelos humanos de pensamento e escrita. Toda a Bíblia é revelada. As palavras dos profetas tornaram-se as palavras de Deus. Então, quando fazemos exegese e teologia não devemos distinguir entre o pensamento divino e as palavras humanas ou entre porções das Escrituras.

Temos acesso aos ensinamentos e à revelação divina somente por meio das palavras. Consequentemente, todo o texto das Escrituras, desde Gênesis a Apocalipse, torna-se a mais específica, suficiente, e única fonte confiável de dados e princípios hermenêuticos que temos para conhecer a Deus e sua vontade para nós.

Composição histórica das Escrituras

Segundo o modelo bíblico de R-I, Deus se revela dentro do processo histórico (Êxodo 25:8; João 1:1 a 14). Em outras palavras, a revelação é histórica, primariamente porque Deus executa seu plano de redenção historicamente de dentro do fluxo espaço-temporal da história humana. Todavia, esta condescendência divina não significa que os ensinos bíblicos são o resultado de tendências culturais. Significa simplesmente que as verdades divinas transcendentes aparecem não apenas dentro das limitações da humanidade, em geral, mas também dentro das limitações dos tempos históricos em que cada profeta viveu e escreveu. Guiados pelo Espírito Santo, os profetas usaram a cultura crítica e seletivamente.

A revelação divina não está historicamente condicionada. Os aspectos culturais da história sagrada são datados, mas eles formam parte das ações e da revelação divina. Portanto, o intérprete adventista admitirá que o texto bíblico, em sua totalidade, o resultado da revelação divina na História, recebida, compreendida e composta por profetas e apóstolos. A consciência das situações históricas em que ocorreram a revelação divina e o escrito profético torna-se um passo necessário para uma compreensão adequada dos pensamentos e ensinos divinamente revelados.

A natureza multifária das verdades divinas

Uma vez que o modelo bíblico de R-I procede de dentro do fluxo da história humana, ele compreende o propósito das Escrituras de revelar verdades não somente acerca de Deus, mas também acerca de tudo o que Deus tem criado na natureza e feito na história. Portanto, as verdades bíblicas não podem ser confinadas a Deus ou à salvação, como outros modelos parecem sugerir, mas abrange a extraordinária diversidade de verdades interligadas acerca de Deus e de suas obras. Os exegetas e teólogos devem tomar cuidado especial para não extinguir essa riqueza pela decisão unilateral de que somente certas verdades salvíficas são relevantes, descartando o restante. Agindo assim, os teólogos se colocam em uma redutiva e distorcida busca da “essência” da mensagem cristã, rejeitando a grande maioria de ensinos bíblicos tão culturalmente condicionados e, portanto, disponíveis.

Limitações do conhecimento revelado

Segundo o modelo bíblico de R-I, a revelação divina está limitada por todas as características dos nossos modos humanos de conhecer e de escrever. Os intérpretes devem sempre ter em mente que nem mesmo os escritores bíblicos podem apresentar completamente uma só verdade em linguagem humana (João 21:25).34 Mesmo as verdades humanas são sempre maiores e mais amplas do que aquilo que nossa linguagem pode expressar. Consequentemente, os intérpretes que lidam com os mistérios divinos devem guardar-se do erro hermenêutico de admitir que a interpretação de uma passagem significa a verdade completa sobre determinado assunto.

Além disso, o conhecimento revelado está limitado pela imperfeição da sintaxe humana. O intérprete é obrigado a fazer escolhas baseado em suposições; daí a grande importância de uma compreensão clara das pressuposições hermenêuticas e do modelo bíblico de R-I envolvidos na interpretação das Escrituras.

Confiabilidade das Escrituras

O modelo bíblico de R-I nos assegura que a revelação divina é confiavelmente comunicada nas palavras das Escrituras. Portanto, nas Escrituras não encontramos a compreensão ou filosofia de seus autores humanos, mas de Deus. R-I é o processo utilizado pelo Espírito Santo para comunicar as opiniões de Deus sobre a natureza, a história, nossa condição humana, e seu envolvimento dinâmico e salvífico nelas.

As Escrituras revelam as opiniões e revelações de Deus na Natureza e na História. Além disso, não há nenhuma dicotomia entre história e salvação, porque a salvação ocorre como um processo histórico em que Deus está pessoalmente envolvido. As Escrituras nos fornecem a descrição ampla necessária para nossa vida neste mundo e no mundo vindouro. Neste sentido amplo e todo-inclusivo, as Escrituras não erram e constituem a fonte básica confiável de conhecimento divino deste lado da eternidade.

Segundo o modelo bíblico, R-I ocorre dentro do continuum histórico-temporal. Assim, as Escrituras incluem muitos dados históricos e naturais indispensáveis que pertencem essencialmente às revelações e ações de Deus. A revelação bíblica, porém, não procura fornecer-nos um exato e exaustivo relato de dados históricos e científicos, mas antes com uma síntese confiável da multifária sabedoria, vontade e atividades divinas dentro do domínio espaço-temporal da criação. Os fatos nas Escrituras são sempre incorporados conforme exigidos pelas atividades salvíficas e todo-inclusivas de Deus no fluxo da história humana.

O intérprete, portanto, deve ler as Escrituras não como ciência, mas como uma filosofia da História. Ele deve pesquisar o significado da revelação bíblica no todo-inclusivo nível teológico sem esperar encontrar uma espécie de exatidão no que concerne aos fatos históricos e naturais que alguém antecipa nos estudos científicos. A falta de precisão em detalhes factuais deve ser considerada como evidência da plena encarnação do pensamento divino dentro do fluir diário da história humana.

Autoridade das Escrituras

O modelo bíblico de R-I fundamenta a autoridade das Escrituras em Deus. Autoridade significa que as Escrituras são a fonte confiável de informação acerca de Deus, suas ações, seus ensinos e suas verdades salvíficas para nós. Sendo que nas Escrituras Deus revela explicitamente seus pensamentos e suas ações a respeito de tudo, elas devem julgar cada pensamento e não ser julgadas por ninguém (1Coríntios 2:15; 2Coríntios 10:5).

Da autoridade das Escrituras seguem-se certas consequências. Em estudos exegéticos e teológicos, por exemplo, o intérprete nunca deve tentar compreender as Escrituras partindo de pressuposições hermenêuticas baseadas em ciências e filosofias humanas. As Escrituras interpretam-se a si mesmas. Pode-se aplicar uma hermenêutica de suspeita a estudos científicos e filosóficos, mas nunca às Escrituras.

Finalmente, a autoridade das Escrituras e sua inspiração são confirmadas pela fidelidade de seus ensinos (João 17:17). Essa confirmação, porém, depende da aceitação do modelo bíblico de R-I. Caso contrário, os intérpretes que aplicam a hermenêutica de suspeita às Escrituras jamais compreenderão suas verdades, e, portanto, nunca serão capazes de comprová-las.

Conclusão

Durante os cinquenta anos passados, um grande segmento de eruditos adventistas tem adotado alguma versão da inspiração do pensamento. Outros têm se sentido satisfeitos por operar dentro de uma visão global de inspiração. Alguns teólogos têm se aventurado no terreno da revelação do encontro modernista. Por trás desses pontos de vista, encontramos pouquíssima reflexão teológica e filosófica séria. Em geral, os adventistas têm “resolvido” de modo prático o problema de revelação, isto é, simplesmente adotam uma interpretação de R-I já feita a fim de anteciparem problemas interpretativos e práticos.

Como resultado, no início do século vinte e um a inspiração do pensamento parece reter a lealdade de um amplo espectro de teólogos adventistas. Seu argumento contra a inspiração verbal e a favor da inspiração do pensamento baseia-se em algumas declarações escolhidas de Ellen G. White sobre R-I. Teólogos têm usado a cunha entre pensamento e palavra, que é característica da inspiração do pensamento, para diversas finalidades. Elas se estendem desde explanações de incoerências históricas e literárias até uma acomodação a teorias científicas e filosóficas, tais como o método crítico-histórico e a evolução. Conquanto o método crítico-histórico não afete a compreensão adventista do sétimo dia acerca das Escrituras dentro da estrutura do tema do grande conflito, uma acomodação às teorias científicas e filosóficas envolve seu abandono e substituição.

Uma coisa está clara. Os adventistas não estão unidos em sua compreensão do problema fundamental de R-I. Além disso, os três pontos de vista que circulam entre eles foram formulados por filósofos e teólogos cristãos que trabalharam a partir de princípios hermenêuticos derivados da filosofia humana. Esses princípios não são apenas extrabíblicos em origem, mas contrários ao pensamento bíblico em conteúdo. Além disso, nenhuma das três opções integra satisfatoriamente toda a evidência; daí a necessidade de que se descortine claramente um novo modelo de interpretação.

Alguns adventistas têm procurado um meio melhor de compreender R-I ouvindo atentamente as Escrituras (ensinos e fenômenos) e Ellen G. White. Edificando sobre sua obra, temos sugerido neste capítulo um novo modelo de compreensão de R-I. É um modelo bíblico, porque edifica sobre pressuposições hermenêuticas bíblicas fundamentais e presta atenção cuidadosa a toda a extensão da evidência bíblica (doutrina e fenômenos). Precisamos continuar buscando uma melhor e mais profunda compreensão das pressuposições hermenêuticas fundamentais envolvidas em nossa interpretação de R-I. Somente sobre tal base podemos vencer as deficiências da inspiração verbal, da inspiração do pensamento e da revelação do encontro.

Devemos esclarecer e integrar, em detalhes, toda a evidência que encontramos nos ensinos e fenômenos das Escrituras em relação a R-I. Deste modo, compreenderemos ainda mais como Deus nos revelou conhecimento e informação em um relato escrito confiável, uma carta de amor tendo em vista a nossa salvação. Devemos continuar atribuindo toda autoridade teológica à revelação escrita de Deus em todo o texto das Escrituras, a despeito de pequenas incongruências em detalhes históricos. Com tão sólida e rica fonte de dados reveladores, os teólogos adventistas serão capazes de investigar ainda mais profundamente dentro da maravilhosa riqueza da revelação divina, estendendo a mão para sua interna coerência histórica centralizada no contínuo envolvimento de Deus no grande conflito. Também serão capazes de explicar suas opiniões diante de quaisquer escolas de teologia que edificam sobre a areia movediça de filosofias e convicções científicas humanas.

Referências

  1. As palavras revelação-inspiração são hifenizadas para indicar que são aspectos inseparáveis do mesmo processo. Para economizar espaço, eu usarei a abreviatura “R-I”.
  2. Alberto R. Timm, “A History of Seventh-day Adventist Views on Biblical and Prophetic Inspiration (1844-2000)”, Journal of the Adventist Theological Society 10, (1999), 542 (ênfase do autor).
  3. Agostinho, Confissões, 12. 15. 18.
  4. Raoul Dederen, “The Revelation-Inspiration Phenomenon According to the Bible Writers”, in Frank Holbrook e Leo Van Dolson, eds., Issues in Revelation and Inspiration, Adventist Theological Society Occasional papers, vol. 1 (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society Publications, 1992), p. 11.
  5. Edward Heppenstall, “Doctrine of Revelation and Inspiration (parte 1)”, Ministry, julho de 1970, p. 16.
  6. Timm, p. 487-509.
  7. Carlyle B. Haines, God’s Book (Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1935).
  8. Ibid., p. 144 (ênfase suprida).
  9. Ibid., p. 136 (ênfase do autor).
  10. Samuel Koranteng-Pipim apresenta um recente e explícito exemplo desta tendência; veja seu Receiving the Word: How New Approaches to the Bible Impact our Biblical Faith and Lifestyle (Berrien Springs, MI: Berean Books, 1996). Como acontece com Alden Thompson, que será discutido posteriormente, Pipim não lida explicitamente com a doutrina de revelação-inspiração, mas admite a teoria verbal evangélica, como muitos adventistas têm feito no passado (ibid., 51). Como sucede com Haynes, a abordagem de Pipim é apologética contra as incursões do modernismo e o método de exegese da crítica histórica na teologia adventista. Pipim se distancia da teoria verbal evangélica de inspiração quando enfatiza a “fidedignidade” das Escrituras em vez de sua “inerrância” (p. 54-55). Contudo, ele se aproxima quando explicando que embora “nenhuma distorção venha da mão dos escritores originais da Bíblia, algumas alterações e pequenas distorções têm se insinuado na Palavra durante o processo de transmissão e tradução” (p. 227).
  11. “General Conference Proceedings”, Review and Herald, 27 de novembro de 1883, p. 741-742.
  12. Edward Heppenstall, parte 1, p. 16.
  13. Ibidem.
  14. Ibidem.
  15. Idem, “Doctrine of Revelation and Inspiration (conclusão)”, Ministry, agosto de 1970, p. 29.
  16. Alden Thompson, Inspiration: Hard Questions, Honest Answers (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1991).
  17. Holbrook e Van Dolson, eds. Issues in Revelation and Inspiration.
  18. Thompson, p. 47.
  19. Ibid., p. 53.
  20. Ibidem.
  21. Ibid., p. 48 (ênfase do autor).
  22. Raoul Dederen, “On Inspiration and Biblical Authority”, em Issues in Revelation and Inspiration, p. 101.
  23. Gerard P. Damsteeg, “The Inspiration of Scripture in the Writings of Ellen G. White”, Journal of the Adventist Theological Society, 5, no. 1 1 (1994); 162.
  24. Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, 2ª ed. rev., trad. Joel Weinsheimer e Donald G. Marshall (New York: Continuum, 1989), p. 417.
  25. Herold Weiss, “Revelation and the Bible: Beyond Verbal Inspiration”, Spectrum 7, nº 3 (1975): 52.
  26. Raoul Dederen, “Toward a Seventh-day Adventist Theology of Revelation-Inspiration”, em North American Bible Conference (Divisão Norte-Americana: ensaio não publicado, 1974), 10.
  27. Esta virada em nível científico-filosófico da hermenêutica parece revestir a proposta metodológica de Fritz Guy para a teologia adventista em seu Thinking Theologically: Adventist Christianity and the Interpretation of Faith (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1999).
  28. Dederen, “Toward a Seventh-day Adventist Theology of Revelation-Inspiration”, p. 16.
  29. Ibid., p. 13.
  30. Ibid., p. 10.
  31. Idem, “On Inspiration and Biblical Authority”, p. 101 e 97.
  32. Idem, “Toward a Seventh-day Adventist Theology of Revelation-Inspiration”, p. 6.
  33. “O Senhor deu Sua Palavra precisamente da maneira como Ele queria que ela viesse. Deu-a por intermédio de diferentes escritores, cada um tendo sua própria individualidade, embora tratando da mesma história” (Publishing Ministry, p. 2).
  34. Explica Ellen G. White: “É impossível a qualquer mente humana esgotar mesmo uma única verdade ou promessa da Bíblia” (Educação, p. 171).

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Timm, Alberto. “A History of Seventh-day Adventist Views on Biblical and Prophetic Inspiration 1844-2000)”. Journal of the Adventist Theological Society 10 (1999): 486-542.

Thompson, Alden. Inspiration: Hard Questions, Honest Answers. MD: Review and Herald, 1991.

Fernando L. Canale, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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A AUTORIDADE DAS ESCRITURAS

Introdução

A autoridade da Bíblia como a Palavra de Deus tem sido um importante assunto no cristianismo, bem como na Igreja Adventista do Sétimo Dia, durante as últimas décadas. Deve a Bíblia ser a autoridade final em todas as matérias de crença e de estilo de vida, ou devemos permitir que as forças científicas e socioculturais nos influenciem em lugar da Bíblia? Como em outras igrejas cristãs que têm as Escrituras sem alta consideração, as opiniões bíblico-históricas estão sob ataque na Igreja Adventista, quer sejam completamente rejeitadas por alguns, quer sejam modificadas quase além de reconhecimento. Este capítulo lida com a natureza da autoridade de Deus e da Bíblia, e a evidência para tal autoridade, juntamente com as repercussões que elas têm sobre a hermenêutica bíblica.

A autoridade de Jesus Cristo e a autoridade das Escrituras

Por mais de três mil anos, os judeus têm recebido os escritos de Moisés e dos profetas como Sagradas Escrituras e, além disso, os cristãos aceitam os evangelhos e os outros livros do Novo Testamento como merecendo a mesma designação sagrada. As Escrituras são a palavra escrita de Deus. O apóstolo Paulo, escrevendo aos judeus e aos cristãos gentios de Roma, suscitou a interrogação: “Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?” Sua resposta: “Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Romanos 3:1 e 2). As Escrituras são os oráculos de Deus. Esta foi a convicção do apóstolo Paulo e tem sido a crença de incontáveis milhões de judeus e cristãos pelos séculos; e ainda é hoje.

As Escrituras como autoridade

As expressões “as Escrituras”, “Sagradas Escrituras”, ou, simplesmente, “Escritura” ocorrem mais de cinquenta vezes no Novo Testamento. As Escrituras hebraicas, comumente chamadas pelos cristãos de Antigo Testamento, eram uma coleção bem definida de livros, consistindo de três grandes seções: a Lei, os Profetas e os Escritos (Lucas 24:44). O estudo cuidadoso da maneira como Jesus usava os termos “as Escrituras”, “Escritura”, “Está escrito” e expressões similares, demonstra claramente que Ele atribuía às Escrituras hebraicas autoridade final e inquestionável.1

Para ele, as Escrituras são a Palavra de Deus que não pode ser anulada (João 10:35). Ele repudiou as tentações do diabo com um decisivo “Está escrito” (Mateus 4:4, 7, e 10). Apelava frequentemente para as Escrituras como predizendo seu ministério messiânico (Lucas 4:17 a 21; João 5:39 a 47), e, depois de sua ressurreição, Ele explicou aos seus discípulos, de todas as Escrituras, as coisas concernentes a si mesmo (Lucas 24:27). A despeito das negações persistentes de alguns eruditos modernos, não pode haver nenhuma dúvida séria de que a evidência apresentada nos quatro evangelhos justifica a conclusão de John Wenham de que “para Cristo, o Antigo Testamento é verdadeiro, autorizado, inspirado. Para ele, o Deus do Antigo Testamento é o Deus vivo, e o ensino do Antigo Testamento é o ensino do Deus vivo. Para ele, o que as Escrituras dizem, Deus diz”.2

Jesus como autoridade

Os evangelhos relatam que Jesus Cristo reivindicava para si mesmo autoridade divina. Ele podia dizer: “Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do homem” (João 5:26 e 27); “toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mateus 28:18).

A palavra “autoridade” é traduzida da palavra grega exousia, que tem uma extensão muito ampla de significados, tais como liberdade de escolha; o direito de agir ou decidir; a capacidade de fazer alguma coisa; autoridade; o poder exercido pelos governantes em virtude do seu cargo; e mesmo, poder absoluto. Nos textos anteriormente citados, Jesus se refere ousadamente à sua absoluta autoridade como o eterno Filho de Deus, que em sua encarnação também se torna o Filho do homem, o Filho de Davi, o Messias. Em vista de suas reivindicações à autoridade suprema, é significativo que Jesus ainda dirigisse a mente de todos, seguidores ou inimigos, às Escrituras como a Palavra de Deus. Ali, suas credenciais messiânicas deviam ser confirmadas, problemas de doutrina e vida resolvidos, e, por elas, todos seriam julgados (João 5:39 a 46; Lucas 16:29 a 31; Mateus 22:29 a 32; Lucas 24:44 a 47). Ele não veio para abolir as Escrituras, mas para cumpri-las, confirmando, assim, sua autoridade (Mateus 5:17 a 19).

Alguns podem objetar que é um argumento cíclico derivar a autoridade das Escrituras da autoridade suprema de Cristo enquanto estiverem se apoiando na própria evidência derivada das Escrituras. O fato evidente por si mesmo é de que a autoridade divina só pode ser afirmada pelo próprio testemunho de Deus, por sua própria Palavra. Como Deus jurou por si mesmo a Abraão quando fez uma promessa, “visto que não tinha ninguém superior por quem jurar” (Hebreus 6:13), mesmo assim, Deus testifica da autoridade de sua Palavra por seu próprio testemunho, porque não há nenhuma fonte superior ao próprio Deus. Foi o Espírito Santo, Deus mesmo, quem moveu os profetas e apóstolos a escrever as Escrituras para testificar de Cristo (2Pedro 1:19 a 21; 1Pedro 1:10 a 12; João 16:13 a 15). E é Cristo, do qual as Escrituras dadas pelo Espírito testificam, quem põe o selo de sua divina autoridade sobre as Escrituras inspiradas por Deus.

A natureza da autoridade de Deus e da Bíblia

Sendo que as Escrituras vêm a nós como os oráculos de Deus, elas falam com divina autoridade. Mas o que significa isso? Neste mundo, a autoridade geralmente se baseia na posição, função, riqueza, poder, educação, beleza, certas habilidades, ou algum outro recurso que põe de lado uma pessoa ou um grupo. As tradições e costumes religiosos frequentemente são revestidos de significativa autoridade semelhante à posição das tradições dos anciãos, ou pais, entre os judeus do tempo de Cristo e dos apóstolos (Mateus 15:2; Gálatas 1:14). Todas as formas de autoridade humana, porém, são derivadas, e, neste mundo, temporárias. Contrastando, a autoridade de Deus é eterna e não derivada, porque Ele mesmo é eterno (Salmos 90:2) e não-derivado (Êxodo 3:14). Por ser ele o Criador, a autoridade de Deus permanece suprema sobre todas as suas criaturas, e toda autoridade da criatura está subordinada à autoridade do Criador.

Conquanto a autoridade divina seja eterna e suprema, é muito diferente daquilo geralmente compreendido como autoridade na experiência humana. Jesus explicou esta diferença aos seus discípulos no meio de uma disputa entre eles concernente a quem seria considerado o maior. Disse ele: “Os reis dos povos dominam sobre eles, e os que exercem autoridade são chamados benfeitores. Mas vós não sois assim; pelo contrário, o maior entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve” (Lucas 22:25 e 26). Então, se referindo a si mesmo, a quem eles reconheciam como Senhor, Ele disse: “No meio de vós, Eu sou como quem serve” (verso 27). A autoridade divina está fundamentada no amor e é exercida em serviço e em abnegação.

Primariamente, a autoridade divina não repousa sobre força suprema ou conhecimento perfeito, embora ambos sejam atributos divinos. Aqui está um assinalado contraste entre o governo divino, baseado no amor, e o governo humano, baseado nos princípios da força e da exaltação própria.

Ao ser interrogado por Pilatos sobre se Ele era o Rei dos judeus, Jesus respondeu: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse Eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36). Tendo Pilatos perguntado novamente: “Logo, tu és rei?”, Jesus deixou claro que sua autoridade – sua realeza – era definida pela verdade. Respondeu Ele: “Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (João 18:37).

Precisamente como a autoridade de Cristo se baseia principalmente no amor divino e é definida pela verdade, assim nos falam as Escrituras, com a mesma autoridade. Há muito se tem reconhecido que há um profundo paralelismo entre Cristo, a Palavra que se fez carne, e as Escrituras, a Palavra de Deus, expressa em linguagem humana. As palavras dos profetas e dos apóstolos não são meramente palavras humanas, mas a Palavra de Deus em forma humana. Paulo deu graças a Deus porque os cristãos de Tessalônica tendo “recebido a palavra” que ouviram, acolheram-na “não como palavra de homens e, sim, como em verdade é, a palavra de Deus” (1Tessalonicenses 2:13). É realmente o Espírito de Cristo quem nos fala nas palavras dos profetas e dos apóstolos (1Pedro 1:10 a 12). Ellen G. White chama a atenção para este paralelismo entre Cristo e a Bíblia:

“A união do divino e humano, manifestada em Cristo, existe também na Bíblia. As verdades reveladas são todas “dadas por inspiração divina”; contudo, elas são expressas em palavras de homens e adaptadas às necessidades humanas. Assim, pode ser dito do Livro de Deus, como foi de Cristo, que “a Palavra se fez carne e habitou entre nós”. E esse fato, longe de ser um argumento contra a Bíblia, deve fortalecer a fé nela como a palavra de Deus” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 747).

O paralelismo com frequência tem sido expresso em função da forma de servo tanto de Cristo quanto da Bíblia. Observa Bernard Ramm: “Tanto o Salvador divino quanto as divinas Escrituras trazem a forma de um servo embora ambos contenham dentro de si mesmos a glória divina”.3 Ainda que existam as limitações do paralelismo ou semelhança, é apropriado aplicar às Escrituras o que foi dito das palavras de Jesus: “Jamais alguém falou como este homem” (João 7:46), e também: “Ele as ensinava como quem tem autoridade” (Mateus 7:29). Embora Cristo “se fizesse nada, tomando a própria natureza de um servo, sendo feito em semelhança humana” (Filipenses 2:7), Ele falava com autoridade divina. Semelhantemente, conquanto as Escrituras sejam dadas na fraqueza e na imperfeição da linguagem humana, “toda palavra de Deus é pura” (Provérbios 30:5), “é a verdade” (João 17:17), “é viva, e eficaz” (Hebreus 4:12), “não pode falhar” (João 10:35), “permanece eternamente” (Isaías 40:8).

Evidência bíblica confirmando a suprema autoridade das Escrituras como a Palavra de Deus

As Escrituras vêm a nós como a Palavra de Deus. Elas se dirigem aos homens com divina autoridade, a autoridade do único Deus verdadeiro. As palavras do Shemá, “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Deuteronômio 6:4), expressam a singularidade de Yahweh, o Deus de Israel. Todas as Escrituras, tanto o Antigo quanto o Novo Testamento, reconhecem apenas um Deus. Sua autoridade é suprema acima de toda autoridade. Embora sua autoridade se baseie no amor, ela não tolera nenhum rival. Ele é o Criador do Céu e da Terra, e nenhum outro ser pode reivindicar a mesma prerrogativa (Isaías 40:25 a 28; Isaías 45:18). Ele também é o único que pode salvar (Isaías 43:10 a 12).

Igualmente, embora as palavras de Deus nas Escrituras cheguem a nós em uma forma de servo, elas, todavia, falam com suprema autoridade. Por intermédio de Moisés, Deus deixou claro ao seu povo que nada devia ser acrescentado à Palavra e aos mandamentos que Ele havia dado por meio de seu servo e que nada devia ser tirado dela (Deuteronômio 4:2; Deuteronômio 12:32). O princípio de que nada devia ser acrescentado ou tirado da Palavra de Deus foi repetido por outros escritores inspirados. Lemos em Provérbios 30:6: “Nada acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso”. Uma advertência ainda mais forte se encontra em Apocalipse 22:18 e 19. Alguns alegam que essas advertências tratam apenas de porções específicas das Escrituras; contudo, é evidente que elas afirmam que nenhuma revelação profética, tradições ou escritos devem ser aceitos como tendo alguma autoridade divina se não aqueles que vieram a nós pelos profetas e apóstolos divinamente ordenados.

Moisés advertiu contra os falsos profetas; suas palavras, mesmo se faladas em nome do Senhor, deveriam ser rejeitadas como presunçosas (Deuteronômio 13:1 a 5; Deuteronômio 18:20 a 22). Por outro lado, a rejeição das palavras dos verdadeiros profetas do Senhor equivalia à rejeição da autoridade divina, que teria, finalmente, consequências fatais (Deuteronômio 18:15 a 19). Em grande parte, a história de Israel mostra que a aceitação ou rejeição da Palavra de Deus por meio de seus mensageiros escolhidos determinava o destino de indivíduos e nações (2Crônicas 36:15 e 16; Neemias 9:26 a 31). Somente as revelações dadas por intermédio de Moisés e as palavras dos verdadeiros mensageiros de Deus deveriam ser recebidas como a Palavra do Senhor. Isaías declarou sucintamente o princípio da autoridade exclusiva da Palavra de Deus: “À lei e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais verão a alva” (Isaías 8:20).

Temos visto como, no Novo Testamento, o princípio da autoridade exclusiva das Escrituras recebe confirmação no ministério e nos ensinamentos de Jesus. Ele advertiu energicamente contra os falsos profetas e falsos messias, que procurariam reclamar a autoridade divina para suas mensagens, ao passo que se desviariam da Palavra de Deus (Mateus 7:15 a 23; Mateus 24:5, 11 e 24). Também condenou as tradições que se sobrepunham às Escrituras, com seu efeito de invalidar a suprema autoridade da Palavra de Deus (Mateus 15:1 a 9; Marcos 7:1 a 13). Os apóstolos emitiram advertências similares contra os falsos mestres, falsos profetas, falsos apóstolos e seus ensinos (Atos 20:29 e 30; 2Timóteo 4:3 e 4; 2Pedro 2:1; 1João 4:1). Qualquer exaltação de mandamentos de homens ou tradições eclesiásticas acima dos ensinamentos das Escrituras mina a suprema autoridade da Palavra de Deus.

Os reformadores protestantes e a autoridade bíblica

A suprema autoridade das Sagradas Escrituras, defendida pelo Senhor e seus apóstolos, foi desafiada nos séculos subsequentes. Surgiram numerosos heréticos, torcendo a Palavra de Deus e produzindo falsos ensinos. No trato com esses dissidentes, a reação tornou-se uma ênfase indevida sobre a autoridade eclesiástica, permitindo que a tradição gradualmente obscurecesse a autoridade das Escrituras. Embora os pais da igreja dos primeiros séculos com frequência afirmassem a autoridade escriturística, ela diminuiu diante da crescente influência dos concílios eclesiásticos e, ainda mais, nas pretensões à autoridade pelos bispos, especialmente em Roma. A autoridade das Escrituras também foi diluída por interpretações alegóricas, filosofia escolástica e o acréscimo da Apócrifa ao cânon do Antigo Testamento.

Conquanto precursores dos reformadores protestantes, tais como John Wycliffe (1329-1384), já tivessem apelado para as Escrituras como a única norma de fé e doutrina, foi Martinho Lutero (1483-1546), monge agostiniano e professor de teologia bíblica na Universidade de Wittenberg, quem enunciou claramente a exclusiva e suprema autoridade da Bíblia. Ao pregar suas famosas 95 teses contra as indulgências na porta da igreja do castelo de Wittenberg, ele ainda não reconhecia o conflito entre a autoridade da Igreja e a autoridade das Escrituras, inferida por seus ensinos. Dois anos depois, em um debate com Johann Eck (1486-1542), Lutero foi forçado a apelar para a autoridade das Escrituras como suprema acima da autoridade dos concílios da Igreja e decretos papais.5 Quando quarenta e um dos ensinos de Lutero foram condenados por uma bula papal em junho de 1520, e ele foi acusado de rejeitar todos os santos ensinadores da Igreja, ele escreveu uma extensa defesa de sua posição:

Somente a Escritura é o verdadeiro senhor e mestre de todos os escritos e doutrina sobre a Terra.  Se isto não é admitido, para que serve a Escritura? Quanto mais a rejeitamos, mais nos satisfazemos com livros de homens e ensinadores humanos”.6

Esta ênfase sobre a “Escritura somente” (sola scriptura) Lutero manteve para o restante de sua vida. Comparecendo diante do imperador Carlos V, na Dieta de Worms, disse Lutero: “Minha consciência está cativa à Palavra de Deus”.7 Para Lutero, a autoridade das Escrituras baseava-se na crença de que somente elas proclamavam o verdadeiro evangelho de Cristo e que elas eram as palavras do Espírito Santo. Repetidamente, ele apelou para a Escritura somente como a única autoridade para fé e doutrina.8 Esse princípio tornou-se incorporado na declaração definitiva da fé luterana, a Fórmula de Concord:

“Cremos, ensinamos e confessamos que os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e Novo Testamentos são a única regra e norma segundo a qual todas as doutrinas e ensinadores igualmente devem ser avaliados e julgados, como está escrito em Salmos 119:105: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz, para os meus caminhos”.9

Lutero e outros reformadores protestantes estavam bem cientes de que o problema da autoridade exclusiva das Escrituras envolvia outros problemas, tais como a interpretação; a clareza ou nitidez; e a suficiência, ou perfeição das Escrituras. A Igreja Católica Romana alegava que os crentes precisavam da Igreja para prover-lhes a correta interpretação das Escrituras, pois grande quantidade dos livros sagrados era obscura. Os fiéis, portanto, necessitavam aderir à interpretação dada pela Igreja Católica. Contra isto os reformadores defenderam a clareza ou a nitidez das Escrituras. Em agosto de 1522, Ulrich Zuínglio (1484-1531), reformador suíço de Zurique, pregou um sermão publicado no mês seguinte sob o título “Da clareza e certeza da Palavra de Deus”,10 em que ele ilustrava a certeza e a clareza das Escrituras com muitos exemplos do Antigo e do Novo Testamento. Depois de responder a várias objeções, ele declarou em conclusão do sermão: “Porque a Palavra de Deus é certa e nunca pode falhar. É clara e jamais nos deixará em trevas. Ela nos ensina sua própria verdade. Eleva e ilumina a alma do homem com plena salvação e graça”.11

Lutero e Zuínglio defendiam que as Escrituras podem exercer sua autoridade e seu poder transformador somente por meio da operação e iluminação do Espírito Santo. João Calvino (1509-1564) enfatizava especialmente a convicção de que a autoridade das Escrituras era estabelecida no coração dos crentes, não pela determinação da Igreja, mas por meio do testemunho interior do Espírito Santo. A alegação de “que as Escrituras têm apenas tanto peso conforme lhe é concedido pelo consenso da Igreja”, ele considerava ser “um erro muito pernicioso”. Ele salientava que a igreja cristã foi “fundada sobre os escritos dos profetas e a pregação dos apóstolos”, portanto, as Escrituras “muito certamente haviam precedido a Igreja”.12 “Que este ponto, portanto, fique claro”, escreveu Calvino, “que aqueles a quem o Espírito Santo interiormente tem ensinado confiam realmente na Escritura, e que a Escritura é de fato autenticada por si mesma”; consequentemente, “a certeza que ela merece de nós, ela obtém pelo testemunho do Espírito”.13 Calvino apresentou muitas provas para estabelecer a origem divina e a autoridade das Escrituras, tais como a majestade do seu conteúdo; sua fidedignidade; o cumprimento de suas predições proféticas; sua maravilhosa preservação; sua simplicidade; e o testemunho consistente da Igreja, ao longo de todos os séculos, quanto à sua origem divina. Mas ele preveniu que “de si mesmas estas [razões ou provas] não são fortes o suficiente para prover uma fé firme, até que nosso Pai Celestial, revelando ali sua majestade, eleve a reverência pela Escritura além do domínio da controvérsia. Portanto, a Escritura bastará finalmente para um conhecimento salvífico de Deus somente quando sua certeza esteja fundada sobre a persuasão interior do Espírito Santo”.14

O escopo e a suficiência da autoridade escriturística

Enfatizando o princípio sola scriptura, os reformadores quebraram a influência repressora da Igreja Católica Romana sobre a autoridade e interpretação das Escrituras. Não mais era o claro, histórico e gramatical sentido da Bíblia atenuado pela interpretação alegórica. Não mais era permitido à tradição patrística, à filosofia escolástica, à autoridade conciliar ou papal sobrepujar a autoridade bíblica. Não mais era a Apócrifa adicionada às Escrituras canônicas como tendo a mesma unção e autoridade divinas.

Os reformadores não previam as manifestações que, nos séculos subsequentes, solapariam a confiança e fé na fidedignidade e autoridade das Escrituras. Uma previsão desse processo jaz na insistente pergunta de Jesus: “Quando vier o Filho do homem, achará, porventura, fé na terra?” (Lucas 18:8). A fé na origem divina e na autoridade da Bíblia é desafiada pela crítica das Escrituras de maneiras incontáveis. Observa Geoffrey Bromiley:

“O período moderno trouxe novas ameaças à autoridade bíblica. Por um lado, eruditos liberais se empenharam na pesquisa literária e histórica que questionava as autorias tradicionais, desafiava a confiabilidade efetiva, rejeitava ou remodelava a inspiração divina e promovia um relativismo destrutivo aos absolutos doutrinais e éticos. Por outro lado, o catolicismo romano abraçou uma doutrina papal de infalibilidade que, juntamente com o conceito de desenvolvimento dogmático, permitia o enfraquecimento da autoridade bíblica por adição ou expansão”.15

Particularmente, a moderna crítica bíblica em suas miríades de formas tem levado até mesmo muitos sinceros crentes cristãos a limitar a autoridade das Escrituras, reduzindo-a a alguns núcleos essenciais da fé e moralidade cristã. Tudo o que as Escrituras têm a dizer acerca de assuntos de natureza histórica ou científica é submetido aos critérios de rigorosa crítica histórica e a uma filosofia naturalista da ciência que, a priori, exclui a causalidade sobrenatural no domínio da natureza e no fluxo da história. Tais abordagens geralmente tendem a ignorar, distorcer ou negar as reivindicações expressas dos escritores bíblicos em relação à origem divina, autoridade e fidedignidade de seus escritos.

Outro elemento importante no debate moderno acerca da autoridade bíblica é o problema do escopo ou propósito das Escrituras. A finalidade primária das Sagradas Escrituras é tornar-nos sábios “para a salvação pela fé em Cristo Jesus” declarada nas palavras de Paulo (2Timóteo 3:15), ou, no dizer do apóstolo João, “estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (João 20:31). O próprio Cristo, falando das Escrituras do Antigo Testamento, criticou os líderes judeus contemporâneos por seu trágico fracasso em compreender esta finalidade primária, dizendo: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida” (João 5:39 e 40).

A questão em debate acerca do escopo da autoridade da Bíblia não é sobre a finalidade das Escrituras. Antes, a questão fundamental é se a autoridade das Escrituras se estende a todo o conteúdo da Bíblia. Para os cristãos do século vinte e um, o problema não é apenas o princípio sola scriptura, mas também o princípio correlato, tota scriptura. O problema não é somente se adicionamos à Palavra de Deus, mas também se tiramos dela. No coração e na mente de muitos cristãos, a crítica da Bíblia tem reduzido a sua autoridade a um mínimo ou a tem anulado completamente. Ellen G. White tratou deste assunto com referência aos ministros:

“Muitos professos ministros do evangelho não aceitam toda a Bíblia como a palavra inspirada. Um sábio rejeita esta parte, outro duvida daquela. Elevam sua opinião acima da Palavra, e as Escrituras que eles ensinam, repousam sobre a autoridade deles próprios. Sua autenticidade divina é destruída” (Parábolas de Jesus, p. 39).

O princípio é que todas as Escrituras devem ser recebidas como a Palavra de Deus, falando com autoridade divina. Isto é expresso de muitas maneiras pelos escritores bíblicos. Moisés o incluiu em seu discurso final ao povo de Israel: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Deuteronômio 29:29). Sua admoestação anterior é que o homem vive “de tudo o que procede da boca do SENHOR” (Deuteronômio 8:3).

A mesma ênfase sobre crer e obedecer a todas as palavras que procedem de Deus ocorre no Novo Testamento. Jesus a citou em resposta à tentação para livrar-se da fome por intermédio de um milagre do poder divino. Ele repetiu as palavras de Moisés de que a espécie humana viverá “de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mateus 4:4). As narrativas do evangelho evidenciam que Jesus não somente possuía um conhecimento e compreensão sem paralelo das Escrituras, mas que Ele aceitava todas as Escrituras como a autorizada Palavra de Deus. Em seguida à ressurreição, ele repreendeu gentilmente dois de seus discípulos por sua lentidão de coração para crer em “tudo o que os profetas disseram!” (Lucas 24:25).

Semelhantemente, os apóstolos manifestaram a mesma fé em todas as Escrituras como a Palavra de Deus. Paulo, diante de Félix, governador romano, confessou que “segundo o caminho, a que chamam seita, assim eu sirvo ao Deus de nossos pais, acreditando em todas as coisas que estejam de acordo com a lei e nos escritos dos profetas” (Atos 24:14). Aos anciãos da igreja de Éfeso, ele testificou que jamais havia deixado de “vos anunciar todo o desígnio de Deus” (Atos 20:27). Posteriormente, em sua epístola aos Efésios, ele relembrou a toda a igreja que eles estavam “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular” (Efésios 2:20). Em sua segunda carta escrita de Roma, enviada pouco antes de seu martírio, Pedro exortou os crentes a recordarem “das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos” (2Pedro 3:2). Escrevendo em sua epístola final a Timóteo, Paulo reafirma o princípio de tota scriptura de maneira clara e concisa: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2Timóteo 3:16).

Embora seja indubitavelmente verdade que o foco primário do princípio tota scriptura é a autoridade das Escrituras no campo espiritual, não podemos limitar arbitrariamente essa autoridade excluindo-a de qualquer área do conhecimento humano, como história ou ciência natural. Em um estudo penetrante da suficiência das Escrituras, Noel Weeks suscita indagações decisivas tais como: “Tem a Bíblia uma restrição à sua autoridade imposta por seu enfoque sobre salvação? É ela irrelevante para outros importantes assuntos ou áreas da vida?… A Bíblia limita explicitamente o âmbito de sua própria autoridade?”16 Sua clara resposta a estas interrogações é que não há tais limitações nas Escrituras. Ele afirma que as Escrituras não somente focalizam a Cristo como o Redentor, mas também a Cristo como Criador e como Senhor da criação e de toda a história do mundo. Portanto, nenhuma área do conhecimento é excluída da autoridade de Cristo e de sua Palavra, as Escrituras.

Alguns alegam que por não ser um compêndio de ciência ou história, a Bíblia não deve ser utilizada como autorizada nestas áreas do conhecimento. Conquanto esta afirmação seja verdadeira em um sentido técnico, torna-se um ataque frontal à autoridade da Bíblia a rejeição à veracidade do seu claro relato da criação e de suas narrativas históricas, ou a reinterpretação desses textos de acordo com as teorias científicas ou pesquisa histórica. Nem Jesus nem qualquer dos profetas e apóstolos inspirados questionou a verdade histórica do relato de Gênesis ou de qualquer outra parte das Escrituras. Ao contrário, eles reafirmaram a veracidade e a autoridade divina de todos eles.

Os reformadores defendiam o princípio da suficiência das Escrituras, primariamente, embora não exclusivamente, com referência à doutrina da salvação, que se centraliza na pessoa de Cristo como Redentor. Mas esse mesmo princípio deve ser defendido em relação à doutrina da criação, que tem por centro a pessoa de Cristo como Criador. As Escrituras nos informam não somente que Deus, por meio de Cristo, criou este mundo, mas também como isto foi realizado. Os princípios gêmeos de sola scriptura e tota scriptura se aplicam tanto à origem deste mundo e da raça humana quanto a sua redenção e restauração final.

A aplicação do princípio sola scriptura à doutrina da criação é enfatizada nos escritos de Ellen G. White. Escreveu ela: “É unicamente a Palavra de Deus que nos dá um relato autêntico da criação de nosso mundo” (Fundamentos Para a Educação Cristã, p. 536). Ela aplica o princípio tota scriptura a Cristo como Criador e como Redentor nestas palavras específicas: “Toda a Bíblia é uma revelação; porque toda revelação aos homens vem por meio de Cristo, e tudo se centraliza nele. Deus nos falou por seu Filho, de quem somos pela criação e pela redenção” (Comentário Bíblico Adventista, vol. 7, p. 953).

Ellen G. White estava profundamente preocupada com o fato de que muitos cristãos, sob a influência das teorias científicas, rejeitassem o relato bíblico da criação em seis dias em seu sentido claro e literal. Ela considerava isto uma substituição da autoridade do raciocínio humano “em oposição aos claros fatos escriturísticos” (Patriarcas e Profetas, p. 113). Ela observou que Deus jamais revelou aos homens o processo exato pelo qual Ele efetuou a obra da criação; portanto, “a ciência humana não pode pesquisar os segredos do Altíssimo” (Patriarcas e Profetas, p. 113). Em vista disto, ela declarou categoricamente: “Deve haver uma fé estabelecida na autoridade divina da santa Palavra de Deus. A Bíblia não deve ser provada pelas ideias científicas de homens” (Patriarcas e Profetas, p. 114).

Autoridade divina, reação humana e hermenêutica bíblica

Embora a autoridade de Deus seja suprema, ele não força a vontade de suas criaturas morais. Os seres humanos, criados à imagem de Deus, foram dotados com o poder da escolha. Deus respeita este poder, mesmo em seres humanos caídos. A autoridade divina, baseada no amor e na verdade, evoca de nós uma resposta de fé, confiança, obediência e amor. Todavia, se preferirmos rejeitar sua autoridade, estamos nos separando daquele que é a fonte de nossa existência. Moisés expressou esta verdade básica nas seguintes palavras: “Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência, amando o SENHOR, teu Deus, dando ouvidos à sua voz e apegando-te a ele; pois disto depende a tua vida e a tua longevidade” (Deuteronômio 30:19 e 20).

Jesus aplicou a mesma verdade ao seu próprio ensino. Qualquer que ouve suas palavras e as pratica é um homem sábio que edifica a sua casa sobre a rocha, e tal casa resiste à tempestade e à inundação. Qualquer que rejeita suas palavras ele compara a um homem tolo que constrói a sua casa sobre a areia, e o vento e a enchente levam a casa de roldão (Mateus 7:24 a 27). A aceitação da autoridade de Deus conforme expressa em sua Palavra conduz à vida, vida eterna; a rejeição da autoridade de sua Palavra, quer falada ou escrita, leva à morte eterna (Salmos 1:1 a 6; Provérbios 8:32 a 36; Apocalipse 22:18 e 19).

Deus não pode, e jamais ab-rogará ou renderá sua divina autoridade. O mesmo é verdade quanto à suprema autoridade das Sagradas Escrituras, porque elas são a Palavra de Deus. A resposta fundamental a essa autoridade pelo ser humano deve ser uma resposta de fé, traduzida em voluntária obediência. A Palavra de Deus fala aos seres humanos em sua totalidade: mente, coração e alma (Mateus 22:37). Por meio de sua Palavra, o Senhor não somente nos convida a arrazoar juntamente com ele (Isaías 1:18); ele também insta conosco para que lhe demos o coração (Provérbios 23:26).

Os reformadores protestantes compreendiam ser o privilégio e a responsabilidade de todos ler e estudar a Bíblia por si mesmos. Esta convicção motivou Wycliffe, Lutero, Tyndale e outros a traduzir a Bíblia para uma língua que o povo comum pudesse ler e compreender. Nos tempos modernos, a mesma convicção tem levado à tradução da Bíblia, ou porções dela, para mais de duas mil línguas. Ellen G. White partilhava dessa posição. Em um artigo intitulado “A Bíblia deve ser compreendida por todos”, ela escreveu: “A Bíblia tem se dirigido a todos – a cada classe da sociedade, aos de cada região e idade. O dever de toda pessoa inteligente é esquadrinhar as Escrituras. Cada um deve conhecer por si mesmo as condições sob as quais a salvação é provida” (Signs f the Times, 20 de agosto de 1894).

De um ponto de vista humano, ter as Escrituras na mais alta estima traz consigo um valioso feixe de distintos benefícios. A nossa vida é assinalada por uma instabilidade que, às vezes, nos mergulha em verdadeiro perigo. A maneira como enfrentamos tais situações tem muito a ver com a qualidade de vida e a satisfação pessoal, sem falar do nosso destino eterno.

Quando honrado como uma mensagem autorizada de Deus, esse livro, embora escrito muitos séculos atrás, permanece um inamovível ponto de contato com nosso Criador. Por meio da comunicação escrita com seus filhos e filhas humanos, Ele provê uma fonte de máxima estabilização que produz significado. O Deus que nos criou permanece ativo, não somente em seu vasto universo, mas perpetuamente em nossa vida diária.

Em grande parte, as Escrituras são um registro escrito de sua intervenção pessoal e de sua orientação nos negócios humanos. Para leitores superficiais, esse lado humano é frequentemente mal-interpretado a ponto de reduzir a Bíblia a uma função remota, ou mesmo insignificante, em suas vidas. Nisto, eles perdem os benefícios que poderiam ser seus.

As Escrituras proveem uma base autêntica para a compreensão de nós mesmos. Quem somos nós? Somos realmente pessoas de valor ou apenas sombras que passam através da face do tempo e espaço? As Escrituras nos asseguram que, além da mera habilidade na competição com outros, nossa dignidade pessoal repousa sobre um valor intrínseco, criação e redenção por Cristo. Sob esta luz, nosso valor como pessoas é tão seguro quanto à Palavra escrita que nos traz esta verdade.

Testemunhamos o poder unificador das Escrituras. Além de todos os diversos povos e culturas espalhados pelo nosso planeta está a Palavra de Deus, alcançando cada pessoa, transcendendo em poder e autoridade cada prática ou opinião cultivada. Nisto, ela é a grande unificadora. Em um mundo centrífugo, muitas vezes em pendência brutal consigo mesmo, a adesão genuína à Palavra de Deus traz paz e respeito a cada pessoa.

Unicamente a Palavra autorizada nos habilita a compreender nosso destino. Somente ali existe um relato autêntico do caráter de nosso Criador e de como Ele nos trouxe à existência. Apenas em sua Palavra encontramos alguma coisa que a natureza bruta jamais nos poderia contar. Deus é benevolente, procurando com seriedade restaurar-nos à comunhão íntima consigo mesmo no futuro próximo, tudo sendo possível por meio do ministério, da morte expiatória e da ressurreição do Filho.

Referências

  1. Veja Christ and the Bible, de John Wenham, 3a ed. (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1944), p. 16-44.
  2. Ibid., p. 17.
  3. Bernard Ramm, Special Revelation and the Word of God (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1961), p. 34.
  4. Ellen G. White faz esta comparação: “A Bíblia não nos é dada em elevada linguagem sobre-humana. A fim de chegar aos homens onde eles se encontram, Jesus revestiu-se da humanidade. A Bíblia precisa ser dada na linguagem dos homens. Tudo quanto é humano é imperfeito” (1ME 20).
  5. Harold Grimm na introdução à sua tradução de “Disputation and Defense of Brother Martin Luther against the Accusations of Dr. Johann Eck” [Disputa e Defesa do Irmão Martinho Lutero contra as Acusações do Dr. Johann Eck], de Lutero, observa que “o debate de Leipzig é de grande significado no desenvolvimento de Lutero como reformador porque ele naquela ocasião declarou publicamente sua concepção evangélica de Igreja em termos inconfundíveis e mostrou que em última análise sua autoridade exclusiva em matéria de fé era a Palavra de Deus. Portanto, ele podia declarar sem reservas que não somente o papado, mas também os concílios da Igreja podiam errar”. Harold J. Grimm, ed., Luther’s Works (daqui por diante LW) 55 vols. (Philadelphia; Fortress Press, 1957), 31:311.
  6. Ibid., 32:11-12.
  7. O texto da famosa resposta final de Lutero perante a Dieta Imperial de Worms pode ser encontrado em LW 21:112-113.
  8. Isto é evidente de dois de seus escritos produzidos durante seu exílio de dez meses no Castelo de Wartburg: “Against Latomus”. LW 32:133-260, e um dos seus sermões-modelo na chamada “Apostila da Igreja” intitulado “O Evangelho para o Festival da Epifania, Mateus 2[:1-12],” LW 52:159-286, esp. 171-183.
  9. Theodore G. Tappert, trad. e ed., The Book of Concord: The Confessions of the Evangeli-cal Lutheran Church (Philadelphia: Fortress Press, 1959), p. 464.
  10. Uma tradução inglesa desse sermão pode ser encontrada em Zuínglio and Bullinger, trad. e ed. G. W. Bromiley, vol. 24 in Library of Christian Classics (daqui por diante LCC). (Philadelphia: Westminster Press, 1953), p. 49-95.
  11. LCC 24:93.
  12. João Calvino, Institutes of the Christian Religion, 1:7:1, ed. John T. McNeill, trad. Ford Lewis Battles, LCC, vol. 20 (Philadelphia: Westminster Press, 1960), p. 75-76.
  13. Ibid., p. 80.
  14. Ibid., p. 92.
  15. Geoffrey W. Bromiley, “Scripture, Authority of ”, International Standard Bi-ble Encyclopedia, ed. rev., 4 vols. (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1979-1988), 4:363.
  16. Noel Weeks, The Sufficiency of Scripture (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1988), p. 85.

Bibliografia selecionada

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Geldenhuys, J. Norval. Supreme Authority: The Authority of the Lord, His Apostles and the New Testament. Prefácio de Ned B. Stonehouse. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1953.

Maier, Gerhard. Biblical Hermeneutics. Trad. Robert W. Yarbrough. Wheaton, IL: Crossway Books, 1994.

Miller, Donald G. The Authority of the Bible. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1972.

Ramm, Bernard. The Pattern of Religious Authority. Grand Rapids, MI: W. B. Eerdmans Publishing Co., 1968; reimpresso de The Pattern of Authority, 1957.

Warfield, Benjamin Breckinridge. The Inspiration and Authority of the Bible. Editado por Samuel G. Craig. Introdução de Cornelius van Til. Philadelphia: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1948; reimpresso, Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1967.

Weeks, Noel. The Sufficiency of Scripture. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1988.

Wenham, John. Christ and the Bible. 3a ed. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1994.

Peter M. van Bemmelen, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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O TEXTO E O CÂNON DAS ESCRITURAS

Introdução

Para ser eficiente, a comunicação requer um meio e um canal; portanto, para “ouvir” a Deus, são necessários um meio e um canal de transmissão. A única maneira de transmitir a mensagem de Deus ao longo dos séculos tem sido a cópia e recópia fiel da Palavra revelada. Sendo que a revelação e as Escrituras têm a ver com dados textuais, “ouvir” a Deus nas Escrituras no século vinte e um requer que o texto e seus limites devam primeiro ser estabelecidos e, então, interpretados. Este capítulo procura compreender as limitações do que deveria e do que não deveria ser incluído nas Escrituras. Além disso, considera o próprio texto inspirado, canônico, seu processo de transmissão e os manuscritos e traduções pelos quais temos hoje acesso ao texto.

O cânon das Escrituras

O cânon das Escrituras não pode ser desligado das questões de autoridade e normatividade, que, consecutivamente, se relacionam com a nossa compreensão de revelação e inspiração. O que torna um texto antigo mais autorizado do que o outro para uma comunidade religiosa (quer judaica ou cristã)? Como ponto de partida, parece claro que os livros do Antigo e do Novo Testamento eram autolegitimados. Sua autoridade não repousa sobre o fato de que alguém, seja um indivíduo importante ou uma autoridade eclesiástica, os incluiu no cânon, mas que eles foram reconhecidos por sua comunidade religiosa como tendo autoridade por causa de sua origem divina, e, como resultado, foram incluídos no cânon. As limitações de espaço exigem que apresentemos o tema com brevidade, prestando atenção aos principais assuntos e questões, sem necessariamente cobrir cada problema ou assunto específico.

Conceitos e definições essenciais

A palavra portuguesa cânon é derivada do termo grego kanōn, significando uma cana, vara de medir, ou mesmo vareta de cortina, que por sua vez, está ligada ao substantivo hebraico qãneh, “cana, vara” (1Reis 14:15; 40:21). Em um sentido derivado, um cânon é um corpo de textos que “foi medido” e considerado digno de ser incluído em uma coleção de textos com autoridade obrigatória para uma comunidade religiosa. Desta forma, o cânon deve estar ligado ao conceito de Escritura, bem como inspiração. Um texto canônico é aquele ao qual se concede autoridade em uma determinada comunidade religiosa e se considera como sendo “inspirado” por Deus (2Timóteo 3:16). Todavia, as Escrituras apresentam um conceito mais amplo do que o cânon mais limitado. Temos referências a escritos inspirados, mencionados no Antigo Testamento e escritos por autores considerados inspirados mas que não foram incluídos no cânon do Antigo Testamento (1Crônicas 29:29). No Antigo Testamento existe uma íntima ligação entre a fala de Deus (como autorizada) e a disseminação dessa revelação – em forma falada ou escrita (Êxodo 17:14; Êxodo 24). A anotação das instruções recebidas de Deus era uma consequência lógica, sendo que isto provia continuidade e futura aderência (Deuteronômio 31:9 a 13). Deuteronômio 31:26 indica o “testemunho/função” deste “livro da Lei”. Além disso, em outros lugares do Antigo Testamento, o termo hebraico ēd, “testemunho”, está frequentemente ligado com verificação, de acordo com um modelo estabelecido (Deuteronômio 31:19 e 21; Josué 22:27, 28 e 34).

Em três ocasiões históricas específicas encontramos o conceito de uma fonte escrita autorizada que precisava ser seguida: (1) Êxodo 24:7, em que o povo declara seu compromisso com o livro da Lei revelado a Moisés no Sinai; (2) 2Reis 23:3 e 2Crônicas 34:32, em que o povo de Judá aceitou as palavras do livro da Lei encontradas no templo por Hilquias, na época do rei Josias; (3) Neemias 8:9, em que Esdras leu a Lei para os exilados que haviam retornado de Babilônia a Jerusalém. Ao ouvir, o povo chorou, e Neemias 8:11 indica que ele compreendeu o significado da leitura e de sua responsabilidade. Os três eventos ocorreram durante as cerimônias em que faziam uma aliança ou a renovavam. Portanto, parece válido concluir que a relação de aliança entre Deus e seu povo era determinada por sua adesão à “Palavra do Senhor”.

Logicamente, esse conceito requeria a existência de uma coleção autorizada desta “Palavra” do Senhor. É claro que essa coleção não era considerada uma coleção humana nem uma coleção fundamentada nas preferências de um líder religioso específico ou tradição religiosa. A coleção autorizada do Antigo Testamento e do Novo Testamento (cânon) baseia-se na autorrevelação de Deus.

O termo kanōn era bem conhecido e utilizado no grego helenístico. De fato, o mundo antigo estava cheio de cânones (ou modelos/regulamentos) guiando diferentes aspectos da atividade humana. Em Gálatas 6:16, Paulo utiliza o termo no sentido de uma medida de conduta cristã que pode ser verificada.1 Contudo, nas Escrituras ele não é usado para designar o cânon bíblico. No final do primeiro século d.C., Clemente de Roma utiliza o termo com referência à “tradição” cristã.2 Cerca de um século depois, Clemente de Alexandria se refere ao cânon da fé.3 De meados do quarto século em diante, kanōn foi usado também para a coleção dos escritos sagrados do Antigo e do Novo Testamento.

Geralmente se atribui a Eusébio ter sido o primeiro a usar o termo com referência à coleção obrigatória das Escrituras cristãs.4 No entanto, isto não significa que o conceito não estava presente nos tempos do Novo Testamento. Jesus anuía aos regulamentos do Antigo Testamento (festas [João 2:23; João 4:45], observância do sábado, serviços do templo [Lucas 21:1], imposto do templo [Mateus 17:24]) e, assim, indicava seu caráter obrigatório. Ele se refere aos mandamentos, promessas, ou outros relatos do Antigo Testamento no contexto do “está escrito” (Mateus 4:4, 7 e 10; Mateus 11:10; Marcos 7:6), que sempre aparece como um argumento conclusivo em suas discussões.

A igreja apostólica também parece refletir essa atitude concernente à autoridade obrigatória do Antigo Testamento. Os bereanos examinavam diariamente as Escrituras do Antigo Testamento para comprovar os ensinos de Paulo (Atos 17:11). Paulo utiliza a força do Antigo Testamento em seus argumentos para apoio financeiro do ministério principiante (1Coríntios 9:9, 10 e 14), sobre a vingança como sendo a prerrogativa exclusiva de Deus (Romanos 12:19 e 20) e no caso da natureza universal do pecado (Romanos 3:10). Pedro defende um estilo de vida de santidade baseado no Antigo Testamento (1Pedro 2:4 a 6). Tal evidência sugere a existência do conceito de um corpo autorizado de textos, utilizado para definir os limites do viver correto, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Até aqui, o Antigo e o Novo Testamento demonstram o conceito de escritos canônicos, isto é, escritos que conduzem autoridade. Essa autoridade não é o resultado de decisões individuais ou organizacionais, mas repousa sobre a autoridade da própria Palavra escrita (ou falada), que foi inspirada por Deus.

Entretanto, nem todos os escritos inspirados vieram a ser incluídos no cânon. Esse processo de canonização, uma determinação do que incluir e do que excluir, precisa ser compreendido. Conquanto não seja fácil se chegar a respostas definidas, uma recapitulação histórica pode prover os dados necessários, que, por sua vez, precisam ser explicados à luz da afirmação de autoridade das Escrituras, baseada na doutrina da revelação. Antes de empreender uma explanação conceitual do processo de canonização, duas indagações seguintes precisam ser feitas. Primeira: que livros/textos foram incluídos nesse cânon?; e segunda: quando foi encerrado o cânon bíblico?

História do cânon do Antigo Testamento

Tradicionalmente, o Antigo Testamento judaico era dividido em três grandes seções: Lei, Profetas e Escritos.

Lei (tōrāh): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

Profetas (nebî‘îm): Josué, Juízes, 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

Escritos (ketûbîm): Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester, Esdras, Daniel, Neemias, 1 e 2Crônicas.

Este era o cânon da Bíblia hebraica segundo as divisões judaicas.

Esta tríplice divisão é importante para a reconstrução do processo de canonização. A primeira referência extra bíblica datável à sua existência encontra-se no prólogo do livro apócrifo de Jesus Ben Sirac, que data do ano 132 a.C. Outras fontes, tais como 2Macabeus, Filo e Josefo, citam divisões similares.

Os mais antigos códices completos (isto é, Vaticanus e Sinaiticus) ambos datam do quarto século d.C. e incluem alguns livros apócrifos. Esse cânon também tem sido chamado o cânon Alexandrino. Todavia, não está claro quando os livros apócrifos foram incluídos, e a presente evidência sugere uma data mais recente para a inclusão dessas obras extracanônicas. Portanto, parece ser razoável afirmar que esses códices monumentais (que somente passaram a ser usados do terceiro século d.C. em diante) exibem as influências prevalecentes na igreja cristã dos primeiros séculos, que lutava para definir sua identidade contra o antecedente de judaísmo rabínico.

O problema do cânon da LXX [Septuaginta] deve ser compreendido à luz do saliente confronto e competição entre o judaísmo e a igreja cristã em rápido crescimento. Embora a LXX se originasse como um empreendimento judaico, sua rápida adoção e autoridade na comunidade cristã como uma importante ferramenta para a evangelização do mundo romano levou a uma definitiva rejeição da LXX (inclusive seu cânon) pelo judaísmo no início do segundo século d.C.

Existem diferenças significativas entre o cânon hebreu-judaico e o cânon preservado nos mais antigos códices da Septuaginta. O último inclui Tobias, Judite, 1 a 4Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (Sirac) e Baruc, bem como acréscimos ao livro de Ester e matéria adicional no livro de Daniel (Susana e Bel e o Dragão), livros não encontrados no cânon hebraico. Estas diferenças podem dever-se às emergentes tensões entre o judaísmo e o cristianismo. Deve ser notado que o cristianismo dos primeiros séculos nem sempre aceitava o material adicional como autorizado. Atanásio, bem como Jerônimo, no quarto século d.C., mencionam os livros apócrifos, mas claramente os distinguem das obras canônicas.

A evidência de Qumran é muito informativa e importante. Rolos completos e fragmentos de todos os livros do cânon hebraico, exceto Ester, foram encontrados em Qumran. Isto é significativo, sendo que muitos dos rolos devem ser datados entre o primeiro século a.C. (com alguns do segundo século a.C.) e 73 d.C. Portanto, praticamente todos os livros geralmente ligados ao cânon judaico do Antigo Testamento já existiam como cópias no segundo/primeiro século a.C. Em segundo lugar, parece que a comunidade de Qumran também tinha conhecimento da tríplice divisão já mencionada no prólogo de Jesus Ben Sirac no segundo século a.C. Esta classificação é também partilhada em diferentes textos neotestamentários, como Lucas 24:44 e Mateus 23:35 (com seu texto paralelo em Lucas 11:51).5

Escrito por volta do ano 100 d.C., o livro apócrifo de 2Esdras (14:45) se refere ao cânon do Antigo Testamento como contendo 24 livros (mais outros 70 livros “ocultos”). Cerca de 170 d.C., Melito, bispo de Sardes, publicou sua famosa lista de livros pertencentes ao Antigo Testamento, que inclui todos os livros, exceto, possivelmente, Ester. A questão crucial que divide os eruditos modernos é se o Antigo Testamento já estava estabilizado no tempo de Jesus (ou antes) ou se isto só ocorreu no primeiro século d.C. ou, talvez, até mesmo mais tarde no segundo século d.C.

Muita controvérsia envolve o chamado “concílio de Jamnia”. Muitas discussões do cânon sugerem que os rabis determinaram a canonicidade dos escritos do Antigo Testamento. Jamnia, na costa mediterrânea da Palestina, tinha uma escola rabínica (Beth há-Midrash) e uma corte legal (Beth Din, Sanhedrin [sinédrio]) durante o período de 70-135 d.C. A extensão das Escrituras Sagradas foi um dos muitos assuntos ali discutidos. No entanto, tais discussões não foram extraordinárias, porque os rabis discutiram sobre isso no mínimo uma vez na geração anterior, e várias vezes muito tempo depois do período de Jamnia. É claro que essas discussões rabínicas (e muitas mais) desempenharam um papel importante para o judaísmo ortodoxo, sendo que foram posteriormente incluídas no Talmude babilônico, mas não foram formativas para o cânon do Antigo Testamento. Quando muito, elas simplesmente confirmaram o que há longo tempo fora estabelecido e geralmente aceito.

História do cânon do Novo Testamento

A história do cânon do Novo Testamento não é tão complexa como sua correlata do Antigo Testamento, parcialmente devido à existência de códices, que representaram uma tremenda inovação sob o aspecto prático. Quando se discute o surgimento de um cânon da igreja do Novo Testamento, a evidência primária precisa vir do próprio Novo Testamento. O próprio Jesus edifica solidamente sua mensagem sobre a Lei do Antigo Testamento, como pode ser visto na famosa frase “Ouvistes que foi dito… Eu, porém, vos digo” (Mateus 5:33, 34, 38, 39, 43 e 44). Em João 10:35, Jesus vai ainda mais longe, declarando que a Escritura (graphē) não pode ser “anulada”, o que logicamente exigiria sua autoridade obrigatória. Outros escritos cristãos apostólicos utilizam os mandamentos de Jesus para defender a permanência do laço matrimonial (1Coríntios 7:10 e 11). Ensinos específicos se baseiam no mandamento de Jesus (1Coríntios 9:14 [sustento dos que pregam o evangelho]; 1Coríntios 11:17 e 23 [Ceia do Senhor]; e 1Timóteo 5:17 e 18 [remuneração dos presbíteros]).

Paulo desenvolve ainda mais o conceito de inspiração das Escrituras, incluindo não somente o conhecido e estabelecido cânon do Antigo Testamento, mas também os textos da nova igreja cristã (2Timóteo 3:16; Hebreus 1:1 e 2). Está claro que, para os escritores do Novo Testamento, a canonicidade (autoridade obrigatória) de suas obras escritas está fundamentada em sua inspiração. 2Pedro 1:21 enfatiza o processo não como de “feitura humana”, mas antes como “movido por Deus”. Contudo, muitas referências aludem diretamente à palavra falada, não necessariamente ao registro escrito. A introdução de Lucas ao seu evangelho (Lucas 1:1 a 4) se refere à sensível necessidade de se ter um registro escrito autorizado dos atos, declarações e mensagem de Jesus para testemunho em um ambiente que rapidamente desdenhava os “sagrados” escritos apócrifos. Além do registro histórico autorizado da vida, morte e ressurreição de Jesus (os evangelhos), a igreja apostólica logo incluiu outros escritos como fidedignos. Em 2Pedro 3:15 e 16, o apóstolo inclui os escritos de Paulo (sem ser específico) como inspirados pela sabedoria que concedida por Deus, dando-lhes, assim, credibilidade.

Evidência nos antigos pais da igreja sugere que pelo final do primeiro e início do segundo século d.C., existia uma coleção de documentos cristãos escritos que desfrutava a condição de autorizada. A relação a seguir ilustra o uso dos escritos canônicos do Novo Testamento pelos primeiros pais da igreja:

Clemente de Roma (60-100): Atos, Romanos, 1Coríntios, Efésios, Tito, Hebreus, 1Pedro.

Inácio (? – 107): Alusão a Mateus, Lucas, João, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, 1 e 2Timóteo.

Policarpo (70-160): Marcos, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Hebreus, 1Pedro.

Justino Mártir (100-165): Mateus, Marcos (?), Lucas, João, Atos, Romanos, 1Coríntios, Gálatas, Efésios, Colossenses, 2Tessalonicenses, Hebreus, 1Pedro.

Marcion (140 – ?): Lucas, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses e Filemom.

Irineu (150-202): Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, Hebreus, Tiago, 1 e 2Pedro, 1 e 2João, [Judas era questionado], Apocalipse.

Cânon Muratoriano (c. 190): Lucas, João, Atos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, Romanos, Filemom, Tito, 1 e 2Timóteo, 1 e 2João, Judas, Apocalipse.

Clemente de Alexandria (155-220): Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 1Pedro, 1João, Judas, Apocalipse.

Tertuliano (160-220): Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 1Pedro, 1 e 2João, Judas, Apocalipse.

Hipólito (170-235): Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 1Pedro, 1João, Judas, Apocalipse.

Orígenes (185-254): Depois de viajar extensamente, ele publicou, por volta de 230 a.D., uma ampla lista de escritos do Novo Testamento universalmente aceitos: Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 1Pedro, 1João, Apocalipse. Livros tidos em disputa: Hebreus, 2Pedro, 2 e 3João, Tiago, Judas.

Eusébio de Cesareia (260-340): Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos, Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, Tito, 1Pedro, 1João, Apocalipse.

Atanásio (296-373): Bispo de Alexandria é o primeiro a incluir em seu cânon todos os 27 livros do Novo Testamento.

Estes eram os Pais da Igreja e seu cânon.

A literatura gnóstica, tal como Evangelium Veritatis (Evangelho da Verdade), de Valentino (135-140 d.C.), ilustra o uso abrangente dos escritos canônicos e sugere que, por aquele tempo, o cânon já tinha sido estabilizado, talvez até mesmo considerado encerrado.

Durante o quarto e o quinto séculos d.C., vários sínodos e concílios trataram do problema do cânon do Novo Testamento. Eles não determinaram a canonicidade dos escritos do Novo Testamento, mas, em vez disto, ratificaram práticas anteriores. A igreja cristã, tendo começado seu desenvolvimento em um contexto judaico, estava familiarizada com o conceito vétero-testamental de um autorizado corpo de textos. Jesus baseou a compreensão de sua pessoa e de sua obra nesse conceito quando refutou o tentador e outros adversários com um ressonante “está escrito” (Mateus 4:4, 7 e 10; Mateus 21:13; Mateus 26:24; Marcos 7:6; Marcos 9:13), demonstrando sua consideração pelas Escrituras do Antigo Testamento e pelo conceito de uma coleção autorizada de textos. A igreja do Novo Testamento seguiu este exemplo. Nenhum credo organizado ou forte controle eclesiástico garantia a unidade da igreja cristã apostólica; antes, o que mantinha a igreja relativamente unida era a adesão ao testemunho apostólico acerca de Jesus, sua mensagem e o seu ministério. Essa adesão precisava de um fiel e confiável corpo de textos para prover um testemunho material de Jesus.

Cânon protestante versus cânon católico

Como pode ser visto facilmente a seguir, existem assinaladas diferenças entre os cânones protestante e católico, que, afinal, se baseiam em distintas pressuposições teológicas.6

Cânon católico/ortodoxo

Pentateuco: (1) Gênesis; (2) Êxodo; (3) Levítico; (4) Números; (5) Deuteronômio.

História: (6) Josué; (7) Juízes; (8) Rute; (9) 1Samuel; (10) 2Samuel; (11) 1Reis; (12) 2Reis; (13) 1Crônicas; (14) 2Crônicas; (15) Esdras; (16) Neemias; (17) Tobias (apócrifo); (18) Judite (apócrifo); (19) Ester (com adições).

Poesia e Sabedoria: (20) Jó; (21) Salmos; (22) Provérbios; (23) Eclesiastes; (24) Cantares de Salomão; (25) Sabedoria de Salomão (apócrifo); (26) Eclesiástico, de Ben Sirac (apócrifo).

Profetas: (27) Isaías; (28) Jeremias; (29) Lamentações; (30) Baruc (apócrifo); (31) Ezequiel; (32) Daniel (com adições); (33) Oseias; (34) Joel; (35) Amós; (36) Obadias; (37) Jonas; (38) Miqueias; (39) Naum; (40) Habacuque; (41) Sofonias; (42) Ageu; (43) Zacarias; (44) Malaquias; (45) 1Macabeus (apócrifo); (46) 2Macabeus (apócrifo).

Cânon protestante

Pentateuco: (1) Gênesis; (2) Êxodo; (3) Levítico; (4) Números; (5) Deuteronômio.

História: (6) Josué; (7) Juízes; (8) Rute; (9) 1Samuel; (10) 2Samuel; (11) 1Reis; (12) 2Reis; (13) 1Crônicas; (14) 2Crônicas; (15) Esdras; (16) Neemias; (17) Ester.

Poesia e Sabedoria: (18) Jó; (19) Salmos; (20) Provérbios; (21) Eclesiastes; (22) Cantares de Salomão.

Profetas: (23) Isaías; (24) Jeremias; (25) Lamentações; (26) Ezequiel; (27) Daniel; (28) Oseias; (29) Joel; (30) Amós; (31) Obadias; (32) Jonas; (33) Miqueias; (34) Naum; (35) Habacuque; (36) Sofonias; (37) Ageu; (38) Zacarias; (39) Malaquias.

Vimos a comparação entre cânon católico romano/ortodoxo e o cânon protestante.

Tanto a Igreja Católica Romana quanto a Igreja Ortodoxa incluem vários livros em seu cânon reconhecido que não pertencem ao cânon judaico ou ao cânon protestante. Livros tais como Tobias, Judite, os acréscimos aos livros de Ester e Daniel, etc., foram classificados como livros “apócrifos”, sendo que suas origens não eram claras.7 Eles se originaram em torno de 200 a.C. a 100 d.C., em um período que os rabis descreviam com a expressão “cessação de profecia”. Eles foram incluídos na LXX e na Vulgata Latina (que era parcialmente baseada na LXX). No período patrístico, “apócrifo” veio a significar “esotérico ou conhecimento secreto”, realçando o fato de que esses livros continham mensagens disponíveis somente aos instruídos. Por este motivo muitos pais da igreja não aceitavam esses livros como autorizados (ou pertencentes ao cânon original do Antigo Testamento), sendo que a mensagem do evangelho não é esotérica nem secreta. Nem os escritores do Novo Testamento nem a maioria dos escritores patrísticos aceitavam esses livros como autorizados e como pertencendo ao cânon reconhecido.

Embora seja verdade que alguns livros do Novo Testamento possam referir-se a obras apócrifas (Judas 9, por exemplo, talvez se refira ao Testamento de Moisés; Hebreus 11:35 pode aludir a 2Macabeus 7), isto de modo algum demonstra uma autorização ou sanção dessas obras. Em várias passagens, Paulo cita filósofos gregos (por exemplo, Tito 1:12 e Atos 17:28)8 sem, necessariamente, torná-los canônicos ou autorizados. Neste sentido, uma possível referência ou alusão a um livro apócrifo pode utilizar o contexto específico ou imagem conhecida sem canonizá-lo.

A evidência da Septuaginta que inclui os livros apócrifos é um tanto tardia, porque muitos manuscritos gregos que incluem os livros apócrifos do Antigo Testamento se originaram no quarto ou quinto século d.C. Assim, eles não proveem uma perspectiva confiável do cânon da LXX durante o tempo da igreja apostólica. Além disso, nenhum autor do Novo Testamento cita um livro apócrifo como inspirado, utilizando, por exemplo, a conhecida frase “porque assim está escrito por intermédio do profeta…” (Mateus 2:5-6; Lucas 3:4). Adicionalmente, nenhum dos livros apócrifos reivindica ser a Palavra do Senhor, como pode ser encontrado frequentemente no Antigo Testamento canônico (por exemplo, Números 35:1; Josué 1:1; Isaías 1:10, etc.). Também deve ser lembrado que os livros apócrifos exibem crassos erros históricos e teológicos. As inconsistências teológicas incluem: (1) oração pelos mortos (2 Macabeus 12:43 a 45, embora as Escrituras afirmem claramente que a salvação é determinada antes da morte [Hebreus 9:27] e que o homem não sabe nada na morte [Eclesiastes 9:5 e 6]); (2) preexistência da alma (Sabedoria 8:19 e 20; apesar de as Escrituras ensinarem claramente que o homem é criado e que somente Deus possui imortalidade [1Timóteo 6:15 e 16]); e (3) a dicotomia platônica entre corpo e alma, pela qual o corpo é considerado mau (Sabedoria 9:35; embora Genesis 1:31 afirme que tudo [inclusive a substância material] era muito bom na criação). Finalmente, deve ser notado que a mais antiga lista cristã do cânon do Antigo Testamento de Melito (cerca de 170 d.C.) não inclui a apócrifa.

É interessante notar que a Igreja Católica canonizou a apócrifa somente durante o Concílio de Trento, em 1546, no contexto do conflito eclesiástico com Martinho Lutero. Eles são agora conhecidos pelos católicos como “livros deuterocanônicos”, isto é, formando o segundo cânon, autorizado pela tradição e a autoridade da Igreja. Essa tradição estava em perigo em Trento, em 1546, porque o brado da Reforma de sola scriptura se apresentava como uma formidável ameaça à tradição católica. Trento assinalou uma decisão política de tornar igual às Escrituras o que anteriormente era apenas tradição eclesiástica. Por este meio, certas doutrinas desafiadas pela Reforma protestante poderiam ser respondidas com base na “Escritura”.9 A Igreja Católica não usou sistematicamente as Escrituras para se opor a Lutero e aos outros reformadores, mas procurou contrariar o protestantismo por meio da tradição e do raciocínio escolástico.

Cânon e tradição            

Toda comunidade religiosa acaricia tradições específicas, sejam elas de forma oral ou escrita. A tradição oral desempenhou um papel importante na transmissão e preservação do cânon do Antigo Testamento (Deuteronômio 6:20 a 25; Deuteronômio 26:5 a 9). Portanto, a tradição em si não é negativa. A parte desafiadora é a relação entre tradição e Escritura (escrita). O que informa o que? Em outras palavras, o que determina a autoridade e veracidade da tradição: as Escrituras ou a sucessão apostólica? A teologia católica romana tradicional frequentemente se refere à prerrogativa da Igreja de formar ou estabelecer o cânon. Essa prerrogativa tem como base a tradição da sucessão apostólica do bispo de Roma, que pode levar a Igreja a adotar e a delimitar novos perímetros.10 Nos círculos ortodoxos orientais, a tradição é definida como o testemunho da Igreja em sua totalidade, baseado nas Escrituras, mas “expresso principalmente nos sete concílios ecumênicos, nos escritos dos pais e na adoração litúrgica”.11

No Novo Testamento, o termo grego paradosis, “tradição”, aparece 13 vezes e tem geralmente conotações negativas. Jesus justapõe as tradições dos pais (possivelmente ensinos rabínicos) com os mandamentos divinos (Mateus 15:2 a 6, e o relato paralelo de Marcos 7). Em Gálatas 1:14, Paulo parece ter em mente uma conotação similar quando se refere ao seu notório passado, embora as referências de 1Coríntios 11:2 apareçam em um contexto positivo e devam ser traduzidas (como feitas pela NIV) como “ensinos”. Depois de encerrado o cânon do Novo Testamento, os pais da igreja com frequência ligavam as Escrituras com a tradição e, como resultado, a fronteira ou limite entre as duas começou a atenuar-se.

Os católicos romanos têm apelado repetidamente para um desenvolvimento gradual do cânon bíblico a fim de mostrar que o cânon é realmente o produto da Igreja. Partindo desta perspectiva, a posição católica romana sobre eclesiologia (isto é, o papel e função da Igreja) determina, em grande parte, sua posição sobre as Escrituras. Deste modo, a eclesiologia tem precedência sobre a revelação e inspiração. Os protestantes têm enfatizado os critérios internos de inspiração e revelação contidos nos livros canônicos. Claramente, o problema em jogo é tradição versus Escrituras. Historicamente, a questão estava em jogo durante o período da Reforma, em que a Igreja Católica ratificou a inclusão dos livros deuterocanônicos em seu cânon no Concílio de Trento (1546 d.C.). A Constituição sobre Revelação Divina do Concílio Vaticano II (Dei Verbum) “insistiu que a ‘Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal forma ligados e associados que um deles não pode subsistir sem os outros’”.12 Esta declaração realça claramente a expressa pretensão da Igreja Católica, baseada na tradição, de continuar a moldagem e a formação da “sagrada tradição” e da “sagrada Escritura”. Um bom resumo dessa posição e de suas implicações pode ser encontrado na seguinte citação de J. W. Charly:

“No âmago da teologia católica romana jaz sua compreensão exclusiva da Igreja e sua autoridade. Sua autoridade magisterial está acima da autoridade da Bíblia e sua interpretação. Sua autoridade sacerdotal tem controle sobre a vida sacramental da Igreja”.13

Uma expressão da autoridade magisterial superior da Igreja Católica Romana sobre a autoridade da Bíblia é a sua inclusão da apócrifa no Antigo Testamento.

Canonização: critérios e processo

Até aqui, o cânon do Antigo e do Novo Testamento foi descrito em termos históricos, isto é, olhando para os testemunhos históricos que documentaram o processo de canonização. Esses testemunhos incluíram os próprios escritos do Antigo ou do Novo Testamento, a evidência das versões, os livros apócrifos e pseudo-epigráficos, os pais da igreja, os heréticos, e também diferentes listas. Foi mais descritivo do que analítico ou teológico.

Definir critérios válidos para o processo de canonização não é uma tarefa fácil. Os sábios modernos enfatizam consideravelmente o fator sociológico por meio do qual a comunidade religiosa determina, até certo ponto, o que é santo e autorizado. Fatores adicionais incluem (1) origem profética; (2) autoria (isto é, o autor tinha de ser conhecido); (3) apostolicidade (no caso do Novo Testamento); (4) antiguidade; (5) ortodoxia (isto é, concordância com o que já foi revelado); e (6) inspiração.

Evidentemente, uma elevada opinião de revelação e inspiração não provê muito espaço para uma interpretação sociológica do processo de canonização. Desse modo, parece que, embora seja importante o conceito da recepção e aceitação dos livros autorizados em um contexto histórico específico, não era o fator decisivo no processo de canonização. Antes, parece que o critério mais decisivo considerado pela comunidade hebraico-judaica do Antigo Testamento e pela comunidade cristã do Novo Testamento para sua aceitação do cânon era o conceito de inspiração. Aqueles escritos inspirados incluíam um “assim diz o Senhor” e tinham provado sua inspiração aos seus contemporâneos, eram, portanto, incluídos. Neste cenário, não é a igreja ou uma comunidade religiosa que faz um texto canônico, mas antes o conteúdo e a origem do escrito, que, por sua vez, é reconhecido e aceito pela Igreja. É evidente que o testemunho interno do texto religioso não pode contradizer revelações anteriores da vontade de Deus, e, em muitos casos, a pessoa ligada ao escrito tinha de ser reconhecida.

Parece que por volta do quarto século a.C., o cânon do Antigo Testamento tinha sido encerrado, sendo que contemporâneos intertestamentais e escritos judaicos não consideram a literatura posterior como “digna” de ser contada entre os livros inspirados do Antigo Testamento. Esdras e Neemias (Esdras 7:10; Neemias 8:2 a 4) desempenharam um papel importante em popularizar a coleção autorizada diante do povo, mas eles indiscutivelmente não “canonizaram” o Antigo Testamento.

Na moderna crítica erudita, a suposta datação de Daniel no segundo século a.C. tem sido usada como um argumento para uma formação tardia do cânon. Sendo que há excelentes argumentos suficientes em favor da autêntica data do sexto século a.C. para a escrita desse livro, a questão canônica envolvendo os “Escritos” não é conclusiva. O surgimento de escritos apócrifos e pseudo-epigráficos durante o período intertestamental traz evidência indireta em favor da noção judaica do cânon fechado, visto que ilustra o conceito de que para uma nova obra ser aceita como autorizada, ela deve ser atribuída a um autor bíblico já reconhecido.

Nos tempos do Novo Testamento, o primeiro e o último livro do cânon judaico são citados por Jesus em uma arrebatadora e importante referência a mártires da fé (Mateus 23:35). Jesus também parece que estava ciente da divisão tripartite do cânon judaico, que ele utilizava para indicar o todo. A discussão rabínica em Jamnia não codificou um cânon; antes, discutiu vários livros que eram desafiados por alguns setores dentro do judaísmo.

Em relação ao cânon do Novo Testamento, parece que o cânon fechado do Antigo Testamento desempenhou um papel importante em sua formação. Os sábios modernos optam por um encerramento tardio do cânon, apoiando-se mais em necessidades históricas ou sociológicas, tais como os desafios teológicos dos turbulentos terceiro e quarto séculos d.C., em vez de em evidência interna. O único fator muito importante para a canonização – já visto no caso do Antigo Testamento – é a inspiração dos escritos. Deus está falando por meio dos profetas ou dos apóstolos. Isto provê a autenticidade dos textos na comunidade da Igreja. Além disso, a definição do encerramento do cânon do Novo Testamento também depende da datação de certos livros. Um cânon fechado no final do segundo século d.C. pode ser admitido da datação tradicional do fragmento muratoriano. Depois das lutas teológicas do terceiro século d.C., o quarto século testemunhou o reconhecimento oficial do fato já realizado que ia de mãos dadas com o reconhecimento oficial da igreja pelas autoridades romanas e o seu novo papel como igreja estatal.

Criticismo canônico

As décadas recentes têm gerado um tremendo interesse no chamado criticismo canônico. Seu objetivo é enfocar o texto bíblico em sua forma final. O criticismo canônico não é um bloco monolítico, mas representa uma tremenda variedade de métodos. Em vez de focalizar indivíduos focaliza as comunidades que moldaram a recepção desses escritos. Quer ver como a comunidade religiosa (quer seja judaísmo ou a igreja cristã) manuseou diferentes interpretações e pressões antes de chegar a um reconhecido cânon autorizado. Isto é, obviamente, um assunto interessante, e o seu estudo histórico poderia prover algumas ideias para os desafios da igreja do século 21. Todavia, lhe falta o ingrediente básico de canonização, isto é, a natureza inspirada das Escrituras. Pela focalização das comunidades que geraram esses escritos “inspirados”, a inspiração reside na comunidade, em vez de em um autor. Este não é o modelo bíblico que regularmente focaliza o indivíduo (Hebreus 1:1) e a resposta desse indivíduo ao chamado de Deus para o serviço (Isaías 6:1 a 8).

O conceito de “cânon-dentro-do-cânon”

O conceito de “cânon-dentro-do-cânon” é outro importante desenvolvimento na reflexão teológica sobre o cânon. Sugere que, para circunstâncias específicas ou um ponto específico no tempo ou mesmo uma comunidade religiosa específica, alguns livros devem ser mais valorizados do que outros. Afinal, até mesmo Martinho Lutero se referiu ao livro de Tiago como a “epístola de palha”. O conceito de “cânon-dentro-do-cânon” também tem sido chamado de “o princípio cristológico”.

A questão é: Não seria aceitável definir um núcleo de livros dentro do cânon aceito que contenha o mais essencial e importante conteúdo? Outra metáfora frequentemente utilizada neste contexto – e, também, muitas vezes vista em recentes publicações adventistas – é a referência aos pontos essenciais da fé. Núcleo e periferia são dois polos também visíveis na discussão do cânon-dentro-do-cânon. Observamos que a ideia do cânon-dentro-do-cânon está intimamente ligada à crítica do conteúdo. Obviamente, requer uma avaliação sobre o nível metodológico. Pela crítica do conteúdo dos livros bíblicos, o crítico, quer seja erudito ou leigo, realmente faz de si mesmo a medida da verdade, não vice-versa. Isto pode ser sabedoria pós-moderna, mas não está definitivamente baseado na teologia bíblica.

“Algumas partes do Novo Testamento [ou do Antigo Testamento] continuamente podem exercer maior influência porque são mais longas e mais compreensivas. Mas suscitar escolhas pastorais pragmáticas e os acidentes de composição para a obrigação de relativizar o cânon é negar que existe um cânon que deve permanecer como o teste de nossas escolhas pastorais”.14

O conceito de “cânon-dentro-do-cânon” é realmente um lado de uma tendência para questionar a validade do conceito de autoridade normativa. Sendo que isto não parece mudar exteriormente o conteúdo do cânon, é o mais perigoso. Por outro lado, encoraja a tendência de expandir o cânon e incluir apócrifos ou outros escritos religiosos contemporâneos dentro do cânon aceito.

Alguns intérpretes querem distinguir entre o Novo e o Antigo Testamento em termos do “cânon-dentro-do-cânon”, segundo o qual o Novo Testamento detém a mais alta autoridade. Mas aqui um importante princípio teológico está em jogo. Não existem diferentes níveis de inspiração – ao menos de acordo com as Escrituras. Para facilitar o “cânon-dentro-do-cânon” alguém deve designar diferentes níveis de inspiração. A única alternativa, embora não idônea em termos de sua metodologia, seria uma seleção arbitrária baseada na preferência pessoal. Realmente, a própria ideia de um cânon normativo e autorizado fala contra tal conceito.

Estabelecendo o texto bíblico: crítica textual

A crítica textual é um ingrediente essencial da exegese, porque provê a base textual necessária para uma interpretação adequada e para a teologia. Geralmente, porém, ela é a subdisciplina menos notada e menos compreendida dos estudos bíblicos, não ocupando a “fila dianteira” dos novos métodos ou ideias teológicas. O Espírito de Deus não somente inspirou os autores de sua Palavra nos tempos antigos, mas também fez com que a transmissão da Palavra inspirada fosse feita de maneira fiel. Tanto as instruções rabínicas quanto a evidência material de Qumran sugerem que o processo de transmissão foi de fato uma ocupação sagrada, feita com grande cuidado e sob supervisão. Os regulamentos judaicos incluíam o tipo de material usado, o tamanho das colunas, o tipo de tinta usada, as exigências de espaço entre letras e palavras, e a idoneidade religiosa do escriba que copiava.

Contudo, há outro importante aspecto em se pensando na transmissão das Escrituras: Deus não somente inspirou seus profetas a relatar sua mensagem no planeta Terra. Ele também cuidou do processo global de transmissão de sua Palavra (Salmos 12:6 e 7; Apocalipse 22:19; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 15). Entretanto, as próprias Escrituras (Atos 7:16, Genesis 23:8; Gênesis 33:19; Mateus 27:9) e Ellen G. White (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 16) previnem sobre possíveis erros de cópia e transmissão.

É aqui que a crítica textual provê relevantes ferramentas para descobrir possíveis erros no processo de transmissão e para identificar esses erros, estabelecendo, assim, o mais confiável fraseado do texto bíblico. Tais erros, porém, não envolvem assuntos doutrinais, mas, geralmente, apenas números, nomes ou lugares. Devemos ter em mente as proporções relevantes. Somente cerca de dez por cento do texto hebraico da edição padrão inclui alguma nota textual. Portanto, noventa por cento do texto encontra-se indiscutido, e mesmo os dez por cento com alguma incerteza textual não influenciam significativamente no sentido do texto e não alteram absolutamente as doutrinas das Escrituras. A seguinte e útil definição provê um conveniente ponto de partida a fim de compreendermos e apreciarmos o trabalho da crítica textual, que procura estabelecer o mais confiável fraseado do texto bíblico, aplicando princípios específicos, comparando os mais antigos manuscritos e versões existentes.

A crítica textual trabalha primariamente com a transmissão do texto bíblico e não é uma ferramenta apropriada para descobrir a origem ou suposta redação (ou edição) posterior de qualquer texto bíblico, tendência que se tornou moda em recentes estudos em crítica textual.

Os antigos textos não nos foram transmitidos em formas impressas ou digitais, mas por mais de 3 mil anos os escribas copiaram e recopiaram manualmente das cópias mais antigas. Embora seja comum encontrar erros em material impresso moderno que foi revisado e digitalmente examinado e reexaminado muitas vezes, a transmissão de textos antigos dependia inteiramente de critérios, concentração, e habilidade dos antigos escribas. É claro que mesmo esses extraordinários sábios ocasionalmente falhavam, resultando em erros textuais em cópias subsequentes. Frequentemente, quando o próximo escriba copiava o texto errado, ele tentava corrigir o erro anterior, o que, às vezes, resultava em ainda mais confusão.

Superficialmente, tais variações ortográficas pareceriam suscitar desafios significativos, porque, afinal, a mensagem sagrada está envolvida. Em quase todos os casos, porém, versões alternativas apresentam poucas dúvidas dentro da real mensagem que está sendo transmitida. A teologia envolvida está acima do que são descritos como pequenos erros ortográficos, porque as importantes doutrinas da Bíblia repousam sobre uma ampla extensão de ensinos.

Com respeito às fontes, a Bíblia nos vem mais bem atestada do que quaisquer outros escritos antigos. Em muitos casos temos fontes múltiplas das quais podemos extrair, cada uma das quais tendo suas limitações, mas, no total, elas proveem forte evidência para sua confiabilidade. Para o Antigo Testamento, o texto massorético é o nosso mais importante testemunho em hebraico. A descoberta dos famosos Rolos do Mar Morto tem lançado nova luz sobre como as Escrituras eram consideradas e preservadas. Na maior parte, esses textos, uns mil anos mais antigos do que nossas outras fontes bíblicas textuais, confirmam tanto a versão do texto hebraico tradicional quanto a intensidade de esforços para preservar intactos os livros sagrados. Outras fontes manuscritas incluem o Pentateuco Samaritano, a Septuaginta (LXX), e vários comentários e referências de escritores posteriores. Para o Novo Testamento nossas fontes são relativamente abundantes, com milhares de manuscritos, alguns dos quais são de remota antiguidade. Entre os fragmentos de papiros, estão alguns documentos que foram produzidos dentro de uma simples geração depois do tempo em que os livros bíblicos foram pela primeira vez escritos. Antigas traduções e citações dos primeiros escritores cristãos proveem mais fontes.

Embora não possamos aqui explorar os métodos técnicos usados para determinar a leitura correta dos escritos originais, esse útil processo tem se tornado uma ciência refinada, bem como uma arte. Resumindo, podemos ratificar a confiabilidade do texto bíblico sobre o qual as traduções se baseiam. Sendo que cada tradução vem com um ponto de vista introduzido discreta ou sub-repticiamente, a consulta de várias traduções nos ajuda a compreender a intenção original do escritor da Bíblia. Seremos sábios, porém, se selecionarmos traduções que aderem estritamente às versões reais das fontes manuscritas, sendo cautelosos quanto à construção de interpretações teológicas sobre traduções livres que incorporam adaptações significativas em sua obra num esforço para popularizar a Bíblia.

Conclusão

A compreensão adventista do sétimo dia do cânon e do texto baseia-se numa clara compreensão de inspiração. O mesmo Espírito Santo que inspirou os autores em diferentes períodos de tempo, em diferentes contextos históricos, também continuou ativamente envolvido na conservação e transmissão das Escrituras. Uma das principais características do cânon bíblico é a natureza auto-autenticada dos textos, sendo que eles eram “inspirados”. Como indicado anteriormente, a canonização não é um fenômeno sociológico, mas uma afirmação histórica da autoridade e natureza das Escrituras “inspirada por Deus”. Evidentemente, pelo final do quinto século a.C., o cânon do Antigo Testamento tinha sido amplamente determinado, com apenas alguns livros ainda sendo discutidos em círculos judaicos. Jesus e os apóstolos compreendiam as Escrituras como a coleção definida que era conhecida do judaísmo da época e para o qual testemunhava. A Igreja dos primeiros séculos adotou o conceito escriturístico do judaísmo e também formulou um cânon. Em geral, esse processo foi concluído por volta do segundo século d.C., embora continuassem discussões superficiais em escritos patrísticos. O cânon, bem como as próprias Escrituras, não se baseia na tradição, mas na fala autorizada e preservação de Deus.

Uma vez tendo sido reconhecidos os limites do cânon, o processo de transmissão das Escrituras precisa ser compreendido. A fim de apreciar o tremendo esforço de copiar a Bíblia à mão durante 2.500 anos antes da invenção de Gutemberg do prelo de tipos móveis em 1456 d.C., precisamos compreender o ofício do copista/escriba, a possibilidade de erros, a natureza das línguas empregadas e a história do texto e suas versões.

Hoje, até mesmo leigos, sem acesso às línguas originais, podem tirar proveito de uma variedade de auxílios à sua disposição, abrangendo desde traduções e dicionários da Bíblia a comentários escritos por especialistas e outras fontes publicadas. Como sempre, quando se usam tais auxílios o leitor deve permanecer sensível às preferências, opiniões, e mesmo tendências daqueles que prepararam essas obras. A fim de que os leitores modernos tenham acesso à mensagem de Deus, é necessário aproximar-se de sua Palavra com respeito e sob a orientação do Espírito Santo.

A importância de trabalhar mais seriamente e mais de perto com a Palavra de Deus já foi apontada por Isaías, que declarou: “Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei” (Isaías 55:11).

Notas e referências

  1. Ao todo kanōn aparece quatro vezes no Novo Testamento (Gálatas 6:16 e 2Coríntios 10:13, 15 e 16). Em 2Coríntios 10 se refere a uma apontada esfera do ministério. Veja “Canon of the New Testament”, de Linda L. Belleville, em Foundations of Biblical Interpretation. A Complete Library of Tools and Resources, eds. David S. Dockery, Kenneth A. Mathews e Robert B. Sloan (Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1994), p. 375.
  2. Ele escreveu: “Renunciemos ao ócio, vãs considerações, e volvamos à renovada e solene norma (kanona) que desceu a nós” (I Clement 7:2 em Edgar J. Goodspeed, The Apostolic Fathers [London: Independent Press, 1950], p. 52).
  3. Clemente de Alexandria, The Stromata 6.5.125.
  4. Belleville, p. 375, sugere que Atanásio, bispo de Alexandria por volta de 353 d.C., foi o primeiro a usar o termo no sentido de distinguir as Escrituras autênticas das não-autênticas. Em 363 d.C., o sínodo de Laodiceia foi o primeiro concílio eclesiástico a empregar o termo para distinguir entre livros “canônicos” e “não-canônicos”.
  5. A referência em Mateus 23:35 liga Abel, o primeiro mártir, com Zacarias, o último mártir mencionado no último livro do cânon judaico (2Crônicas 24:20). Gênesis e 2Crônicas representam, segundo o cânon judaico, o primeiro e o último livros do cânon.
  6. O gráfico baseia-se em A Survey of the Old Testament, de Andrew E. Hill e John H. Walton (Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1991), p. 21.
  7. Apócrifo significa “escondido” e denota aqueles livros que apareceram nas orlas do cânon ou do Antigo ou do Novo Testamento. Uma introdução concisa à Apócrifa do Antigo Testamento pode ser encontrada em James H. Charlesworth, “Old Testament Apocrypha”, em Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman, Gary A. Herion, David F. Graf et al., 6 vols. (New York: Doubleday, 1992), 1:292-294. Estudos proveitosos individuais podem ser encontrados em George W. E. Nickelsburg, Jewish Literature Between the Bible and the Mishnah (Philadelphia: Fortress Press, 1981).
  8. Provavelmente ele estava citando Epimênides de Creta (Atos 17:28a; Tito 1:12) e Arato da Cilícia (Atos 17:28b).
  9. Por exemplo, a doutrina do purgatório tem uma base conveniente em Sabedoria 3:1 a 6.
  10. Foi o bispo de Roma, Basílio, o Grande (c. 330-379) quem dirigiu a teologia da Igreja Católica em torno do ponto de vista de que “as tradições não-escritas de origem apostólica, não encontradas nas Escrituras, mas preservadas na Igreja, poderiam ser aceitas como tendo autoridade divina”. (Peter M. van Bemmelen; “Revelation and Inspiration” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen, Commentary Reference Series, vol. 12 [Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000], p. 47). [Basílio, o Grande, nunca foi bispo de Roma. Natural da Capadócia, foi designado bispo de Cesareia no ano 370 d.C. – Nota do Tradutor].
  11. John van Engen, “Tradition”, em Evangelical Dictionary of Theology, ed. Walter A. Elwell (Grand Rapids, MI/Carlisle:Baker Books/Paternoster Press, 1984), p. 1105.
  12. Daniel J. Harrington, “Introduction to the Canon” em The New Interpreter’s Bible. Volume I: General Articles, ed. Leander E. Keck, 12 vols. (Nashville: Abingdon Press, 1994), 1:20.
  13. J. W. Charly, “Roman Catholic Theology”, em New Dictionary of Theology, eds. Sinclair B. Ferguson e David F. Wright (Leicester/Downers Grove: InterVarsity Press, 1988), p. 598.
  14. D. A. Carson, Douglas J. Moo e Leon Morris, An Introduction to the New Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1992), p. 498.

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Waltke, B. K. “Textual Criticism of the Old Testament and Its Relation to Exegesis and Theology”. em New Testament Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, ed. W. A. van Gemeren. 5 vols., 1:51-67. Grand Rapids, MI: Zonder van Publishing House, 1997.

Würthwein, E. The Text of the Old Testament. 2a ed. rev. Trad. por E. F. Rhodes. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1995.

Gerald A. Klingbeil, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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DIRETRIZES PARA A INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS

Introdução

Um problema crucial e muito prático hoje envolve a questão de qual método deve ser empregado para interpretar as Escrituras, uma vez que a interpretação necessária, conforme salientado até mesmo por Jesus (Lucas 24:27). Este capítulo se inicia com diretrizes gerais, depois muda para passos exegéticos específicos que nos ajudam a compreender a Palavra de Deus. Desde o início, devemos ter em mente que o objetivo de nossa interpretação deve ser criar um “coração ardente” (Lucas 24:32) tanto no expositor quanto nos ouvintes, que os leve para mais perto de Deus.

O método bíblico-histórico

O método bíblico-histórico é às vezes chamado de abordagem bíblico-gramatical das Escrituras, método histórico-gramatical, ou método gramático-histórico. Deve ser distinguido do predominante método crítico-histórico com sua crítica da fonte, crítica da forma, crítica da redação, história da tradição e crítica sócio-científica.

Em contraste com muitas outras abordagens, o método bíblico-histórico reconhece o autotestemunho das Escrituras e estuda seus fenômenos. Aceita a afirmação de que Deus se revelou (1Samuel 3:21), que entrou em uma relação com os autores humanos das Escrituras (Amós 3:7; Efésios 3:5), que também revelou verdade proposicional e comunicou mensagens (Daniel 10:1; Tito 1:3), que inspirou os autores humanos a partilhar essas mensagens com outros (2Timóteo 3:16; 1Pedro 1:10 a 12; 2Pedro 1:19 a 21, e que a mensagem escrita é a Palavra de Deus (Marcos 7:10 a 13). As pressuposições básicas do método bíblico-histórico são:

  1. A Bíblia somente é a final e mais elevada prova da verdade (Isaías 8:20; Isaías 66:2). Princípios estranhos de interpretação vindos de fora e forçados sobre a Bíblia que não respeitam seu autotestemunho devem ser rejeitados. Princípios derivados de filosofia, psicologia e sociologia não podem controlar a interpretação do texto. Tradição e ciência não determinam assuntos de fé, embora tenham seu lugar legítimo na vida humana.
  2. Uma segunda pressuposição envolve a totalidade das Escrituras. A Bíblia é a Palavra escrita de Deus, como um todo, não simplesmente aqui e ali (2Timóteo 3:16). A mensagem dos profetas e dos apóstolos é a proposicional Palavra de Deus (2Crônicas 36:15 e 16; Romanos 3:2; 1Tessalonicenses 2:13). Os lados humano e divino estão ligados inseparavelmente (2Pedro 1:19 a 21).
  3. A analogia ou a harmonia das Escrituras é vista em três pontos: (a) As Escrituras são o seu próprio expositor (Lucas 24:27). Todos os textos que tratam de um tema devem ser reunidos e estudados a fim de apresentar corretamente a doutrina bíblica. Isto não é texto de prova, em que os textos são enfileirados sem consideração para com o contexto. (b) Há um acordo fundamental ou unidade dentro das Escrituras (João 10:35). (c) Há também clareza nas Escrituras. Essa clareza não apenas significa que a Bíblia pode ser compreendida, mas também que textos claros elucidam textos difíceis (1Pedro 1:10 a 12).
  4. As coisas espirituais devem ser discernidas espiritualmente (1Coríntios 2:11 e 14): (a) Qualquer que quiser compreender as Escrituras precisa da iluminação do Espírito Santo (João 14:26). Todavia, o Espírito Santo não opera contrariando às Escrituras que Ele inspirou. (b) Por outro lado, quem interpreta as Escrituras deve ter fé e uma atitude espiritual (2Crônicas 20:20).

O problema do texto

Nosso mundo hoje é diferente do antigo Oriente Próximo. Muitos de nós falam línguas diferentes daquelas usadas pelos escritores da Bíblia, e muitos elementos de nossas culturas diferem daqueles descritos na Bíblia. Portanto, devemos investigar os textos bíblicos e tentar compreender as línguas, o tempo e as circunstâncias sob as quais esses textos foram escritos. Devemos tentar ver com os olhos daqueles que viveram séculos atrás e ouvir com seus ouvidos quando a atenção deles era chamada para a mensagem bíblica. Embora tentando vencer as barreiras do tempo, língua e cultura, cremos que podemos nos aproximar do texto bíblico e aplicá-lo à nossa situação de hoje.

Mas não precisamos distinguir nitidamente entre o que o texto significava e o que o texto significa? Por trás desta pergunta jaz a ideia e a agenda de que o texto bíblico deve ser reaplicado de uma maneira totalmente nova a fim de satisfazer nossa presente situação. Quando isto é feito, o vocabulário bíblico ainda é usado, mas é investido de um significado completamente novo. Por exemplo, alguns afirmam que a ressurreição de Jesus, a qual o Novo Testamento apresenta como uma garantia para a futura ressurreição física dos redimidos, não foi uma ressurreição física e histórica. Em vez disto, meramente aponta para uma ressurreição espiritual dos crentes para uma nova dimensão de vida aqui e agora, tudo quanto isto possa significar. Seguindo esta abordagem substituiríamos as intenções originais de Deus pela autoridade do intérprete humano e abriríamos o texto para inumeráveis interpretações, substituindo a verdade pelo relativismo e pluralismo.

Embora creiamos que Deus, por meio dos profetas, falou para situações específicas, sua mensagem transcende essas situações e nos alcança hoje. A despeito das diferenças que se relacionam com o tempo, um alto grau de continuidade caracteriza a raça humana independente de tempo, cultura e circunstâncias, especialmente no que se refere a problemas morais.1

A Palavra de Deus não está cultural ou historicamente condicionada, mas culturalmente/historicamente constituída. Ela transcende culturas e nos alcança hoje. Portanto, o que o texto bíblico significava no princípio em seu ambiente original é precisamente o que o texto significa para nós hoje. Qualquer aplicação de um texto à nossa situação deve estar ligada ao significado original. Como já foi ressaltado, o próprio Jesus estava convencido de que as Escrituras eram dirigidas não apenas à audiência original, mas também à geração do seu tempo, bem como àquelas que viriam.2

Interpretando um texto bíblico

Quando falamos sobre um texto bíblico, podemos nos referir ou a um verso individual ou a uma passagem bíblica mais longa contendo vários versos. São estes os passos exegéticos básicos em ordem cronológica: (1) Buscar a Deus em oração. (2) Ler o texto. (3) Usar a melhor versão possível. (4) Traduzir o texto. (5) Investigar o contexto. (6) Analisar o texto. (7) Fazer análise teológica. (8) Aplicar o texto. (9) Usar recursos. (10) Tomar tempo.

Cada um desses passos é essencial. Contudo, pessoas não treinadas em teologia ou exegese bíblica talvez queiram excluir o passo três, trabalhar com uma tradução existente (passo quatro), e podem simplificar algumas outras abordagens discutidas sob o passo seis. Mesmo com estes ajustes, elas se beneficiarão da abordagem bíblico-histórica à Escritura.3

Passo um: buscar a Deus em oração

Passagem. Sendo que as coisas espirituais são discernidas espiritualmente (1Coríntios 2:14), é natural buscar a Deus em oração antes de começar o estudo da Bíblia. Sendo que a Bíblia é a Palavra de Deus, a iluminação do Espírito Santo essencial para sua devida compreensão. A interação entre a oração e o estudo das Escrituras é ilustrada em Daniel 9:1 a 19. Neste caso, o estudo da Bíblia foi seguido pela oração.

Passo exegético. Em oração pedimos a Deus sabedoria (Tiago 1:5) e a orientação do Espírito Santo (Lucas 11:13) ao abrirmos a sua Palavra. No entanto, a oração não está limitada ao tempo antes do estudo das Escrituras. O intérprete deve voltar-se para Deus ao longo do esforço para compreender o texto bíblico, apresentando ao Senhor o que o confunde e reagindo aos desafios pessoais das Escrituras. Deste modo, ocorre um diálogo entre Deus e Sua Palavra por um lado e o agente humano por outro.

Passo dois: ler o texto

Passagem. Em Apocalipse 1:3 os leitores do Apocalipse são chamados de bem-aventurados. Em Lucas 4:16 a 19, Jesus lê as Escrituras antes de começar a interpretar e aplicá-la (Lucas 4:21 a 27). A leitura das Escrituras pode ser particular ou pública. Em nosso caso, estamos nos referindo à leitura privada do texto.

Passo exegético. A fim de nos tornarmos familiarizados com a passagem, o texto deve ser lido cuidadosa e repetidamente, de preferência em seu contexto mais amplo. Memorizar a passagem pode ser muito proveitoso. A memorização requer uma repetição constante do texto. Frequentemente essa repetição faz o parágrafo tornar-se vivo ao leitor, abrindo nova compreensão.

Passo três: usar a melhor versão possível

Passagem. Nos tempos bíblicos, grande número de manuscritos bíblicos não estavam ainda disponíveis, mas os autores do Novo Testamento parecem ter usado diferentes formas da Septuaginta (LXX) e do texto hebraico. Todavia, a Bíblia enfatiza a necessidade de sua preservação sem acréscimos e omissões (Deuteronômio 4:2; Deuteronômio 12:32; Apocalipse 22:18 e 19). Sendo que hoje temos à mão milhares de manuscritos do Novo Testamento, bem como muitos documentos do Antigo Testamento, precisamos procurar o melhor texto possível.

Passo exegético. Apesar de milhares de manuscritos bíblicos terem sido descobertos, não temos os manuscritos originais. Os manuscritos existentes são cópias de cópias originadas com os autógrafos, contendo várias versões diferentes. Conhecedores do texto estão interessados na reconstrução potencial do texto bíblico original, com o objetivo de chegar o mais perto possível do original. A Bíblia permanece como o mais bem preservado manuscrito da Antiguidade e é fidedigna e confiável. A análise textual pode ser muito exigente e é domínio de especialistas. Requer um bom conhecimento produtivo em várias línguas antigas, porque a tarefa não termina com os manuscritos gregos e hebraicos. Estende-se a versões em outras línguas, bem como a citações dos escritos dos Pais da Igreja. Portanto, muitos de nós lidaremos com os existentes textos gregos e hebraicos e/ou traduções em nossas línguas maternas.

Passo quatro: traduzir o texto

Passagem. Em contraste com o Qur’an, que basicamente tem de ser lido em arábico, o texto bíblico vem em três línguas, hebraico, aramaico e grego. Traduções podem ser encontradas dentro da própria Bíblia, por exemplo, em Gênesis 31:47 (aramaico e hebraico) e Romanos 8:15 (aramaico e grego).

Passo exegético. A pessoa capaz de ler as línguas bíblicas – hebraico, aramaico e grego – deve traduzir a passagem sob investigação e escrevê-la. Em um texto existem nuanças e opções que nenhuma tradução pode captar. Os tradutores já tomaram certas decisões, e mesmo a melhor tradução já é uma interpretação.

Todos aqueles que não têm acesso à respectiva língua bíblica devem consultar – onde for possível – várias boas traduções. Há diferentes maneiras de traduzir a Bíblia. Podem-se encontrar paráfrases, que realmente não são traduções, mas antes descrições do conteúdo bíblico nas próprias palavras de alguém, com bastante espaço para interpretação. O Clear Word, por exemplo, é uma paráfrase.4 As traduções reais podem ser distinguidas como traduções formais ou dinâmicas.

As traduções formais procuram ficar o mais próximo possível da língua original. A King James Version, a Revised Standard Version e a New American Standard Bible pertencem à categoria de traduções formais. Contudo, algumas versões podem parecer um tanto enfadonhas.

As traduções dinâmicas tentam criar uma relação entre o leitor e a tradução semelhante à que existia entre o leitor original e o texto original. São menos literais do que as traduções formais. Não somente analisam o texto, mas tentam reestruturá-lo. A New English Bible (NEB) e Today’s English Version (TEV) pertencem a este tipo de tradução, ao passo que a New International Version (NIV) está entre as traduções formal e dinâmica.

Boas traduções inglesas incluem a King James Version, embora a linguagem seja às vezes obsoleta e, ocasionalmente, difícil de compreender. Além disso, os manuscritos gregos usados para a KJV não incluem os melhores manuscritos descobertos posteriormente. A New King James Version (NKJV), a Revised Standard Version (RSV), a New International Version (NIV), a American Standard Version (ASV) e a New American Standard Bible (NASB) estão baseadas nos mais antigos manuscritos, sendo as duas últimas as mais literais traduções inglesas.

Embora às vezes possamos encontrar problemas nas traduções da Bíblia, em geral, elas são dignas de confiança. O uso de mais de uma tradução é uma salvaguarda contra liberdades tomadas por alguns tradutores ou grupos de tradutores.

Passo cinco: investigar o contexto

Passagem. Um exemplo negativo que ilustra a negligência do contexto escriturístico é a segunda tentação de Jesus (Mateus 4:6), em que Satanás o desafia com uma citação de Salmos 91:11 e 12. A citação foi abreviada conforme comparada com o texto original e, portanto, muito mal representada. O salmista fala da direção de Deus “em todos os teus caminhos” e não apenas acerca de sua intervenção em situações especiais. O contexto de Salmos 91 revela que há ciladas e pragas das quais Deus preserva os fiéis. Jesus se opõe a qualquer representação equivocada do texto bíblico pela desconsideração do seu contexto. Em Mateus 19:4 a 8, Jesus discute o divórcio citando o contexto da criação no Antigo Testamento (o contexto mais amplo) e confirma o princípio de que as Escrituras são o seu próprio intérprete.

Passo exegético. Precisamos distinguir entre o contexto histórico-cultural e o contexto literário. O contexto literário pode ser classificado como o contexto literário mais amplo e/ou o contexto literário imediato.

(1) O contexto histórico: O contexto histórico-cultural provê respostas para perguntas como: Quando foi escrito o livro bíblico? Quem foi o autor humano? A quem foi o livro originalmente dirigido? Qual era a finalidade do autor? Em que época e em que localidade geográfica ocorreram os eventos descritos nesse livro? Qual era a situação política, econômica e social daquela época? O que sabemos acerca do ambiente e situação religiosa? Que costumes prevaleciam? Como as pessoas viviam, trabalhavam e se sustentavam? O que elas comiam? A própria Bíblia, a arqueologia, a geografia e a história esclarecem o contexto histórico. O contexto histórico é muito útil e muito mais necessário para se obter uma compreensão melhor do texto que será explorado. Como exemplo, a data em que o livro de Daniel foi escrito, bem como o nome do autor, podem ser derivados do próprio livro. As datas para os eventos que ocorreram, bem como outros dados cronológicos, podem muitas vezes ser encontrados no início dos diferentes capítulos (Daniel 1:1; 2:1; 6:1; 7:1; 8:1; 9:1; 10:1). Consequentemente, o livro está colocado no sexto século a.C.

(2)  O contexto literário: O contexto literário consiste de versos, parágrafos, capítulos, e mesmo livros que precedem e seguem o texto a ser estudado. Normalmente, o contexto literário está mais prontamente disponível do que o contexto histórico. Portanto, distinguimos entre o mais amplo e o mais imediato contexto literário:

(a)  O mais amplo contexto literário – são as Escrituras, mais especificamente o             livro bíblico do qual o texto é tirado. Esse contexto deve ser consultado. O texto sob investigação é parte da mensagem global do autor bíblico, e de qualquer modo ele deve se ajustar em sua mensagem global ou geral. Normalmente, os textos não estão totalmente desligados do seu contexto mais amplo. Portanto, procuramos encontrar o lugar do principal argumento do autor.

Por exemplo, a carta aos Gálatas trata especificamente da justificação pela fé, ao passo que Efésios enfatiza a natureza da Igreja. Os temas importantes ou a mensagem global de um livro bíblico pode ser identificada tentando-se encontrar uma declaração do autor contando-nos sua finalidade ao escrever; pelo esboço ou resumo do documento; observando-se a repetição de palavras, frases, ou temas; pela focalização de pessoas que influenciam, e tomando-se nota do lugar em que a ação acontece e do tempo envolvido.

Considere um exemplo de Pedro. Em 1Pedro o autor parece focalizar o sofrimento. Nenhum livro do Novo Testamento se refere tão frequentemente ao sofrimento e desenvolve tão claramente este assunto. Mas a despeito do seu sofrimento, o apóstolo convida os membros da igreja a um santo procedimento e às boas obras, um tema secundário.

O mais vasto contexto é toda a Bíblia com o seu plano de salvação. Normalmente, cada texto que estudamos contém palavras interessantes e temas específicos. Primeiramente, essas palavras e temas devem ser investigados ao longo do livro bíblico em que aparecem. Se o autor escreveu mais do que um livro, podemos também investigá-los ao longo de todos esses livros bíblicos. Finalmente, é legítimo dar mais um passo e explorar como outros autores bíblicos usaram as mesmas palavras e conceitos. Pode haver continuidade ou descontinuidade, embora os escritores da Bíblia não se contradigam uns aos outros. Eles podem ter diferentes ênfases. Aqui encontramos o princípio de que as Escrituras são o seu próprio intérprete e que um texto pode esclarecer o outro.

(b) O contexto literário imediato – Uma das mais importantes atividades, se não o elemento mais importante na interpretação bíblica é o estudo do contexto literário. Até mesmo o significado das palavras é normalmente determinado pelo contexto. Ser capaz de discernir como um texto está embutido em seu contexto ajuda o estudante da Bíblia a evitar interpretações falsas ou tendenciosas.

Por exemplo, Isaías 65:17 a 25 não é ainda a descrição dos novos céus e da nova terra, conforme encontrada em Apocalipse 21 e 22. Em Isaías 65:20, a morte ainda está presente. Veja também Isaías 65:23 e Isaías 66:23 e 24. Isto é uma profecia condicional para Israel, apontando para uma condição quase ideal que nunca se cumpriu em uma escala local, mas que aguarda o cumprimento final em uma escala universal conforme se encontra em Apocalipse 21 e 22. Semelhantemente, 1Coríntios 2:9 não descreve a nova terra, mas a sabedoria de Deus revelada em Jesus para nossa salvação. O estudo do contexto também inclui a investigação de sua estrutura, determinando a delimitação de passagens e identificando o seu gênero literário.

A estrutura. Enquanto se estiver lendo o contexto imediato, isto é, os versos e parágrafos precedentes e sequentes ao texto a ser estudado, deve-se ter em mente estas indagações: Como nosso texto se ajusta ao contexto? Como está o texto ligado ao que vem antes e ao que segue?

Às vezes, leitores dos evangelhos e das epístolas do Novo Testamento têm a impressão de que os autores são um tanto desorganizados em apresentar suas ideias ou narrativas. No entanto, se estudados diligentemente, em geral surge um esboço bem-organizado e um claro propósito. Os autores nem sempre seguem nossas convenções. Por exemplo, eles podem ligar passagens ao uso de um ou mais termos teológicos. Os livros bíblicos não são produções caóticas, desprovidas de um grau de sequência e harmonia, mas literatura excelente. Portanto, é indispensável examinar cuidadosamente a estrutura do contexto para obter uma imagem clara do que está seguindo.

Determinar a estrutura de uma passagem ou de um documento pode ajudar-nos a compreender a linha de raciocínio do autor, notar as ligações entre diferentes partes de um documento e realçar nossa compreensão do parágrafo.

O resumo do contexto pode ser obtido analisando-se o conteúdo do documento ou estudando-se os aspectos literários do livro, tais como palavras, frases e sentenças inteiras que se repetem. Para estabelecer uma estrutura pode-se procurar assuntos teológicos, pessoas que estão sendo mencionadas, localidades geográficas, a estrutura temporal de um documento, quiasmos, progressões, paralelismos temáticos, relatos paralelos, e repetições.

* Assunto teológico – Um importante assunto teológico do evangelho de Lucas é a rejeição do Messias. É repetido constantemente.

* Pessoas sendo mencionadas – Os personagens atuantes de Apocalipse 4:1 a 8:1 diferem amplamente daqueles mencionados em Apocalipse 8:2 a 11:18. Na visão dos selos, o cordeiro aparece dez vezes; na visão das trombetas, nenhuma vez. Isto também é verdade quanto aos seres viventes encontrados doze vezes em Apocalipse 4 a 7 e nenhuma na seção das trombetas. Todavia, os habitantes da Terra são enfatizados nas trombetas.

* Localizações geográficas – As localizações geográficas são muito importantes no evangelho de João e poderiam ser usadas para estruturá-lo.

* Estrutura do tempo – Em Apocalipse, a primeira parte retrata várias vezes o período entre o primeiro século d.C. e a consumação final, ao passo que a segunda parte focaliza apenas eventos do tempo do fim.

* Quiasmo – É uma estrutura em que a primeira seção corresponde à última seção, a segunda do início à segunda do fim, a terceira do início à terceira do fim, etc. Pode ter um só pico ou um pico duplo no meio. O quiasmo é típico do pensamento hebraico. Exemplo:

Daniel 2 – Quatro impérios

     Daniel 3 – Decreto de morte contra os fiéis

          Daniel 4 – Juízo sobre o rei de Babilônia

          Daniel 5 – Juízo sobre o rei de Babilônia

     Daniel 6 – Decreto de morte contra os fiéis

Daniel 7 – Quatro impérios

* Progressão – A progressão é encontrada nas cenas introdutórias do Apocalipse, todas elas relacionadas ao santuário.

* Paralelismos temáticos – Existe em João 9 um paralelismo temático entre o cego de nascença e aqueles que são espiritualmente cegos.

* Relatos paralelos – Ocorrem relatos paralelos nas histórias da conversão de Paulo em Atos 9, 22 e 26.

* Repetições – As repetições são frequentes, como, por exemplo, aquelas encontradas em Apocalipse 16:12 e 21, conforme comparadas com Apocalipse 17 a 19.

Delimitação de passagens. Outra indagação suscitada quando se estuda o contexto e, posteriormente, quando se analisa o texto é: Onde estão os limites de uma passagem? Onde começa e termina um parágrafo? Determinar a delimitação de passagens torna-se muito importante no livro de Apocalipse.

O gênero literário. Um outro problema é a espécie de literatura que está sendo usada. Encontramos prosa ou poesia? A poesia com frequência é muito figurativa e metafórica e não deve ser interpretada em excesso. Todavia, o outro extremo de não se levar em conta qualquer valor histórico na poesia deve ser evitado.

É o contexto e/ou texto um relato histórico ou uma profecia? Se é uma profecia, ela é profecia clássica ou profecia apocalíptica, tal como é encontrada em Daniel e Apocalipse, que pode incluir muitos símbolos e figuras fantásticas? A profecia clássica é normalmente condicional. Também pode ter mais de um cumprimento, enquanto que a profecia apocalíptica “retrata a luta entre o bem e o mal, e a vitória final e o estabelecimento do eterno reino de Deus. Portanto, não é condicional às reações humanas”5 e retrata o futuro como será em vez de como poderia ser.

Passo seis: analisar o texto

Passagem. Em alguns lugares as estruturas escriturísticas são claramente discerníveis. Alguns quiasmos, muitos paralelismos, e o esboço acróstico de certos salmos são reconhecíveis por quase todos. No Apocalipse, João parece ter adotado certos princípios estruturais de Daniel, como recapitulação.

Os autores do Novo Testamento, usando o Antigo Testamento, enfatizaram palavras específicas e as interpretaram. Por exemplo, em Romanos 4 Paulo se refere a Gênesis 15:6 e explica a justificação pela fé. Em Gálatas 3:16, ele enfatiza o singular do substantivo “semente” ou “descendente”. Nas citações do Antigo Testamento enumeradas em Romanos 3, Paulo salienta as palavras “nem um sequer” e “todos” antes de tirar a conclusão de que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3:23). As Escrituras nos encorajam a olhar cuidadosamente para o texto.

Passo exegético. A análise de um texto inclui a investigação da estrutura do texto, sua forma literária, palavras individuais, frases, sentenças e grandes unidades.

(1) Diferentes espécies de estruturas. A estrutura dos versos e parágrafos pode ser muito diferente. Deve-se ter em mente que uma estrutura não deve ser forçada sobre um texto; antes, tem de ser extraída do texto. Portanto, a mudança de ordem de palavra ou de ordem de verso para se ajustar a uma estrutura deve ser rejeitada. No entanto, achar o esboço de um texto pode ajudar-nos consideravelmente a compreendê-lo e interpretá-lo. Aqui estão alguns dos modelos possíveis:

(a) Um esboço nos permite perceber melhor os problemas que o autor está apresentando, sua principal linha de raciocínio, as digressões que ele faz, e o arranjo do material.

Lucas 12:15 a 21 pode ser esboçado como segue: Introdução – O princípio; A parábola; Cena 1 – O homem rico; Informação sobre ele; Solilóquio – Pergunta e Resposta; Tema: os bens e a alma; Cena 2 – Deus; Monólogo; Tema: a alma e os bens; Conclusão: o princípio

(b) Em um esboço acróstico, as letras do alfabeto são usadas sucessivamente no início de versos consecutivos.6 Isto só pode ser visto na língua original.

(c) Uma inclusão é uma espécie de estrutura envolvente. Uma declaração no início de uma passagem é repetida em seu final.

(d) Um quiasmo pode usar um modelo ABB’A’ ou um ABA’. Eles podem ser contínuos ou reunidos, e são encontrados em sentença e em nível de verso, bem como em nível de grandes unidades ou mesmo de livros bíblicos. Aparece um quiasmo em Amós 5:4 a 6.

A – “Pois assim diz o SENHOR à casa de Israel: BUSCAI-ME E VIVEI.

     B – Porém não busqueis a Betel,

          C – nem venhais a Gilgal,

               D – nem passeis a Berseba,

          C’ – porque Gilgal, certamente, será levada cativa,

     B’ – e Betel será desfeita em nada.

A’ – BUSCAI AO SENHOR E VIVEI, para que não irrompa na casa de José como um fogo que a consuma”.

(e) A característica mais importante da poesia hebraica é o paralelismo. Ele se estende também ao Novo Testamento, porque seus autores seguiram o pensamento hebraico. No paralelismo, a segunda linha está em íntima relação com o pensamento da primeira linha, quer seja como repetição, expansão, ou contraste. Portanto, uma linha pode ser usada para explicar a outra linha.

Um bem-conhecido exemplo de paralelismo existe em Provérbios 9:10. Aqui relacionamos as unidades pondo-as em estilo agrupado:

O temor ………………. do SENHOR ………….. é …………… o princípio da sabedoria,

e o conhecimento …. do Santo ……………… é …………… prudência.

(f) Outras características incluem clímax, contraste e repetição de palavras, frases e pensamentos. Por exemplo, em 1João 1:6 a 10 todos os versos se iniciam semelhantemente (“se” [“nós” subentendido]). Três deles começam precisamente do mesmo modo: “Se dissermos” (1:6, 8 e 10). Estes versos são todos negativos e formam um assinalado contraste com os versos entre eles que contêm promessas divinas (1:7 e 9). Esta estrutura realça a diferença entre as afirmações humanas e a oferta divina.

Além disso, ocorre uma intensificação com os versos negativos (1:6, 8, 10), de sorte que o clímax é atingido no último verso.

(2) Formas literárias. As formas literárias podem mudar à medida que o leitor se muda do contexto para o próprio texto. No nível das formas podemos, por exemplo, distinguir entre confissões, ação de graças, hinos, salmos reais e salmos escatológicos, lei casuística e lei apodíctica,7 fórmulas de fé, provérbios, parábolas, relatos de milagres, narrativas da paixão, admoestações, litígios e homilias.

Nas Escrituras encontramos narrativas que descrevem um certo comportamento sem conter um chamado para imitar esse comportamento específico. Além disso, encontramos relatos, mandamentos e admoestações que direta ou indiretamente convidam para uma reação positiva (Romanos 15:4). O comportamento que as Escrituras claramente identificam como moralmente negativo não deve ser imitado, mas sim as atitudes e comportamento construtivos. Por exemplo, enquanto que a fé de Abraão exemplar (Romanos 4) e somos chamados a seguir as pegadas de Cristo (1Pedro 2:2), a embriaguez de Noé não deve ser imitada (Gênesis 9:20 a 24).

(3) Investigando grandes unidades. As grandes unidades dentro do texto sob investigação são versos e curtos parágrafos. Vários problemas precisam ser considerados quando se estudam essas unidades.

(a) Divisões do texto – A divisão em versos e capítulos encontrada nas Bíblias de hoje não é original, foi acrescentada muito mais tarde. Muitas vezes, essas divisões são proveitosas; ocasionalmente, elas não são. Em vários lugares, as traduções inglesas diferem da contagem de capítulo e verso encontrada nas edições hebraicas e gregas, bem como em traduções não-inglesas. Resumindo, as divisões em capítulos e versos não devem determinar nossa interpretação de uma dada passagem. Notamos isto em Apocalipse 20:5, em que a última parte do verso claramente pertence ao verso 6.8

(b) Pensamento principal – Em se tratando das grandes unidades, devemos perguntar: Como o autor desenvolve seu argumento? Quais são suas principais linhas de raciocínio? Onde faz ele uma digressão ou insere algumas outras ideias? Qual é o principal objetivo em torno do qual ele está se movendo? Quando se estuda um parágrafo, é importante descobrir o tema principal ou o interesse predominante do autor.

(c) Tempo e localização geográfica – Com frequência, é proveitoso investigar os elementos do tempo e localizações geográficas mencionados no texto. Podemos encontrar retrospectos no tempo, profecias de tempo, e descrições do futuro como se já fossem presentes. As diferentes localidades podem exercer um impacto sobre a mensagem que está sendo proclamada. Uma mudança de lugar ocorre também quando é chamada a atenção de eventos sobre a Terra para o mundo celestial. Em Apocalipse 12, ocorrem importantes mudanças no tempo e na localização. Os versos 1 a 5 descrevem o primeiro conflito entre o dragão e a mulher; o verso 6, o conflito medieval entre o dragão e a mulher; os versos 7 a 12, o conflito entre Miguel e o dragão no Céu; os versos 13 a 16, outra vez, o conflito medieval entre o dragão e a mulher; e, no verso 17, o conflito do final do tempo entre o dragão e os remanescentes, os descendentes da mulher.

(d) Pessoas atuantes – É proveitoso olhar para as diferentes pessoas que estão sendo mencionadas em um texto e observar como elas interagem. O estudo desses personagens pode ser significativo para a mensagem do trecho estudado.

(e) Conexões com outras partes do documento e com outra literatura – As conexões literárias com outras partes do mesmo documento, tais como frases que foram usadas em nosso texto e em outra parte tornam-se importantes. Onde o autor cita o Antigo Testamento? Onde ele alude ao Antigo ou ao Novo Testamento? Como sua citação usada posteriormente no cânon? Onde ele se refere a documentos fora das Escrituras? É útil estudar relatos paralelos, por exemplo, nos evangelhos ou em Samuel-Reis/Crônicas.9

Os escritores da Bíblia frequentemente citam passagens de outros escritores da Bíblia. Encontramos uma série de citações do Antigo Testamento, por exemplo, em Romanos 3. Alusões ao Antigo Testamento são abundantes em Apocalipse, embora       o livro não contenha uma só citação direta do Antigo Testamento; por exemplo, o cenário de Apocalipse 4 em Ezequiel 1 e 10. Outro exemplo de alusão ocorre em Tiago 5:12. Tiago se refere ao Sermão da Montanha (Mateus 5:37). Em Atos 17:28, Paulo se refere a poetas gentílicos e, em Tito 1:12, a um profeta cretense. Sob inspiração, Judas parece citar um trecho de 1Enoque (versos 14 e 15). Literatura não contida na Bíblia pode ser usada como ilustração.

(f) Alegoria e tipologia – Os expositores da Bíblia devem evitar alegorização em sua interpretação. Alegorizar significa designar significado mais profundo aos detalhes de uma história. Não há controles e salvaguardas, e a mensagem é facilmente mal interpretada. No caso de alegorização, o único elemento limitador é a imaginação do intérprete. Portanto, os intérpretes variam amplamente. O significado literal deve ser preferido.

Em vez de alegoria, a Bíblia predominantemente usa tipologia. Em tipologia um tipo é satisfeito por um antítipo. Por exemplo, uma figura do Antigo Testamento encontra seu cumprimento no Novo Testamento, contudo em uma escala mais ampla. Por trás de um tipo menor está uma realidade maior. “Um tipo é uma instituição, evento histórico, ou pessoa, ordenada por Deus, que eficazmente prefigura alguma verdade ligada ao cristianismo”.10 É mais seguro usar uma abordagem tipológica somente quando a Bíblia o permite como quando o Novo Testamento faz referência a um precursor do Antigo Testamento.

Por exemplo, em Romanos 5:14, Adão é um tipo de Cristo, e em João 6:14 assim é Moisés (citando Deuteronômio 18:15).

(4) Frases e sentenças. Depois de estudarmos as grandes unidades, agora nos volvemos às frases e sentenças. Este passo focaliza os aspectos gramaticais e a sintaxe, isto é, a maneira como as sentenças são construídas. Também observa os modelos literários e retóricos.

(a) Gramática e sintaxe – Investigar frases e sentenças significa indagar: O que se segue aqui? O que é peculiar? Qual é a mensagem revelada? Tentamos participar no que o texto descreve. Normalmente, o significado das frases é mais do que a soma das palavras. Portanto, além de uma simples leitura, examinamos os tempos e ações verbais, expressões peculiares, e procuramos a sintaxe de frases e sentenças. Além disso, tem de ser feita a pergunta sobre como as diferentes partes de uma determinada sentença se relacionam entre si e que mensagem elas, nisso, transmitem.

Em João 8:58, Jesus faz uma surpreendente declaração: “Antes que Abraão existisse, EU SOU”. Esta sentença usa gramática irregular. A maneira aceita de falar seria: “Antes que Abraão existisse, EU ERA”. Jesus ainda reclamaria preexistência. A aparente irregularidade gramatical é feita de propósito. Jesus não apenas afirma ter vivido antes de Abraão; ele aplica a si mesmo o título divino de Êxodo 3:14. As pessoas compreenderam. Eles entenderam que Jesus reivindicava divindade e quiseram apedrejá-lo (verso 59).

(b) Feições retóricas – Na conversação de hoje às vezes usamos ferramentas literárias, tais como ironia, sarcasmo, comparações, e indagações retóricas que não exigem uma resposta. Todas estas e mais são encontradas nas Escrituras. Precisamos estar cientes dessas feições para evitar que se compreenda mal um autor. Também incluem hipérbole, oxímoro, paradoxo e outros.

Encontramos notáveis exemplos destas formas literárias no Novo Testamento; o próprio Jesus usa hipérbole: “Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céu? Descerás até ao inferno; porque, se em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti se fizeram, teria ela permanecido até ao dia de hoje” (Mateus 11:23). Paulo utiliza a ironia ao escrever aos coríntios: “Porque, em que tendes vós sido inferiores às demais igrejas, senão neste fato de não vos ter sido pesado? Perdoai-me esta injustiça” (2Coríntios 12:13). Um exemplo de oxímoro, ou justaposição de declarações contraditórias, aparece na declaração de Jesus: “Pois ao que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mateus 13:12), e paradoxo: “Asseguro-vos que, se eles se calarem, as próprias pedras clamarão” (Lucas 19:40).

(c) Palavras – Quando se investigam as palavras, o princípio mais importante é permitir que o contexto de uma determinada sentença defina o significado da respectiva palavra, determine as maneiras pelas quais o autor a usou em diferentes lugares. Às vezes, podemos até mesmo desejar ver como ela é usada no restante das Escrituras. Uma concordância é útil e deve ser usada como a ferramenta básica para o estudo da Bíblia. Cada palavra que pode ser importante deve ser cuidadosamente pesquisada. Deve-se tomar grande cuidado para não se chegar a uma decisão prematura ou apressada com respeito ao significado de uma palavra.

É importante reconhecer como o autor usou um termo e o que o mesmo significava para ele, não o que significa para nós hoje. Ideias contemporâneas não devem ser equiparadas ao uso bíblico das palavras. As palavras mudam, porque a linguagem é dinâmica e não estática. Portanto, as palavras podem ter diferentes significados em épocas diferentes. As palavras também têm diferentes significados em contextos diferentes.

Os estudos etimológicos precisam ser feitos cuidadosamente. Às vezes, a investigação de significados radicais e termos comparáveis em línguas afins é inevitável, especialmente no que se refere a palavras encontradas nas Escrituras apenas uma vez. Todavia, o contexto tem prioridade sobre a etimologia.

Não é admissível o uso da etimologia de palavras de uma Bíblia inglesa ou de qualquer tradução para explicar o significado da palavra bíblica, baseado no significado radical do termo traduzido. De fato, o significado de uma palavra nas línguas bíblicas pode ter uma maior ou menor extensão de significados do que o termo correspondente em uma língua moderna. Devemos permitir que o autor fale por si mesmo dentro da estrutura de sua língua original. Por exemplo:

Mudança de significado. O termo “meat” na KJV significa “alimento”, não “carne”; “corn” é “grão”, “semente”, “cereais” e não “milho”; e “prevent” em 1Tessalonicenses 4:15 (KJV) significa “preceder”. Algumas palavras que têm hoje um significado pejorativo eram positivas ou neutras no passado. O “dia do Senhor” de Apocalipse 1:10 não pode ser equiparado ao “dia do Senhor” dos séculos subsequentes, em que se tornou um termo técnico para o domingo. Expressões similares são usadas nas Escrituras para o dia do juízo ou para o sábado.

Extensão de significado. As palavras hebraicas e gregas para “eterno” são muito vastas em significado, indicando ou um período de tempo limitado ou a eternidade. Os juízes do livro dos Juízes não podem ser comparados com os juízes dos dias modernos. Eles eram também dirigentes da nação.

Diferentes significados em diferentes contextos. O termo “carne” em Gálatas 5:17 denota nossa natureza pecaminosa, ao passo que a mesma palavra em Filipenses 1:22 a  24 se refere ao corpo físico.

Também pode ser útil estudar as palavras em conexão com seus sinônimos, antônimos e metônimos.11 A forma gramatical de cada palavra também deve ser notada.

As palavras devem ser compreendidas literalmente, exceto quando o verso ou o contexto imediato indica que um significado figurativo está envolvido.12 Um significado figurativo, ou não-literal, ocorre em metáforas, personificações, expressões idiomáticas, hipérboles, eufemismos e símbolos. Geralmente, os símbolos são explicados pelo mesmo escritor inspirado que os usa ou por outros autores bíblicos. Além disso, é o contexto que decide se uma palavra deve ser interpretada literal ou figurativamente.

(d) Símbolos apocalípticos – Quando se estuda a profecia apocalíptica mais um passo deve ser dado. Tendo empregado todos os passos exegéticos já mencionados, então, e só então, estamos prontos para identificar cuidadosamente os símbolos do texto com realidades e desenvolvimentos históricos. Os atalhos podem levar a falsas identificações e falsa emoção, que no final somente prejudica a igreja.

Passo sete: efetuar a análise teológica

Passagem. Lucas relata o discurso programático de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lucas 4:14 a 27). O tema da libertação, em que Jesus inclui os pagãos, parece ser enfatizado por Lucas. Mais do que outros evangelistas, ele mostra que Jesus cuida e liberta todos aqueles socialmente marginalizados pela sociedade, tais como mulheres, publicanos e mesmo gentios.

Ao menos até certo ponto, Jesus desenvolve uma teologia de casamento (Mateus 19:1 a 12) e edifica-a sobre Gênesis 1 e 2.

Passo exegético. Os seguintes problemas e questões são tratados na análise teológica: Que assuntos e temas teológicos são discutidos no texto bíblico que está sendo estudado? Como são eles desenvolvidos? Onde estão eles dentro do contexto de todo o livro? Como eles se relacionam com a mensagem global das Escrituras?

“Aqui é onde o princípio de comparar passagem com passagem é tão importante. Uma variedade de temas teológicos – tais como Deus, o homem, a criação, a queda, o pecado, a aliança, o sábado, a lei, os remanescentes, a salvação, o santuário, a escatologia, etc. – podem ser encontrados ao longo do Antigo e Novo Testamentos. E a teologia de uma passagem específica deve estar em harmonia com a teologia da Escritura como um todo. Na Escritura vemos que as mensagens teológicas dos escritores do Novo Testamento pressupõem, edificam sobre, e estão em continuidade com os grandes temas teológicos do Antigo Testamento”.13

Os temas teológicos podem ser expressos por meio da tipologia na sequência predição-cumprimento, bem como na descrição da história da salvação. Por exemplo, uma parte importante do Sermão da Montanha focaliza a lei. O termo “lei” é primeiramente introduzido em Mateus 5:17, e encontrado pela última vez em Mateus 7:12. Estes dois versos formam as declarações introdutórias e conclusivas desse sermão. No entanto, toda a passagem subsequente a Mateus 7:12 parece ter como enfoque o fazer a vontade de Deus; em outras palavras, a obediência a Deus e a Jesus são fundamentais. Construindo sobre o Antigo Testamento, Jesus discute o Decálogo e outras leis e mostra suas implicações de vasto alcance.

Passo oito: aplicar o texto

Passagem. Em 1Coríntios 10:6 e 11, Paulo enfatiza duas vezes a história de Israel como exemplo para a Igreja do Novo Testamento. Entre essas duas declarações, ele adverte contra a idolatria, fornicação, presunção e murmuração contra Deus, usando relatos históricos que tratam do povo da aliança de Deus do Antigo Testamento.

Em Hebreus 11, os heróis da fé são apresentados. Em Hebreus 12:1 e 2, o escritor tira uma conclusão: “Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus…” Sobre esta base torna-se importante aplicar o texto aos ouvintes dos dias de hoje.

A passagem também personaliza os textos bíblicos. O que Deus fez pela geração do êxodo se aplica igualmente às últimas gerações. Elas ainda participam de suas ações salvíficas (Deuteronômio 5:2 a 4). Semelhantemente, o crente cristão já participa da morte, ressurreição e ascensão de Cristo aqui e agora (Gálatas 3:29; Efésios 2:6).

Passo exegético. Somente depois de um texto ser devidamente compreendido em sua situação original podemos mudar-nos para sua aplicação. A aplicação é extremamente importante. Se omitida, os ouvintes ou leitores podem ter a impressão de que estamos tratando apenas de história. Se, porém, o texto é aplicado muito rapidamente, a passagem é facilmente mal interpretada e a exposição permanece superficial. O processo de aplicar o texto bíblico mostra que o texto é relevante para nós hoje. Várias considerações nos ajudam a chegar a pontos de vista corretos.

(1) Personalizando o texto. Já temos salientado que a humanidade ao longo da história partilha de experiências semelhantes, uma disposição psicológica similar, e mesmo alguns valores morais comuns.

Sendo que os crentes participam da história da salvação e nela são incorporados, os textos bíblicos se dirigem hoje a eles em nível pessoal e como um grupo. Portanto, no que se refere à aplicação de textos bíblicos, temos de fazer indagações pessoais como as seguintes: O que Deus quer me dizer hoje com esta passagem? Como ela afeta minha devoção e meu compromisso com Ele, minha vida espiritual, minhas ideias sobre o caráter de Deus e sobre seu plano para nós, minhas ações e minha obediência? Como posso responder à Sua mensagem? Pelo louvor e ação de graças, petição e intercessão, ou mudando minha vida e reorientando meu sistema de valores?

Os textos bíblicos não são dirigidos apenas a indivíduos, mas também à igreja. Portanto, temos de perguntar: Como o respectivo texto bíblico nos afeta como Igreja? Em que áreas da vida de nossa Igreja as Escrituras nos desafiam? Como o texto nos educa e no ensina, nos conforta e nos anima?

(2) Aplicando diferentes tipos de textos. O que o texto significava no passado é basicamente o mesmo que o texto significa hoje, demonstrando que as Escrituras são transculturais e transtemporais. Mas ainda temos de lutar com a questão de permanência ou continuidade. Que partes das Escrituras são permanentes, mesmo em detalhes, e quais contêm apenas um princípio permanente? Além disso, que critérios podem nos ajudar a determinar este problema? (Veja o capítulo 16 – Interpretando e aplicando a ética bíblica). Um exame mais cuidadoso das diferentes espécies de textos bíblicos pode ser útil.

(a) Passagens que tratam de doutrinas bíblicas – As Escrituras contêm passagens e capítulos que apresentam doutrinas bíblicas. Gênesis 1 e 2 retrata o Criador e a criação. Em Mateus 24, Jesus ensina seus seguidores acerca de sua segunda vinda. Em Romanos, Paulo explica a justiça por meio da graça pela fé, e, em 1Coríntios 15, ele explica detalhadamente a doutrina da ressurreição.

As doutrinas bíblicas independem de tempo e cultura. Um ensino bíblico pode não ser compreendido plenamente por uma geração específica, mas a doutrina bíblica da segunda vinda de Cristo, por exemplo, não é verdadeira hoje e falsa amanhã. Até certo ponto, as doutrinas bíblicas podem ser expressas em termos culturais – Hebreus 1 apresenta Jesus como Rei, e o restante do livro o apresenta como sumo sacerdote – mas ainda hoje compreendemos que um rei é o supremo dominador e o sacerdote é um mediador.

Dessa forma, não há nenhuma diferença no que o texto significava e o que ele significa, no que tange a doutrinas bíblicas. Personalizando essas doutrinas, alguém pode indagar: O que significa para mim a segunda vinda? Como a esperança de uma futura ressurreição ilumina minha vida? Como a doutrina da criação afeta a mim e a minha igreja? A aplicação aponta para a relevância das doutrinas bíblicas, mas não as muda. Mostra a relação da doutrina com Cristo, realça sua expressividade e retrata os benefícios relacionados.

(b) Passagens e promessas proféticas – Um quadro similar surge em relação à profecia, às promessas e predições bíblicas. Isaías 53 descreve o servo sofredor de Deus, os Salmos 2 e 110 apontam para o Messias. Daniel 2 e 7 retratam a história do mundo desde os dias de Daniel até à consumação final e não estão limitados por tempo e cultura.

Além disso, devemos distinguir se as predições são dirigidas a um certo indivíduo ou grupo ou a toda a humanidade. As primeiras não podem ser aplicadas diretamente a nós hoje, as últimas devem ser. Quando Jesus anuncia a negação de Pedro e a possibilidade de sua subsequente conversão (Lucas 22:32 e 34), não se dirige a nós, embora indiretamente sejamos advertidos a não seguir o exemplo de Pedro. Por outro lado, quando Jesus promete vida eterna àqueles que creem nele (João 3:36), nós somos incluídos.

As promessas universalmente formuladas devem ser estudadas no contexto imediato, bem como no contexto global das Escrituras, e a congregação deve ser encorajada a aceitá-las e experimentar seu cumprimento. A aplicação de profecias gerais pode apontar para a soberania de Deus. Como o Senhor da história, ele é também o Senhor de nossas vidas, levando avante sua vontade e seu plano de salvação.

(c) Passagens contendo narrativas – As Escrituras contêm muitas partes de narrativas. Como estas devem ser aplicadas?

O princípio básico subjacente a uma narrativa precisa ser desvendado e aplicado ao leitor contemporâneo. Às vezes, os relatos não podem ser reduzidos a apenas um princípio e podem ser vistos de diferentes perspectivas que se complementam.

Os personagens das narrativas bíblicas podem funcionar como exemplos para as gerações posteriores. Também podem exibir peculiaridades que não devem ser imitadas. Contudo, o leitor pode extrair lições pessoais da narrativa, mesmo que seja apenas como não agir. Em uma narrativa que aponta para a falta de confiança em Deus, a aplicação poderia elaborar o que significa confiar hoje em Deus e como desenvolver essa confiança.

(d) Passagens sapienciais – A literatura sapiencial é encontrada no Antigo Testamento, por exemplo, nos livros de Provérbios e Eclesiastes. Como devemos lidar com elas? “Declaram os provérbios verdades que inexoravelmente se realizam sem nenhuma exceção? Ou eles declaram princípios gerais para os quais há às vezes exceções? Em muitos casos, as afirmações proverbiais refletem o que é típico ou normal sem sugerir ou inferir que nunca há exceções”.14 Por exemplo, Provérbios 14:11 declara que “a casa dos ímpios é destruída, mas a tenda dos retos floresce” (NRSV), o que é muitas vezes verdade. Todavia, às vezes os crentes ficam perplexos quando veem “a prosperidade dos perversos” (Salmos 73:3). Com certeza, há uma dimensão futura em que esta declaração se cumprirá. De fato, as bênçãos do Antigo Testamento “são geralmente mais de natureza espiritual e reservada primariamente para o futuro” no Novo Testamento.15

Muitos dizeres proverbiais são tão claros e fazem tanto sentido, independentemente de cultura e tempo, que sua aplicação será mais ou menos uma elaboração do que já é dito.

(e) Passagens contendo mandamentos – O verdadeiro desafio vem quando as passagens contêm mandamentos. São todos os mandamentos divinos encontrados na Bíblia permanentes, ou não? Como podemos distinguir entre mandamentos permanentes e limitados? Como abordamos os mandamentos que não são mais válidos? Como aplicaremos os mandamentos permanentes?

Felizmente, as Escrituras nos dizem que alguns mandamentos ou leis não são de natureza permanente. As leis sacrificiais e cerimoniais que apontavam para Jesus foram cumpridas quando Jesus, como o Cordeiro de Deus, morreu na cruz em lugar dos pecadores. O tipo alcançou seu cumprimento em Jesus, o Antítipo (Hebreus 10:1 a 8). Igualmente, a vigência das leis teocráticas e civis do Antigo Testamento chegaram ao fim quando findou a teocracia. O próprio Antigo Testamento já indicava suas limitações. Algumas leis foram meramente concessões temporárias à dureza de coração dos israelitas, mas não refletiam o ideal de Deus, por exemplo, os regulamentos sobre o divórcio em Deuteronômio 24:1 a 4. Em seu Sermão da Montanha, Jesus enfatizou a indissolubilidade do matrimônio (Mateus 5:31 e 32), e em Mateus 19:1 a 12 e Marcos 10:1 a 12, ele afirmou que o ideal divino foi apresentado em Gênesis 1 a 3 e aludiu a isto. A concessão é substituída pela vontade original de Deus.

O Novo Testamento ensina claramente que os dez mandamentos ainda são válidos (Mateus 5:21 a 32; Tiago 2:8 a 13) e que certos rituais cristãos, tais como batismo, lava-pés, e a Ceia do Senhor, não podem ser mudados ou substituídos por outras formas, porque estão “arraigados no exemplo e mandamento explícito de Jesus”.16

(3) Deliberações adicionais. Há três questões propostas que são úteis quando nos movemos de um texto para sua aplicação.17 A seguinte pergunta é especialmente importante para nossa discussão: “Que diferenças isto faz?”18 Esta pergunta centraliza-se na aplicação. No que se refere à aplicação de uma passagem bíblica, a presente audiência defronta com as boas novas e com os desafios do texto.

A aplicação do texto não nos dá liberdade de utilizar o texto apenas como um trampolim para nossas próprias ideias e brinquedos de criança. A aplicação deve estar em harmonia com o objetivo e a intenção do texto. Mas aqui devemos nos tornar muito práticos e específicos. Exemplos contemporâneos e problemas atuais não devem ser usados para provar a mensagem da Palavra de Deus. O expositor deve mostrar a relevância das Escrituras para a presente geração. A fim de ser capaz de fazer isto, ele deve conhecer (1) a Palavra de Deus, (2) a igreja, e (3) a sociedade dos dias atuais.

A parábola do rico insensato (Lucas 12:16 a 21) pode ser sintetizada e aplicada do modo seguinte: o dinheiro não nos salva. Portanto, não devemos viver para o dinheiro, mas para Deus. A passagem nos desafia hoje a corrigir nossas prioridades, não confiar nas posses materiais nem viver para elas, mas pertencer a Deus e ser parte de sua missão ao mundo. A aplicação desenvolve este objetivo essencial.

Passo nono: usar recursos

Passagem. Os autores bíblicos não somente conheciam os livros de seus predecessores, alguns estavam familiarizados com a literatura não-bíblica e a usavam para ilustração quando proclamavam o evangelho. Já mencionamos Paulo, que se refere a poetas gregos (Atos 17:28) e a um profeta cretense (Tito 1:12). A literatura não-canônica era conhecida, e alguma parece recomendada indiretamente para leitura (2Crônicas 9:29). Contudo, parece que a literatura pagã e apocalíptica servia apenas como um meio para ilustrar a mensagem do autor bíblico, não para interpretá-la.

Passo exegético. Recursos materiais devem ser usados. Eles podem ser especialmente úteis para prover informação de fundo histórico, exegético e teológico. Todavia, os comentários devem ser usados apenas depois de terem sido analisados intensamente o texto e seu contexto. Quase toda literatura secundária transmite elementos de construção puramente humana e deve ser manuseado com uma certa reserva.

A literatura de Ellen G. White é de especial importância. Com frequência ela fornece ideias valiosas; em outras ocasiões, ela silencia sobre textos ou problemas específicos. Em qualquer caso, os adventistas teriam necessidade de verificar o que esses escritos têm a dizer-nos sobre uma passagem específica. Frequentemente, Ellen White usava textos bíblicos de maneira semelhante para ilustrações. Poderíamos dar a isto o nome de uso homilético das Escrituras. Às vezes, ela interpreta passagens; com mais frequência, porém, temas bíblicos. Contudo, nem mesmo seus escritos inspirados devem ser utilizados como um atalho, substituindo a exegese adequada de um texto.

As concordâncias são a exceção à regra. Elas já podem ser usadas quando o vocabulário e temas teológicos são investigados. Aqueles que imediatamente começam a ler literatura secundária para ver como outros compreendem um certo texto ou para obter informação sobre o antecedente histórico de uma passagem muitas vezes evitam estudar seriamente as Escrituras por si mesmos. Conquanto os resultados possam vir mais rapidamente, a compreensão permanece superficial, e o significado do texto não se torna parte da vida deles. Eles não têm lutado com o texto e não têm ganho uma gema dele. O outro perigo é que eles não estão mais prontos a dar outra olhada no texto, mas o abordam com um preconceito ou uma agenda.

Mesmo quando a literatura secundária está correta em suas conclusões e interpretação, pode não estar presente o objetivo completo do que o texto quer comunicar. Devemos estudar por nós mesmos. Por outro lado, a literatura secundária pode desafiar nossas conclusões e avivar nossa percepção. Se insistirmos que nossa interpretação é correta, a despeito da opinião de outros, devemos certificar-nos de que ela é biblicamente defensável.

Outro importante recurso é a comunidade de crentes. Se encontrarmos novas ideias e interpretação que diferem da interpretação aceita, é importante testar com os outros, especialmente com aqueles que têm perícia em interpretar as Escrituras. Além disso, devemos estar dispostos a abandonar nossa interpretação ou opiniões acariciadas se outros nos mostram que nossas interpretações são questionáveis. Muito dano tem sido feito à Igreja por aqueles que defendem pontos de vista indefensáveis e creem que estão certos enquanto que todos os outros estão errados. Uma pessoa sábia dá ouvidos aos conselhos (Provérbios 12:15). É raro que Deus revele novos conhecimentos das Escrituras a apenas um indivíduo.

Referências

  1. Por exemplo, tomar a esposa do próximo é mais ou menos inaceitável em uma escala universal. As experiências de sofrimento, enfermidade, rejeição e morte são familiares a quase todos os seres humanos. O desejo de ser aceito, de ser amado, usufruir amizade e interação social é comum a todos nós. Veja também a hierarquia de necessidades de Maslow, em Contemporary Christian Communications: Its Theory and Practice, de James F. Engel (Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1979), p. 112-114.
  2. Veja, por exemplo, Mateus 5:17 a 48; Mateus 24:20; e Êxodo 20.
  3. Veja especialmente o artigo de Richard M. Davidson, “Biblical Interpretation”, em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. por Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), 58-104.
  4. The Clear Word Bible, de Jack Blanco, é uma paráfrase muito livre, que se aproxima de uma descrição oral.
  1. Gerhard Pfandl, The Authority and Interpretation of Scripture (Wahroonga, Austrália: South Pacific Division of Seventh-day Adventists, n.d.), p. 9.
  2. Assim, a primeira letra do alfabeto hebraico é encontrada no próprio início do verso 1, ao passo que a segunda letra é usada no começo do verso 2, etc. Em Salmos 119, a primeira letra do alfabeto é usada como a primeira letra dos versos 1 a 8. Os próximos oito versos usam a segunda letra do alfabeto hebraico, etc.
  3. A lei casuística normalmente emprega a expressão “Se alguém…”, enquanto que a lei apodíctica usa “tu deves”, ou “qualquer que”, ou começa com uma maldição.
  4. Cf. Ekkehardt Müller, “Microstructural Analysis of Revelation 20”, Andrews University Seminary Studies 37 (1999), 235-236.
  5. Davidson, p. 72-74, faz várias sugestões sobre como lidar com “aparentes discrepâncias em relatos bíblicos paralelos”. “Reconhecer os diferentes propósitos nos diferentes escritores… Reconhecer que cada escritor pode estar relatando as partes do incidente que devem ser combinadas com outros relatos para formar um todo… Reconhecer que a confiabilidade histórica não requer que os diferentes relatos sejam idênticos… Reconhecer que as convenções aceitas para escrever história eram diferentes no primeiro século… Reconhecer que alguns milagres e afirmações semelhantes de Jesus relatadas nos Evangelhos paralelos podem ter ocorrido em épocas diferentes… Reconhecer que há na Escritura alguns minúsculos erros de transcrição… Reconhecer que, às vezes, pode ser necessário suspender o julgamento sobre algumas aparentes discrepâncias até que mais informação esteja disponível”.
  6. C. T. Fritsch, “Principles of Biblical Typology”, Bibliotheca Sacra 104 (1947): 214.
  7. Metônimos são termos que substituem outros termos. Em Romanos 3:30, “os circuncisos” e “os incircuncisos” representam judeus e gentios.
  8. Isto pode ser diferente com muita frequência no livro de Apocalipse em que o texto grego do capítulo 1, verso 1, pode apontar para uma abordagem mais simbólica. Significados figurativos ou não-literais ocorrem frequentemente em metáforas, tais como a palavra de Deus como fogo e martelo (Jeremias 23:29).
  9. Pfandl, p. 13.
  10. Robert B. Chisholm, Jr., From Exegesis to Exposition: A Practical Guide to Using Biblical Hebrew (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1998), p. 258.Veja também o Capítulo 10 “Lendo os Salmos e a Literatura Sapiencial”.
  11. Ibid.
  12. Davidson, p. 86.
  13. Haddon W. Robinson, Biblical Preaching: The Development and Delivery of Expository Messages (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1980), p. 79-96.
  14. As outras perguntas são “O que isto significa?” e “Isto é verdade?” Segundo Robinson, a primeira pergunta não apenas focaliza os passos exegéticos já mencionados. Lida com a passagem e a audiência. Centraliza-se na explanação. O que a audiência precisa ter explicado? Como as pessoas que frequentam minha igreja reagem a isto? Elas a compreenderiam, e como a compreenderiam? A segunda pergunta centraliza-se na validade. “Não obstante, a aceitação psicológica raramente vem por apenas citar as Escrituras; deve também ser ganha por meio da argumentação, provas, e ilustrações. Mesmo os escritores inspirados… estabeleciam validade não apenas do Antigo Testamento, mas também da vida comum”. Ibid., p. 83-84. Robinson cita e explica 1Coríntios 9:6 a 12, a fim de mostrar que os autores bíblicos usavam esse princípio. Este segundo ponto não questiona o princípio sola scriptura, as Escrituras como o final e mais elevado teste da verdade. Aponta para o fato de que a audiência é ajudada pela apresentação de evidência adicional que apoia as Escrituras. “Isto não quer dizer que estabelecemos a verdade bíblica pelo estudo da sociologia, astronomia, ou arqueologia, mas que os dados válidos destas ciências apoiam a verdade ensinada na Escritura” (Ibid., p. 86).

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Ekkehardt Müller, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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INTERPRETAÇÃO INTERBÍBLICA: LENDO AS ESCRITURAS INTERTEXTUALMENTE

Introdução

Uma leitura intertextual da Bíblia é a ciência e a arte de fazer associações e conexões entre textos no interior do cânon bíblico. Os discursos de Jesus nos evangelhos e todos os outros livros do Novo Testamento fazem referência ao Antigo Testamento.

Bem mais de duzentas citações diretas do Antigo Testamento são identificadas por fórmulas introdutórias do Novo Testamento,1 além de numerosas alusões. Os paralelismos entre as passagens bíblicas revelam que a interpretação interbíblica ou intertextual é parte do próprio feitio das Escrituras. A compreensão plena do propósito global de Deus está mais prontamente ao alcance quando é considerado este aspecto da interpretação bíblica.

Como passagem interpreta passagem no cenário do Antigo Testamento? Como Jesus interpreta o Antigo Testamento? Finalmente, como os escritores do Novo Testamento interpretam o Antigo Testamento? Este capítulo objetiva responder a estas perguntas.

Trataremos de assuntos relacionados com a legitimidade da interpretação e o uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. Tal estudo também nos ajuda a medir as prerrogativas, possibilidades e limites do intérprete contemporâneo que se engaja na interpretação interbíblica. Finalmente, sugeriremos diretrizes para que os leitores de hoje possam melhor beneficiar-se da interpretação interbíblica.

A importância da interpretação interbíblica

Definindo interpretação interbíblica

O leitor do Novo Testamento deve estar aprofundado no Antigo Testamento a fim de compreender seus vários temas. Ler a Bíblia intertextualmente é fundamental visto que “a exegese intertextual (ou interbíblica) é o engaste de fragmentos, imagens e ecos de um texto dentro de outro. Autores bíblicos posteriores demonstraram seu amor e fidelidade à sua tradição por remodelar estrategicamente um subtexto escriturístico. Muito mais do que simples citação, a exegese interbíblica representa uma forte postura profética e poética, às vezes estendendo um subtexto aos próprios limites de seu possível horizonte de significado”.2

A interpretação interbíblica é muito importante para habilitar-nos a compreender a unidade orgânica de toda a Bíblia, e a interpretar corretamente suas várias seções.

A matéria de estudo do Novo Testamento é moldada em diálogo com o Antigo Testamento. O Novo Testamento, por sua vez, também é moldado por diálogo com o judaísmo do primeiro século. Isto é óbvio do próprio Novo Testamento, no qual são registrados os numerosos conflitos entre Jesus e seus discípulos com as várias escolas judaicas de pensamento.

Além disso, o exame do material do Novo Testamento revela que muitas das palavras teologicamente significativas do Novo Testamento estão enraizadas no Antigo Testamento. Palavras conhecidas tais como “Jesus”, “Cristo”, “evangelho”, “aliança”, “salvação”, “templo”, “sacerdote”, “expiação”, “justificação”, ou mesmo palavras hebraicas tais como “amém” e “aleluia”, exigem uma consideração de sua base vétero-testamental. As genealogias do Novo Testamento são indisputáveis convites ao leitor para considerar os antecedentes vétero-testamentais do Novo Testamento. Ademais, essas genealogias são em si mesmas exemplos de interpretação interbíblica. A seleção de nomes nos evangelhos de Mateus e de Lucas são interpretações de material do Antigo Testamento. Elas testificam que Deus está dirigindo a história para sua pretendida finalidade.

Legitimação da interpretação interbíblica

Há vários motivos possíveis por que duas ou mais passagens das Escrituras se relacionam entre si e, desse modo, legitimam a interpretação interbíblica.

Os escritores ou personagens bíblicos podem partilhar da mesma fonte de palavras, quadro de palavras, imagens, metáforas, temas, ou teologia. Às vezes, porém, as palavras ou expressões de um personagem bíblico ou de um escritor bíblico em citações, em alusões diretas ou indiretas, quer seja intencional ou não, podem revelar sua interpretação e compreensão de outra passagem bíblica. Neste caso, não apenas está em jogo a intertextualidade em geral, mas a interpretação interbíblica.

A interpretação interbíblica vai muito além de uma mera menção de textos. Realmente, ela pode ocorrer na forma de uma citação palavra-por-palavra de uma passagem bíblica. Também pode ser uma aproximada, mas ainda óbvia referência a um texto bíblico, ou pode ocorrer na forma de um arranjo de palavras rememorativo de um texto anterior, um artifício estilístico ou feição literária ligando dois ou mais textos bíblicos. Uma maneira de argumentação pode também mostrar problemas subjacentes de duas ou mais passagens bíblicas. Adicionalmente, o litígio da aliança profética liga vários discursos que podem ser encontrados no Antigo e no Novo Testamento (isto é, o discurso de Estêvão em Atos 7 ou as cartas às sete igrejas, ecoando as acusações proféticas contra o povo de Deus). A interpretação interbíblica era parte da prática hermenêutica do primeiro século. Jesus a legitimou; o Espírito Santo a sugeriu.

Exegese rabínica. Muitos eruditos do Novo Testamento admitem que os métodos judaicos de interpretação influenciaram os escritores do Novo Testamento.3 A intertextualidade era uma prática rabínica comum. A maneira pela qual o judaísmo rabínico desenvolveu as regras (middôt) para a interpretação das Escrituras testifica da importância da interpretação interbíblica no ambiente do Antigo Testamento. Muitas dessas regras focalizam a ligação de textos entre si a fim de compreender o seu significado. Os rabis ligavam versos das Escrituras uns com os outros baseados na admissão de que a Palavra de Deus deve ser “vista como um todo; a verdade para a qual apontam suas partes constituintes é a mesma verdade coerente”.4 A interpretação interbíblica foi, portanto, parte do ambiente religioso e cultural dos escritores do Novo Testamento. Contudo, razões mais profundas impeliram os escritores do Novo Testamento a citar extensamente e aludir ao Antigo Testamento.

O exemplo de Jesus. O mais notável entre os intérpretes neotestamentais do Antigo Testamento é o próprio Jesus. No mesmo dia da sua ressurreição, a utilização de Jesus do Antigo Testamento para validar o seu ministério confirmou a prática de relacionar o Antigo Testamento com a sua vida e os seus ensinamentos. Censurando seus discípulos, “então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lucas 24:25 a 27). Neste exemplo, a hermenêutica de Jesus envolvia discorrer sobre o Antigo Testamento para realçar os fatos concernentes à sua pessoa.

No mais famoso de todos os seus discursos, o Sermão da Montanha, Jesus se refere constantemente ao Antigo Testamento. O tema principal da pregação e ensino de Jesus, o reino de Deus, bem como suas famosas antíteses, são incompreensíveis sem a base do Antigo Testamento. O discurso está pontilhado pela fórmula “Ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo… “ (Mateus 5:21 e 22, 27 e 28, 31 e 32, 38 e 39, 43 e 44). Claramente, estes dispositivos de ligação são designados para engajar a audiência ou o leitor em um diálogo com a revelação do Antigo Testamento.

A direção do Espírito Santo. Os escritores do Novo Testamento acreditavam firmemente que o intérprete primário das Escrituras – o Espírito Santos – os supervisionava e dirigia. Jesus disse aos seus discípulos que, depois da sua ascensão, o Espírito Santo os guiaria a toda a verdade (João 16:13). O Espírito Santo não somente interpreta eventos passados, ele fala das coisas por vir. Mais fundamentalmente, Ele interpretará Jesus (João 16:14). Como Jesus abriu os olhos de seus discípulos no caminho de Emaús, o Pai enviaria o Espírito Santo em nome de Jesus a fim de ensinar seus seguidores e trazer-lhes à memória as palavras de Jesus (João 14:26). Os escritores do Novo Testamento acreditavam que o Espírito Santo era o iniciador das Escrituras (2Timóteo 3:16) e que o Espírito de Cristo operava nos profetas (1Pedro 1:11). Estavam convictos de que “nenhuma profecia das Escrituras provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:20 e 21).

Fundamentos para uma interpretação intertextual das Escrituras

Desde o próprio início da Bíblia encontramos textos que se referem ou se ligam a outros textos. Gênesis 1 e 2 relatam a mesma história da criação, mas de ângulos diferentes. Cada relato responde a diferentes perguntas. Do Gênesis ao Apocalipse, a Bíblia nos convida a entrar em um diálogo dinâmico, uma associação de ideias a partir da qual surge a expressão da vontade de Deus para a humanidade. As histórias dos patriarcas partilham uma linha comum – a bênção que Deus pretende conceder a todos os seres humanos por meio de Abraão e seus descendentes. O pacto sinaítico entre Deus e Israel informa os encontros subsequentes entre Deus, seu povo escolhido, e as nações. Ao longo das Escrituras, a lei (Torah) mede a fidelidade do povo de Deus à aliança. Repetidamente, os livros proféticos se referem aos primeiros livros da Bíblia que expõem os fundamentos da aliança.

Os profetas e seu uso da Torah

A linguagem dos profetas pressupõe a realidade da aliança entre Deus e seu povo Israel. Os próprios profetas foram enviados como mediadores da aliança. Levar o povo de Deus à conformidade com a Torah era sua principal preocupação.

De várias maneiras os escritores bíblicos mencionam o Pentateuco. Profetas como Amós e Oseias usam nomes patriarcais a fim de ilustrar a condição de seus contemporâneos, esperando estimulá-los a viver à altura de sua vocação como descendentes dos patriarcas.

Nos escritos proféticos, o nome Jacó é usado paralelamente ao nome Israel para se referir ou ao Reino do Norte (Amós 3:13; Amós 7:1 a 8) ou a ambos os reinos em conjunto. O tratamento de “Jacó”, porém, vai além de um mero referencial; está impregnado de implicações teológicas. Amós emprega o nome Jacó em um contexto de julgamento. Provavelmente isto visava lembrar aos israelitas a situação precária de Jacó em um tempo de dificuldade e o seu desamparo na ausência da intervenção divina. A sobrevivência do patriarca é refletida pelo uso do nome Jacó em Amós 8:9, significando a continuação de Israel como um remanescente, enquanto provia um eco da promessa ao patriarca.

Oseias foi ainda mais longe no uso dos eventos da vida do patriarca para traçar paralelos com o povo de Deus no oitavo século a.C. Em Oseias 12, o profeta se refere à vida de Jacó em suas duas fases. A primeira foi caracterizada pela desconfiança em Deus, que resultou em confiança em si mesmo, os fins justificando os meios, a troca da verdade, integridade e retidão pela falsidade. A segunda foi um itinerário de fé, arrependimento e reforma. Oseias emprega ambas as fases para denunciar as condições de seus contemporâneos e então exortá-los a moldar suas vidas de acordo com a segunda fase da vida do patriarca.

Os profetas também usam localidades significativas da história de Israel para lembrar ao povo os eventos muito importantes que realçam a situação específica que eles estão vivendo. Este é o caso no uso em Oseias de nomes tais como “Jezreel” (Oseias 1:4,5, e 11), “o vale de Acor” (Oseias 2:15), “Mispa e Tabor” (Oseias 5:1), e “Gibeá” e “Ramá” (Oseias 5:8).

Preeminentes entre os textos proféticos que mostram associações com o Pentateuco são os textos messiânicos. Por exemplo, Isaías 61:1 a 3, ao proclamar “liberdade aos cativos” no “ano aceitável do Senhor”, ecoa a linguagem do Jubileu de Levítico 25:8 a 12. O ano do jubileu continha tais conceitos como “restituição da propriedade”, “a libertação dos escravos” “o cancelamento de dívidas”, e “o descanso da terra”. A conexão entre estes textos é mais adiante desenvolvida no Novo Testamento (veja Lucas 4:18).

Adicionalmente, os profetas com frequência se referem às mensagens reveladas aos seus predecessores. Daniel, por exemplo, se refere às profecias de Jeremias, concernentes à duração do exílio (Daniel 9:2). Ezequiel menciona Noé, Daniel e Jó como exemplos de homens justos (Ezequiel 14:14). Na última profecia do Antigo Testamento, Malaquias legitima os vínculos com o passado e a conexão com o futuro (Malaquias 4:5 e 6).

O trato de Deus com o seu povo e com todas as famílias da Terra é um relato contínuo ou em progresso. Por isso, os próprios profetas fazem referência e interpretam os escritos uns dos outros, lendo eventos contemporâneos à luz dos eventos passados. Essa interpretação interbíblica aparece em vários níveis.

(1) Os escritores bíblicos podem usar aspectos linguísticos para ligar vários textos.

(2) Eles também podem usar um entrelaçamento de temas para associar vários episódios da história da salvação. Partindo desta perspectiva, os temas da criação, o dilúvio, o êxodo, e a aliança são exemplos para os futuros encontros de Deus com o seu povo e com outros povos.

(3) Os profetas usavam topônimos para ilustrar os problemas reais que eles desejavam para atrair a atenção do povo. Em Oseias, Jezreel e Gibeá são exemplos de tais artifícios. Os escritores bíblicos também usavam nomes patriarcais para descrever a situação do povo de Deus em seu tempo. Tal é o caso com os nomes Jacó, José e Efraim em Amós e em Oseias.

De fato, todo o Antigo Testamento é um mundo em conversação. Textos se referem a outros textos, episódios a outros episódios. O leitor entra em um mundo de encontros entre Deus e suas criaturas, uma história desdobrada cujos temas principais são a revelação de Deus e a redenção da humanidade. Relatos de seres humanos, sejam “sucessos” ou “fracassos” são contados como eles são. Além disso, o leitor das Escrituras é convidado a seguir as linhas do relato e testemunhar surpreendentes transformações. Por exemplo, como o vale de Acor, o cenário da tragédia de Acã em Josué 7:24 a 26, torna-se um lugar de repouso (Isaías 65:10) e até mesmo uma porta de esperança em Oseias 2:15? Interrogações desta espécie convidam o leitor a considerar como as várias partes das Escrituras se relacionam umas com as outras em vários níveis.

Ademais, a mudança de profecia clássica para profecia apocalíptica (no princípio, durante e depois do exílio, e mesmo nos escritos do Novo Testamento) abre perspectivas fascinantes para a compreensão da revelação bíblica.

Além das profecias que ligam o passado ao presente ou futuro, encontramos uma interligação de povos, eventos, temas e histórias. Convida-nos a considerar a intertextualidade bíblica, com sua característica singular de ser parte de um cânon, presidido e inspirado pelo Espírito Santo (2Timóteo 3:16).

A interligação de povos, eventos e instituições introduz a tipologia como uma importante chave hermenêutica para o Antigo Testamento, para Jesus e para os escritores do Novo Testamento.

A tipologia como uma chave hermenêutica

A tipologia desempenha uma importante função no uso do Antigo Testamento por Jesus e pelos escritores do Novo Testamento. A palavra tipo deriva do verbo typtō (desferir, imprimir em). Significa a marca de um golpe, a impressão ou estampa deixada por uma batida, a estampa feita por um dado, a forma, o modelo, o exemplo, o padrão ou protótipo. O uso da tipologia mostra a correspondência e a continuidade entre os dois testamentos. A relação entre um tipo e um antítipo envolve uma correspondência entre um elemento e o seu correlativo, que é mais do que uma semelhança. Os tipos têm realidade histórica, eles podem ser produtivos. O antítipo geralmente é maior do que o tipo. A tipologia não é acidental; é designada por Deus para mostrar a unidade de linguagem e de pensamento ao longo da história da salvação.

Com base no fato de que a tipologia é histórica e envolve uma real correspondência, a seguinte definição é apropriada: “Um tipo é um evento bíblico, pessoa ou instituição que serve como exemplo ou modelo para outros eventos, pessoas ou instituições; tipologia é o estudo de tipos e as correspondências históricas e teológicas entre eles; a base da tipologia é a coerente atividade de Deus na história do seu povo escolhido.”6 A presença de correspondências entre eventos bíblicos, povos ou instituições coloca diante do intérprete o fenômeno da intertextualidade e exegese interbíblica. A leitura da Bíblia intertextualmente contém um elemento tipológico inerente.

Jesus, o centro da interpretação interbíblica

Como Jesus interpretava o Antigo Testamento? Como ele e os escritores do Novo Testamento compreendiam a relação de Jesus com o Antigo Testamento? Um texto-chave pode ser esclarecedor.

Jesus: o cumprimento das promessas. A ideia de cumprimento é o elemento-chave na leitura dos evangelhos.

No contexto de Mateus 5:17 e 18, Jesus declara inequivocamente: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.  Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra.” O “cumprir” neste contexto tem sido entendido de várias maneiras: “encher”, “expandir”, “completar”; não, obviamente, “levar a um fim”.

Sendo que o contexto de uma passagem – em particular o entrelaçamento dos temas que estão “tecidos juntamente” – é determinante na interpretação de uma palavra, o que o contexto imediato de Mateus 5 transmite no que concerne à palavra “cumprir”?

O contexto é um debate concernente à justiça dos fariseus versus a justiça dos seguidores de Jesus. Ele especifica aos seus ouvintes: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mateus 5:20). Ele então prossegue para ilustrar o que quer dizer, mostrando a profundidade do que foi revelado na lei. Jesus cumpre a lei. Ele a confirma restaurando-a ao seu pretendido escopo.

A implicação da declaração de Jesus relatada por Mateus é a de que o Antigo Testamento não é anulado pelo Novo Testamento. Isto é mais adiante corroborado nas declarações de Jesus que têm por fim defender a Palavra de Deus acima das tradições humanas. À interpelação dos fariseus e escribas: “Por que não andam os teus discípulos de conformidade com a tradição dos anciãos, mas comem com as mãos por lavar?” Jesus responde que eles (os fariseus) negligenciam o mandamento de Deus pela tradição dos homens (Marcos 7:8). Diz-lhes que eles rejeitam o preceito de Deus para guardar a sua tradição (Marcos 7:9). Ele contrasta o que Moisés disse com a interpretação dos fariseus e escribas, acusando-os de “invalidar a palavra de Deus” e exaltar em seu lugar a tradição deles (Marcos 7:13).

Embora não anulando a lei, Jesus mostra uma liberdade que revela sua soberania. Não apenas ele usa expressões com uma dignidade sem precedentes, tais como: “Ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo” (Mateus 5:21 e 22), mas seus ouvintes “maravilharam-se da sua doutrina, porque os ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Marcos 1:22).

De fato, Jesus não era simplesmente “um repetidor” como era chamado o escriba do primeiro século, um tannâ. Além dos textos do Antigo Testamento, ele não cita nem se refere a outra autoridade. Ele se tornou a referência. Ele pode se referir ao que Moisés permitia no que concerne ao divórcio como não sendo a vontade absoluta de Deus, mas antes um mandamento dado por causa da “dureza do coração” de seus receptores (Marcos 10:5). Sua interpretação, embora em conformidade com a prática do Antigo Testamento, é, contudo, singular, principalmente por causa do que ele era, a Palavra de Deus em carne humana.

Além disso, a questão de cumprimento não pode estar limitada à ideia da analogia, nem mesmo para uma consideração em profundidade do escopo intencional da lei, nem para a interpretação subsequente dos profetas aos seus contemporâneos. Existem promessas específicas ao longo da história da salvação as quais Deus se incumbiu de cumprir. As promessas de Deus a Abraão (Gênesis 12:1 a 3), a Davi (2Samuel 7:12 e 13), e a Arão (Jeremias 33:18) não foram esquecidas. Elas constituem o fundamento da interpretação da identidade de Jesus e de sua missão. Essas promessas encontram seu “fim” em Cristo, usando a terminologia do apóstolo Paulo. O Novo Testamento, portanto, está construído sobre o fundamento do Antigo Testamento. O Novo Testamento revela a profundidade e a extensão da vontade divina no Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, o Novo Testamento sobrepuja o Antigo Testamento e alcança as alturas da suprema revelação de Deus em Jesus Cristo. O que vem com Cristo é muito maior do que o que era esperado.

Jesus recapitula a história da humanidade, em geral, e a história do povo de Deus, Israel, em particular. Jesus Cristo é o Filho de Davi e o Filho de Abraão. Ele incorpora o destino de Israel. Os eventos essenciais da história de Israel se aglutinam na história de Jesus. Mateus deliberadamente apresenta Jesus como o cumprimento do destino e da missão de Israel. As numerosas citações e alusões aos eventos e ao povo do Antigo Testamento nesse evangelho, prefaciado com fórmulas introdutórias, enfatizavam essa crença. Exemplos de Mateus mostrando que Jesus cumpre as palavras de Deus por meio dos profetas, são: 1 – O anúncio do anjo a José quanto ao nascimento de Jesus de uma virgem (Mateus 1:22 e 23). 2 – A viagem, permanência e saída do Egito (Mateus 2:15). 3 – O massacre das crianças de Belém (Mateus 2:17 e 18). 4 – A vida em Nazaré (Mateus 2:23). 5 – Habitação em Cafarnaum, à beira-mar, na região de Zebulom e Naftali (Mateus 4:14 a 16). 6 – Cura do enfermo e exorcismo (Mateus 8:17). 7 – Discrição e gentileza do Servo de Yahweh (Mateus 12:15 a 21). 8 – Revelação em parábolas das coisas ocultas (Mateus 13:34 a 36). 9 – Entrada do rei em Jerusalém (Mateus 21:4 e 5). 10 – O preço da traição de Judas (Mateus 27:9 e 10).

Se estendermos o escopo do nosso estudo a todo o Novo Testamento, uma lista mais específica pode ser feita concernentemente à maneira como Jesus reviveu a história da raça humana e de Israel. Jesus é:

  1. A cabeça da nova criação (Apocalipse 3:14; 2Coríntios 5:17). Ele é aquele que vive. Ele venceu o último inimigo. Ele tem as chaves da morte e do inferno (Apocalipse 1:18).
  2. O novo Adão (Romanos 5 e 1Coríntios 15). Ele é a imagem de Deus (2Coríntios 4:4), esposo da Igreja (Efésios 5:32 e 33), em pleno domínio sobre a Terra (João 6:16 a 21), sobre o mar (Lucas 5:1 a 11; João 21), e sobre cada ser vivo (Marcos 11:12 a 14, e 20). Ele pode dar ordens ao mar, ao vento, acalmar a furiosa tempestade, e andar sobre a água.
  3. O novo Moisés (João 5:45 a 47), que é ameaçado em seu nascimento por um rei hostil (Mateus 2). Jesus outorga a lei aos seus seguidores reunidos em um monte (Mateus 5 a 7). Jesus, porém, é maior do que Moisés e considerado digno de tanto maior glória do que Moisés (Hebreus 3:1 a 6). De fato, Jesus é a nova autoridade, que pode declarar: “Amém, eu vos digo” (Mateus 5:18) ou “Ouvistes… Eu, porém, vos digo” (Mateus 5:21 e 22).
  4. O novo Josué, que dá descanso ao povo de Deus (Hebreus 4:8 e 9).
  5. O novo Israel. Jesus, o Messias, é chamado Israel (Isaías 49:1 a 5). Nesse contexto, o Servo do Senhor é claramente uma figura individual que tem a missão de levar Israel de volta a uma relação de aliança com Deus. Jesus deliberadamente escolhe doze apóstolos recordativos das doze tribos do histórico Israel bíblico. Ele ordena setenta. Ele é o Filho de Deus a quem Deus chamou do Egito. Todavia, há algo singular quanto a Ele. A libertação fundamental que o êxodo do Egito não realizou, Jesus torna possível. “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8:36). Jesus passa quarenta dias e quarenta noites no deserto (Mateus 4:2). Jesus passa pelas águas do batismo (Mateus 3:13 a 17) como fez o Israel histórico (veja 1Coríntios 10:1 e 2). O Espírito o conduz ao deserto. Jesus passa quarenta dias jejuando no deserto. As tentações se assemelham à história de Israel narrada no livro de Deuteronômio. Jesus alimenta seu povo com o pão do céu (João 6:28 a 35). Jesus, como o novo Israel, também pode ser evocado a partir de sua designação como Filho de Deus. A ressurreição de Jesus também cumpre o que foi predito em Oseias 6:2, concernentemente à ressurreição do Israel coletivo.
  6. O Filho de Davi, o eterno rei que reina sobre a casa de Jacó (Lucas 1:32 e 33). Além disso, ele é o novo Davi.
  7. O novo Isaque, o novo Salomão e o novo Eliseu. Ele é, porém, maior do que todos os patriarcas e profetas. Seus milagres vão muito além daqueles relatados no Antigo Testamento.
  8. A consolação de Israel. Ele traz esperança; Ele escapa ao morticínio instigado por Herodes (Mateus 2:16). Ele pode reverter a situação do seu povo.
  9. A nova aliança. As ações de Jesus durante o serviço de comunhão que ele realiza com seus discípulos restabelece o que Moisés fez com os filhos de Israel no Sinai (Êxodo 24:8). Ele se refere ao sangue da aliança (Mateus 26:27 e 28). Todavia, há algo mais, porque Jesus é a aliança. Mudamos do “sangue da aliança” para “meu sangue da aliança” (Mateus 26:28).
  10. O sacrifício supremo que provê expiação. Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. A linguagem da expiação (propiciação) é aplicada a Jesus (Romanos 3:25; 1João 2:2; 1João 4:10, e também Hebreus 2:17).
  11. O sumo sacerdote. Ele é repetidamente designado como o sumo sacerdote da nova aliança (Hebreus 2:17; Hebreus 3:1; Hebreus 4:14 e 15; Hebreus 5:5 e 10; Hebreus 7:26; Hebreus 8:1; Hebreus 9:11. Veja também João 17).
  12. O santo de Deus. Jesus sintetiza tudo o que diz respeito à santidade. Uma vida totalmente centralizada na vontade de Deus o Pai (Marcos 1:24; Atos 2:27; Atos 3:14; Apocalipse 3:7).
  13. O pastor profetizado (Ezequiel 34:23; Ezequiel 37:24), o líder supremo do povo de Deus.
  14. O Pão da Vida. Jesus é contrastado e comparado ao maná, que não garantia vida eterna (João 6:31 a 35). Jesus garante.
  15. O santuário de Deus. Ele é Emanuel (Mateus 1:23), a presença de Deus entre os seres humanos (João 1:14; João 2:19 a 21).

Jesus não somente viveu como o homem ideal, e o Israel ideal; ele corrigiu o que estava errado nos seres humanos, em geral, e no povo de Deus, em particular. Jesus é o obediente Filho de Deus, e o servo justo que cumpre a lei. Jesus satisfaz a esperança da humanidade e de Israel. Ele transcende, porém, as expectativas locais e nacionais. Em vez de ser meramente o salvador de Israel, ele é o salvador do mundo. Em vez de ser apenas o sacerdote que abençoa a Israel, ele é aquele que abençoa a todas as nações do mundo, segundo o evangelho que Deus pregou a Abraão (Gálatas 3:8).

Um novo paradigma para a interpretação interbíblica: o livro de Atos

A linguagem, terminologia e fraseologia usadas no livro de Atos revelam claramente uma interpretação, compreensão e apropriação da história do povo de Deus conforme narrada no Antigo Testamento. O cenário do Pentecostes, o dom do Espírito que ecoa a doação da lei no Sinai, a insistência em manter o número dos discípulos em doze, e as várias citações para provar a constituição de uma nova e expandida comunidade da aliança – tudo isto pressupõe uma interpretação e uma compreensão do material do Antigo Testamento. Do primeiro ao último, os vários discursos do livro de Atos – especialmente, mas não exclusivamente, aqueles dirigidos aos judeus – contêm citações do Antigo Testamento entremeadas nas argumentações. Um novo aspecto da interpretação interbíblica aparece com o livro de Atos. Jesus Cristo torna-se o exemplo que molda a identidade e missão de seus seguidores. Tanto em nível individual quanto coletivo, as vidas dos seguidores de Jesus Cristo são modeladas segundo o próprio Jesus Cristo. Os relatos de Estêvão e de Paulo proveem exemplos de tais semelhanças. A oração de Estêvão pelo perdão daqueles que o apedrejavam (Atos 7:60) se assemelha à de Jesus (Lucas 23:34). Em sua morte, Estêvão entregou seu espírito a Jesus (Atos 7:59), como Jesus o fez ao Pai (Lucas 23:46). Ambas as narrativas mencionam o Filho do homem à mão direita de Deus (Atos 7:56; Lucas 22:69).

Jesus estava decidido a ir a Jerusalém (Lucas 9:51). Em Atos, Paulo está decidido a ir a Roma. Igualmente, Paulo diante das autoridades romanas é um eco de Jesus diante das autoridades romanas. De Paulo, Festo declara “que ele nada praticara passível de morte” (Atos 25:25). De Jesus, disse Pilatos: “Não vejo neste homem crime algum” (Lucas 23:4). Como no início do seu ministério, Jesus recebeu o Espírito Santo, e assim fizeram os crentes em um nível corporativo no livro de Atos. Jesus iniciou o seu ministério depois de ter sido batizado, descendo sobre Ele o Espírito Santo, assim como os discípulos. Como Jesus operou maravilhas e milagres, assim fez a igreja em Atos. Jesus, o representante do povo de Deus, é o modelo, o fundamento sobre o qual a Igreja edifica sua identidade e missão.

Legitimidade do uso do Antigo Testamento nos escritos do Novo Testamento

Foram os escritores do Novo Testamento fiéis ao contexto original das passagens que eles citavam? Primeiramente, concedemos aos escritores do Novo Testamento o benefício de nossa crença de que eles não fariam alguma coisa que tendesse a desacreditar todo o propósito de sua argumentação para provar que Jesus é o Messias e que o plano da salvação entrou em uma nova fase. Essa nova fase significa que as fronteiras de Israel foram expandidas; que a Igreja, composta por judeus e não-judeus, está em legítima continuidade com o Israel histórico; e que as pessoas de origem não-israelita são incorporadas ou enxertadas na oliveira (Romanos 11:17 a 24). Segundo, é amplamente reconhecido que o livro de Apocalipse é em muitos aspectos uma reinterpretação do Antigo Testamento. Uma estratégia interpretativa semelhante pode ser discernida em toda a Bíblia. Os escritos proféticos são interpretações do Pentateuco com aplicações aos eventos contemporâneos. Semelhantemente, o Novo Testamento é uma interpretação e uma expansão do Antigo Testamento. A matéria de ambas as partes das Escrituras está ligada inseparavelmente. Além disso, os autores do Novo Testamento se referem uns aos outros. A maneira criativa com que Tiago usa material do Sermão da Montanha ou as semelhanças entre o discurso escatológico de Mateus e os sete selos do Apocalipse são apenas dois dos muitos exemplos de intertextualidade dentro do Novo Testamento.

Os escritores bíblicos interpretam os escritos uns dos outros de várias maneiras e por múltiplas razões. Aqui estão exemplos:

  1. Num nível formal, ao se referirem uns aos outros, os escritores bíblicos podem desejar atingir um efeito literário ou estilístico.
  2. Os profetas aplicam o Pentateuco a situações contemporâneas.
  3. A linguagem e imagem dos eventos muito importantes da história, tais como a criação, o êxodo, a permanência no deserto, o estabelecimento em Canaã, o exílio, são usados para descrever subsequentes atos divinos de salvação.
  4. Jesus e os escritores do Novo Testamento se comunicam com pessoas imersas nas Escrituras. Eles usam uma linguagem conhecida de seus ouvintes e de seus leitores. Isto também se aplica aos profetas do Antigo Testamento, ao usarem eles a linguagem da Torah.
  5. Um escritor ou personagem do Novo Testamento pode desejar obter o apoio de uma autoridade (Mateus 4:14). No caso de Jesus, porém, ele às vezes cita o Antigo Testamento para salientar sua própria autoridade.
  6. Partindo da perspectiva de Jesus e dos escritores neotestamentários, o motivo mais importante para o uso do Antigo Testamento no Novo é estabelecer a autoridade e identidade messiânica de Jesus e mostrar que ele é o clímax de Adão, dos patriarcas e de Israel. As instituições do Israel histórico, inclusive o santuário e as festividades, encontram sua finalidade e seu significado na vida de Cristo.
  7. Às vezes, Jesus e os escritores do Novo Testamento interpretam o Antigo Testamento como profecia. Frequentemente, essas aplicações mostram que Jesus é o cumprimento das promessas que Deus fez a Adão, aos patriarcas, a Israel, e às nações.
  8. Os escritores do Novo Testamento interpretam o Antigo Testamento usando tipologia que já está presente no Antigo Testamento. Indicadores tipológicos estão entremeados no texto. Tais indicadores podem ser aspectos linguísticos, temáticos ou teológicos. Também existem relações tipológicas entre vários textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento. O sinal de Jonas, a ressurreição de Israel depois de três dias no livro de Oseias, e a morte e ressurreição de Jesus são exemplos claros de interligação.
  9. Jesus cita o Antigo Testamento para mostrar como ele está em continuidade com sua revelação e para mostrar que ele implementa seus princípios. Entretanto, mesmo com tal continuidade, Jesus excede, de longe, o que foi predito a respeito dele.
  10. Ao interpretar várias passagens do Antigo Testamento, os escritores e personagens do Novo Testamento parecem ter em mente o contexto mais amplo da passagem. A história da salvação, com seus vários componentes, é considerada por meio das lentes de uma filosofia da história pela qual o propósito de Deus é levar sua criação a uma reconciliação cósmica.
  11. Os escritores do Novo Testamento mostram penetrante consciência do contexto do Antigo Testamento. Os textos que eles citam se referem frequentemente a um local, bem como a um distante cumprimento messiânico.
  12. Embora eles sejam mais do que meros repetidores, Jesus e os escritores do Novo Testamento respeitam o contexto do Antigo Testamento. Eles são sensíveis aos contextos do Antigo Testamento e à novidade do trato de Deus com a raça humana por meio de Jesus Cristo.
  13. Frequentemente, há mais em um texto do que satisfazer a vista, especialmente quando se leva em consideração o contexto. Em Gálatas 3:16, Paulo atribui um significado messiânico à palavra “semente” ou “descendente”. A mudança de um coletivo para uma simples “semente” ou “descendente” está em harmonia com o que já está inferido em Gênesis 22:17 e 18. Em outras palavras, a oscilação do plural para o singular indica a necessidade de considerar não somente o local, mas também o cumprimento messiânico de certas profecias do Antigo Testamento. Gênesis 3:15 é um daqueles numerosos textos messiânicos que dirigem a atenção dos leitores para a dinâmica das profecias bíblicas. Paulo, então, não está lendo no texto do Antigo Testamento algo que não estava lá.
  14. O uso do Antigo Testamento pelo Novo Testamento está fundamentado na crença de que Cristo é o fim ou objetivo da lei. A principal personagem que o testemunho bíblico antecipou remodela a interpretação neotestamentária do Antigo Testamento. O véu que impedia a hermenêutica apropriada é erguido e afastado somente por meio de Cristo (2Coríntios 3:12-17). Essa perspectiva cristocêntrica também está fundamentada nas próprias palavras de Jesus quando disse: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim” (João 5:39). De fato, o próprio objetivo da leitura das Escrituras é contemplar a glória do Senhor e ser transformado à mesma imagem. Isto acontece à medida que o leitor está envolvido na interpretação interbíblica, cujo foco principal é Jesus Cristo, a revelação da glória de Deus.

Diretrizes para uma leitura intertextual das Escrituras

Uma leitura intertextual das Escrituras pode tornar-se um estudo altamente complexo. Os especialistas se envolvem em estudos interdisciplinares para extrair o máximo de um texto.

Mas o fato de que tal estudo pode tornar-se técnico não significa que a intertextualidade é inacessível ao leitor em geral. O Espírito Santo conduz o crente a toda a verdade. Todos podem beneficiar-se lendo intertextualmente as Escrituras. Além disso, quando Jesus convidou o leitor das Escrituras a entender o que foi falado pelo profeta Daniel (Mateus 24:15), ele admitiu sua competência e sua capacidade de compreender. Em assuntos pertencentes à compreensão da Palavra de Deus a partir das Escrituras, há espaço para o especialista e para qualquer mente inquiridora.

Para desenvolver uma leitura intertextual das Escrituras, cujo principal objetivo é permitir ao leitor o acesso a todo o conselho de Deus sobre qualquer tema, o leitor da Bíblia deve usar as seguintes diretrizes:

  1. Familiarize-se com o contexto de toda a Bíblia. Uma leitura regular das Escrituras é altamente recomendada. Esta prática tornará o mundo da Bíblia um lar para o leitor. A memorização de várias partes das Escrituras, a utilização de artifícios mnemônicos, também ajuda a desenvolver sensibilidade à interpretação interbíblica.
  2. Estude passagens com contexto similar. Compare cuidadosamente o cenário original de uma passagem com seu uso no novo contexto.
  3. Defina o significado de termos essenciais por meio do estudo das palavras (concordâncias, dicionários).
  4. Estude o contexto.
  5. Familiarize-se com o mundo do Antigo Testamento a fim de obter uma compreensão melhor do Novo Testamento.
  6. Focalize as conexões que são claramente feitas dentro das Escrituras. Abstenha-se de encontrar uma aplicação para cada detalhe de pessoas, eventos e instituições do Antigo Testamento, como o santuário.
  7. Concentre-se no fato de que as Escrituras testificam de Jesus (João 5:39).

Um estudo intertextual das Escrituras é servo de um objetivo mais elevado, conhecer a Deus, contemplar sua glória em Cristo Jesus e ser transformado à sua semelhança, de glória em glória.

Conclusão         

A intertextualidade é parte da própria estrutura da Bíblia. Os primeiros capítulos da Bíblia iniciam um mundo de encontros. Da criação em Gênesis 1 à recriação em Apocalipse 21 e 22, Deus é revelado à medida que ele se envolve em uma história cujo tema global é a salvação de sua criação. As histórias são contadas e repetidas de várias perspectivas. Com o passar do tempo, mediadores da aliança entre Deus e Israel e a humanidade, em geral, se referem aos fundamentos da aliança. Essa aliança é exposta na Torah, a orientação que Deus proveu para a vida, ética e relacionamento dos seus associados no concerto, seu povo.

Eventos essenciais no encontro com o seu povo tornam-se modelos para futuros encontros. Embora os escritores bíblicos sejam mais do que meros “repetidores”, a linguagem que eles usam mostra homogeneidade. O relato da criação, o dilúvio, a aliança com os patriarcas, o êxodo, o encontro de Deus com seu povo no Sinai, o santuário, os sacerdotes, sacrifícios, desempenhos cultuais e festividades tornaram-se o fundamento e linguagem para formulações teológicas subsequentes que tratam de cristologia, eclesiologia e escatologia.

Assim, ainda precisamos do Antigo Testamento? O Novo Testamento usa o Antigo Testamento de maneira legítima? Necessitamos do Antigo Testamento para compreender o Novo Testamento? A resposta deve ser um “sim” inequívoco. O Antigo Testamento apresenta a linguagem que os escritores do Novo Testamento usam para expressar as ideias que eles desejam comunicar ao mundo. Aquelas mesmas ideias estão fundamentadas no Antigo Testamento como parte do trato de Deus com Israel e com o mundo conforme testemunhado nas Escrituras. Contudo, Jesus e os escritores do Novo Testamento não se limitam meramente a citar o Antigo Testamento. Às vezes eles corrigem o que não era ideal em seus ouvintes na ética, comportamento, cosmovisão, compreensão, ou interpretação dos textos do Antigo Testamento (veja Jesus sobre casamento e divórcio em Marcos 10; também a discussão de Jesus com os saduceus sobre a ressurreição [Mateus 22:23 a 33]; e a argumentação de Pedro em favor da ressurreição de Cristo predita por Davi [Atos 2:22 a 36]).

As Escrituras são um todo unido e indivisível. O Antigo Testamento oferece o molde para a língua e pensamentos do Novo Testamento e corrobora sua doutrina e teologia. A leitura intertextual das Escrituras abre janelas para a conexão entre o Antigo e o Novo Testamento. Este modo de percepção nos ajuda a compreender as estratégias retóricas dos personagens e escritores bíblicos. Fornece ideias concernentes à singularidade de cada livro bíblico. A maneira como os escritores citam ou ecoam os escritos uns dos outros nos dá um vislumbre sobre o que eles estavam tentando comunicar.

Referências

  1. Roger Nicole, “The New Testament Use of the Old Testament”, em The Right Doctrine from the Wrong Texts?: Essays on the Use of the Old Testament in the New, ed. G. K. Beale (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1994), p. 13-14.
  2. Robert B. Sloan Jr. e Carey C. Newman, “Ancient Jewish Hermeneutics”, em Biblical Hermeneutcs: A Comprehensive Introduction to Interpreting Scripture, eds. Bruce Corley, Steve W. Lemke e Grant I. Lovejoy, 2a ed. (Nashville, TN: Broadman & Holman, 2002), p. 58-59.
  3. Preeminentes entre os métodos estão: (1) Peshat, um tipo literalista de exegese que consiste de uma tradução do significado literal de um texto. (2) Targum, uma paráfrase ou interpretação explanatória. (3) Midrash, exposição de uma passagem cujo objetivo é desenvolver a relevância de um texto para o presente. (4) Pesher, derivado de uma palavra aramaica que significa “solução”. “A pressuposição é a de que o texto contém um mistério comunicado por Deus que não é compreendido até que a solução é dada a conhecer por um intérprete inspirado.” (Veja Klyne Snodgrass, “The Use of the Old Testament in the New”, em Interpreting the New Testament: Essays on Methods and Issues, eds. David A. Blacke David S. Dockery [Nashville, TN: Broadman & Holman, 2001], p. 218).
  4. Donald Juel, Messianic Exegesis: Christological Interpretation of the Old Testament in Early Christianity (Philadelphia: Fortress Press, 1992), p. 44.
  5. Sloan Jr. e Newman, p. 59-60.
  6. David L. Baker, Two Testaments, One Bible: A Study of the Theological Relation-ship Between the Old and New Testaments (Downers, Glove, IL: InterVarsity Press, 1991), p. 195.
  7. Pedi e vos será dado (Tiago 1:5; Mateus 7:7; Lucas 11:9), boas dádivas do Pai (Tiago 1:17; Mateus 7:11), ser cumpridores da Palavra em vez de simplesmente ouvintes (Tiago 1:22 a 25; Mateus 7:21 a 26), os pobres como aqueles que recebem o reino (Tiago 2:5; Mateus 5:3; Lucas 6:20), pacificação (Tiago 3:18; Mateus 5:9), e juramentos (Tiago 5:12; Mateus 5:33 a 37).

Bibliografia selecionada

Bock, Darrell. “Use of the OT in the New”. Em Foundations for Biblical Interpretation, eds. David S. Dockery, et. al. Nashville: Broadman & Holman, 1994.

Carson, D. A. e H. G. M. Williamson, eds. It Is Written: Scripture Citing Scripture: Essays in Honour of Barnabas Lindars. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

Davidson, Richard M. “New Testament Uses of the Old Testament”. Journal of the Adventist Theological Society 5/1 (1994): 14-39.

Hayes, Richard B. e Joel B. Green. “The Use of the Old Testament by New Testament Writers”. Em Hearing the New Testament: Strategies for Interpretation, ed. Joel B. Green. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995.

Neusner, Jacob. Canon and Connection: Intertextuality in Judaism. Lanhan, MD: University Press of America, 1987.

Paulien, Jon.“Elusive Allusions:The Problematic Use of the Old Terstament in Revelation”. BR 33 (1988): 37-53.

Snodgrass, Klyne. “The Use of the Old Testament in the New”. Em Interpreting the New Testament: Essays on Methods and Issues, eds. David Alan Blacke David S. Dockery. Nashville: Broadman & Holman, 2001.

Ganoune Diop, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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INTERPRETANDO A NARRATIVA HISTÓRICA DO ANTIGO TESTAMENTO

Introdução

A maior parte da literatura da Bíblia se ajusta mais sob o título de “narrativa histórica” do que sob qualquer outro gênero literário.1 Quase a metade do Antigo Testamento é desta natureza, e mais de um terço de toda a Bíblia.2 No Antigo Testamento, os livros de Gênesis, Josué, Juízes, Rute, 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis, 1 e 2Crônicas, Esdras, Neemias, Ester e Jonas são, em grande parte, escritos em narrativa histórica. Igualmente, partes substanciais de outros livros, tais como Êxodo e Ezequiel aparecem nesta forma. No Novo Testamento, os Evangelhos e Atos pertencem grandemente a este gênero.3

Considerando-se a participação da narrativa histórica nas Escrituras, é vital que este gênero seja interpretado adequadamente, uma vez que a Palavra de Deus deve ser compreendida corretamente. Este capítulo enumerará e explicará algumas diretrizes que são de utilidade quando se interpreta as seções de narrativa histórica da Bíblia. Adicionalmente, incluímos um exemplo de interpretação de uma seção de narrativa histórica do livro de Rute.

Este artigo admite o uso de princípios hermenêuticos gerais aplicáveis a cada porção das Escrituras, isto é, ter uma tradução aprimorada, compreender o contexto, aplicação, etc. (veja o capítulo 7 – Diretrizes para a interpretação das Escrituras). Contudo, as diretrizes específicas são particularmente importantes quando se está abordando certos gêneros da Bíblia, e aqui mostraremos, desenvolveremos e matizaremos essas diretrizes de tal modo que focalizem especificamente a interpretação da narrativa histórica. Em concordância com o desígnio deste volume, essas diretrizes serão primariamente discutidas em relação com os versos encontrados na seção dos “livros históricos” do Antigo Testamento, conforme dados no cânon inglês (os livros de Josué até Ester). Todavia, elas também se aplicam a outras seções de narrativa histórica das Escrituras.

Diretrizes para a interpretação das narrativas históricas4

Leia o texto cuidadosamente

Uma leitura cuidadosa do texto é essencial. Na narrativa histórica, bem como em outros gêneros bíblicos, é vital prestar atenção aos detalhes do relato, mesmo àqueles que podem parecer insignificantes ou supérfluos. Por exemplo, o leitor descuidado poderia negligenciar o detalhe aparentemente insignificante acerca do comportamento de Absalão quanto ao seu cabelo (2Samuel 14:26). Entretanto, a vaidade de Absalão no tocante ao seu cabelo é um ponto importante, porque antecipa a causa de sua morte. Isto salienta o fato de que o próprio texto deve ser cuidadosamente lido e atentamente estudado.

Estude os aspectos literários

É importante notar as várias feições literárias que constituem as seções narrativas das Escrituras. No mínimo, os seguintes elementos de cada passagem devem ser estudados: o enredo, o ambiente, os personagens e o ponto de vista do narrador.

Enredo. Descobrir o enredo envolve responder às perguntas “qual?” e “como”? É a sequência de eventos que compõem a narrativa. É o que conserva unida a história. Para descobrir o enredo, pergunte: “Sobre o que é esta história?” O cenário ou ambiente lida com as perguntas “quando?” e “onde?” Qual é o tempo e lugar em que uma certa narrativa é posta? Por exemplo, é dito que a história de Rute ocorreu nos dias em que os juízes julgavam (Rute 1:1). Quando compreendida em contato com esse ambiente, está em contraste com a violência e anarquia que consumia a nação israelita naquele tempo. Igualmente, o livro de Rute começa em Belém, nome este que tem o significado irônico de “casa de pão”, porque o país estava então no aperto da fome.

Personagens. Os personagens são as pessoas envolvidas na história, aqueles que levam adiante o enredo. É importante analisar como os vários personagens são retratados a fim de interpretar corretamente a narrativa histórica. Por exemplo, uma análise cuidadosa do caráter de Sansão rende ricos dividendos na interpretação de Juízes 13 a 16. Embora um dos mais fortes homens que já viveram, ele é, ao mesmo tempo, um dos mais fracos. Sua fraqueza com mulheres, manifestada em galanteios anteriores (Juízes 14 e 16), prefigura sua queda final nas mãos de uma.

Ponto de vista do narrador. O ponto de vista do narrador se refere à perspectiva teológica daquele que relata a narrativa – ao ponto em que ele está tentando fazer. O ponto de vista do narrador vem a nós de variadas maneiras. Por exemplo, às vezes aparece no arranjo e na estrutura da narrativa, às vezes pelas palavras proferidas pelos personagens, e, em outras, pelo comentário explícito ou por declarações sumárias, delineando o significado de uma determinada narrativa. Como um exemplo desta última forma, quem pode deixar de perceber a avaliação negativa do narrador quanto ao caos da nação israelita durante os dias dos juízes, que aparece no epílogo do livro? “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” (Juízes 21:25).

Outros aspectos. Outros aspectos literários das narrativas históricas, tais como comparação/contraste e ironia, também poderiam ser mencionados, mas para concluir este ponto, não há nenhum substituto para analisar o enredo, os personagens e outros aspectos a fim de compreendermos o significado das seções narrativas da Bíblia.

Tome nota de repetições

As repetições são comumente usadas na narrativa histórica. Palavras e frases que se repetem podem ser úteis para determinar o significado pretendido pelo autor. Por exemplo, Jeroboão, filho de Nebate, é usado repetidamente como um modelo de comparação: o monarca que dá o exemplo para os reis maus do Reino do Norte sucessores no trono (1Reis 15:34; 1Reis 16:7 e 26). Qualquer rei de quem é dito seguir os caminhos de Jeroboão claramente não será nenhum agente de reavivamento espiritual. Outro exemplo: ao ler que Adonias, como parte do seu plano para usurpar o trono, monta numa carruagem com 50 homens correndo adiante dele (1Reis 1:5), o perspicaz estudante da Bíblia já pode perceber que Adonias está caminhando para a ruína, porque o mesmo foi feito por Absalão como parte de sua malsucedida tentativa de lançar mão do poder (2Samuel 15:1).

Procure a divina perspectiva

Uma quarta diretriz a lembrar é que as narrativas históricas não estão apenas tentando relatar a história do povo que vivia nos tempos antigos, mas são principalmente acerca de como Deus operava em seus filhos, por meio deles, e, às vezes, apesar deles. Há uma perspectiva divina para essas histórias. Em face disto, é apropriado usar o termo “história teológica”, sendo que a narrativa histórica também pretende comunicar verdade teológica ao leitor.6 Por exemplo, os últimos poucos versos de 2Reis não estão apenas tentando falar-nos da boa sorte de Joaquim em ser libertado da prisão e em ter a permissão de comer à mesa do rei de Babilônia; a passagem está tentando mostrar que Deus não abandonou seu povo da aliança e ainda está trabalhando redentivamente em seu favor, mesmo na escura noite do exílio.

Aqui precisamos afirmar a importância de ler cada narrativa, não somente à luz do seu próprio contexto imediato, mas no contexto de todo o plano da redenção. Isto é, cada unidade narrativa deve ser lida à luz do grande conflito como um todo.

A mensagem das narrativas históricas do Antigo Testamento opera em três níveis.7 O nível superior é o plano e propósito divino para a raça humana, incluindo a perfeita criação de Deus, a queda, e a encarnação de Cristo, seu sacrifício e sua oferta de salvação. O nível médio focaliza Israel, incluindo a vocação de Abraão, a libertação de seus descendentes do cativeiro egípcio, sua apostasia e exílio, e sua restauração. O nível mais baixo é composto dos eventos e incidentes de todas as narrativas individuais que constituem a história mais ampla. Por exemplo, a narrativa de Rute não somente demonstra o amor de Deus por duas viúvas individuais e a amizade entre elas (o nível inferior); também mostra o importante papel de Rute na nação de Israel ao se tornar uma ancestral do grande rei Davi (o nível médio). Lendo mais adiante na Bíblia (veja a genealogia em Mateus 1), descobre-se que Rute tem um lugar na árvore genealógica do Messias (o nível superior) e assim desempenha um papel no plano divino da redenção. É importante considerar uma narrativa individual do Antigo Testamento em cada um destes níveis e fazer perguntas como as seguintes: “O que está acontecendo nesta história específica?” – “Que papel ela desempenha no plano de Deus para a nação do pacto?” – “Como ela se ajusta em todo o plano da redenção?”

Reconheça a natureza exemplar das narrativas

As narrativas históricas normalmente não proclamam um mandamento bíblico direto nem ensinam uma doutrina bíblica. Elas podem bem admitir e ilustrar um mandamento ou uma doutrina ensinada em outra parte. Um exemplo disto é a narrativa de Elias. Embora não haja nenhum mandamento explícito em 1Reis 17 e 18 para não adorar outros deuses, conforme declarado nos dez mandamentos, é claramente admitido pelo narrador e por Elias que é pecaminosa a conduta do povo ao adorar Baal. O resultado no monte Carmelo confirma esta suposição. O narrador de 1Reis admite de Deuteronômio os perigos inerentes às grandes riquezas e às mulheres estrangeiras, e provê apenas um breve relato de como Salomão se afasta de Deus (1Reis 10:14 a 11:10). Assim, uma das finalidades das narrativas históricas é a de frequentemente servirem como poderosas ilustrações de mandamentos bíblicos dados em outra parte.

Avalie as ações dos personagens

Uma diretriz interpretativa final a notar é que as narrativas bíblicas históricas registram o que realmente aconteceu, não necessariamente o que Deus queria que acontecesse. Juntamente com isto, é importante lembrar que os leitores da Bíblia não são chamados a imitar todas as ações dos personagens bíblicos, mesmo aquelas dos chamados heróis das Escrituras. Certamente o pecado de Davi com Bate-Seba e o assassinato do esposo dela não são dignos de imitação, embora Davi seja mencionado como um homem segundo o coração de Deus. Ao contrário, suas ações são moralmente más, grosseiras violações da divina norma de conduta. Conquanto na situação de Davi o texto declare explicitamente que sua ação foi má aos olhos do Senhor (2Samuel 11:27), às vezes a unidade narrativa não afirma claramente a avaliação divina de um certo ato. Antes, o leitor deve olhar para o que o texto permite inferir e o que a Bíblia declara em outra parte.

Embora haja outras diretrizes interpretativas que poderiam ser aduzidas, as mencionadas anteriormente devem prover alguma orientação proveitosa para discernir o significado das narrativas históricas da Bíblia.

Um exemplo de interpretação da narrativa histórica

Esta breve revisão do livro de Rute provê um exemplo de como uma seção de narrativa histórica das Escrituras poderia ser interpretada e aplicada hoje. Embora seu enfoque seja Rute 2:1 a 13, também lida com certos temas importantes de todo o livro e tenta compreender esses temas à luz da Bíblia como um todo. Adicionalmente, nota alguns dos aspectos literários e usa algumas das diretrizes já mencionadas.

Exposição de Rute 2:1 a 13

Como se costuma dizer, quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. E assim foi com Noemi e Rute. Não obstante a mudança de endereço de Moabe para Belém, os mesmos velhos problemas e incertezas afligem persistentemente a vida dessas duas viúvas. Sua situação era desesperadora. Em uma cruel ironia, embora elas agora morassem na “casa de pão” (o significado do nome Belém), eram perseguidas pela fome. Também outros desafios avultavam. Elas estavam encerradas em pobreza, esmagadas pela solidão, incerteza de sua aceitação pela comunidade israelita, e convencidas de que sua situação se devia a juízo divino (Rute 1:20 e 21). Enfrentaram a extinção de sua linhagem familiar por causa da falta de um descendente do sexo masculino para herdar a propriedade e levar adiante o nome da família. Pareciam estar à beira do desespero. Essa “casa de pão” não era nenhuma cornucópia (abundância, opulência, riqueza) para elas!

Confrontados por situações aparentemente insolúveis, perplexos quanto ao presente, preocupados com o futuro, indagando se a vida é digna de ser vivida, se existe alguma coisa pela qual esperar, nós somos as Rutes e Noemis de hoje.

Quando atolados em circunstâncias tão difíceis e desesperadoras, o que precisamos saber? Que mensagem dada por Deus nos trará coragem? Que verdade bíblica pode dar origem à esperança? A resposta vem na própria mensagem que Rute 2 proclama, a saber, que Deus está trabalhando ativamente em favor de seus filhos a fim de produzir redenção e restauração. O Todo-poderoso não nos esqueceu, nem abandonou. Ao contrário, o Deus que proclama em outra parte: “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hebreus 13:5), já está pondo em ordem os eventos e circunstâncias a fim de produzir uma renovação gloriosa.

Note como Rute 2 expressa esta mensagem. O primeiro verso alude à vindoura restauração apresentando a pessoa por meio da qual ela será posteriormente realizada, Boaz, o parente próspero de Noemi. A esta altura da narrativa, Noemi e Rute não estão pensando em Boaz como um candidato a libertá-las do buraco em que caíram. De fato, a julgar por seus comentários posteriores, Rute não sabe absolutamente nada sobre ele. Todavia, ele já está no lugar certo e possui recursos que serão usados para efetuar uma reversão da sorte delas. Há um remidor, ou resgatador – como Boaz será designado posteriormente – à espera. Em Rute 2:20 e Rute 3:9 e 12, Boaz é denotado pela forma participial de ga’al; a NIV traduz isto como “parente-remidor”.

De acordo com o parágrafo precedente, talvez precisemos acrescentar a expressão “providência preveniente” ao nosso léxico teológico. Alguns já estão familiarizados com o conceito de graça preveniente, embora provavelmente nem todos (um dos meus dicionários nem mesmo tem um verbete para o adjetivo “preveniente”). Refere-se à graça divina já operando no coração de uma pessoa antes que esta se volte para Deus. Conquanto os teólogos raramente falem de providência preveniente, o livro de Rute estabelece a validade do conceito. Simplesmente pela apresentação de Boaz, o agente da redenção e pela alusão aos seus abundantes recursos, o autor está sugerindo que Deus já está operando e tem um plano para realizar o seu propósito. Embora os olhos estejam em pranto, quer sejam os de Noemi e de Rute nos tempos antigos, ou os de nossos parentes e amigos nos tempos modernos, tendemos frequentemente a nos esquecer do fato de que Deus já está operando para redimir e restaurar.

Mas o que deveriam fazer Rute e Noemi, nesse ínterim, antes do plano divino tornar-se realidade? Não fazer nada seria morrer de fome, de sorte que Rute sugeriu um plano. De acordo com a estipulação que permitia ao pobre colher as espigas deixadas pelos segadores (Levítico 19:9 e 10; Levítico 23:22; Deuteronômio 24:19 a 22), ela propôs achar um campo em que lhe fosse permitido respigar. Assim ela se foi, e “caiu-lhe em sorte” (Rute 2:3) ou coisa que o valha, diz a Bíblia; ela foi ao campo de Boaz.

“Caiu-lhe em sorte”. Qual é o significado desta frase? Está o autor sugerindo que o encontro de Rute com Boaz, um evento que assume enorme significado ao desdobrar-se o enredo do livro, é simplesmente uma coincidência, um golpe de boa sorte que ela respigasse em seu campo em vez de em algum outro? Não, absolutamente! Embora possa parecer ao leitor que Rute tropeçou por acidente no campo de Boaz, esta “rotulação do encontro de Rute com Boaz como ‘acaso’ não é nada mais do que a maneira de dizer do autor que nenhum intento humano estava envolvido. Para Rute e Boaz foi um acidente, mas não para Deus”.8 Um estudo da raiz verbal hebraica aqui usada (qarah) apoia este detalhe, porque “Yahweh frequentemente espreita em contextos onde ocorre qrn”.9

Aqui, o autor está tentando chegar ao ponto desejado acerca da providência divina, que significa o cuidado de Deus por seus filhos, sua supervisão geral sobre eles e sua ordenação e execução dos eventos a fim de cumprir seu plano na vida deles. A providência no livro de Rute não é do tipo espetacular, miraculoso, “fogos-de-artifício-no-céu”. Ao contrário, muito da atividade divina “é grandemente daquela que ocorre nas sombras, cuja manifestação não é por intervenção, mas por um controle providencial levemente exercido”.10 Mas não obstante está ali, e os eventos que ocorrem em seguida ao encontro de Rute com Boaz, todos dão a impressão de ser parte do plano divino para redimir e restaurar Rute e Noemi. O interesse de Boaz em Rute e a sua bondade para com ela; sua correspondente atração por ele; o resultado de seu trato com o outro parente; sua união matrimonial; a geração de um descendente, que finalmente redime Noemi (Rute 4:14 e 15), parecem ter este significado.

Mas o que dizer do presente? Ousamos confirmar a direção providencial de Deus quanto aos seus filhos hoje? Ousamos proclamar o envolvimento divino em nossa própria vida? À luz do ensino das Escrituras, não somente no livro de Rute, mas em todos os sessenta e seis livros, não ousamos? As Rutes e Noemis de hoje, preocupadas e desanimadas, precisam desesperadamente ouvir a mensagem de que o mesmo Deus que sabe quando cai um pardal (Mateus 10:29) preocupa-se profundamente com elas, que ele está interessado e envolvido em suas vidas. Precisam que alguém lhes faça lembrar do dom de redenção que ele providenciou e da restauração final que ele promete. De fato, essa redenção e restauração foi provida de maneira ascendente por nenhum outro que não o grande remidor por excelência, aquele a quem Boaz prefigurou em vários aspectos: Jesus Cristo. À semelhança de Boaz, Jesus reivindica parentesco com aqueles a quem ele redime (Hebreus 2:11), e como Boaz, ele está disposto a redimir, mesmo que a redenção tenha um preço.

Mas hoje a redenção e restauração nem sempre são imediatamente evidentes na vida dos filhos de Deus. O Senhor não agita uma varinha de condão e “Voila!” [eis ali], as dificuldades e problemas desaparecem imediatamente. Por exemplo, ao término da passagem sob consideração aqui (Rute 2:1 a 13), Rute e Noemi ainda enfrentam os problemas da pobreza, fome, e a ameaça de extinção da família. É verdade que Rute se encontrou com o próspero e amigável Boaz, mas a pequena provisão de alimento que ela ajuntou será devorada rapidamente, e ela e Noemi devem ainda lidar com a mesma situação problemática. Em certo sentido, nada mudou. Mas em outro sentido, tudo mudou, porque Rute encontrou o agente da redenção! Redenção e restauração estão em marcha e, finalmente, será visível na vida dessas duas viúvas. O resultado positivo não está indeciso. Ao contrário, é tão certo como as promessas divinas. E assim é conosco. Nossa condição como remidos de Deus, nosso futuro em Seu reino, conquanto nem sempre seja agora evidente, é tão certo como o nascer do sol de amanhã.

Algo mais deveria ser dito acerca de um dos objetos de redenção e restauração: Rute. Ela merece menção especial, porque sua ascendência moabita parecia impedir sua aceitação pelo povo de Deus e parecia torná-la uma candidata improvável para tal obra de graça. Parecia torná-la um estranho permanente (Deuteronômio 23:3). Não somente na passagem aqui sob consideração, mas ao longo do livro, o autor sente prazer em chamar a atenção para o fato de que Rute é uma estrangeira. Algumas das referências, tais como a dual de Rute 2:6, são claramente supérfluas. Cada oportunidade é aproveitada para lembrar ao leitor sua herança moabita (Rute 1:4 e 22; Rute 2:2, 6 e 21; Rute 4:5 e 10). À luz desta condição estrangeira, Rute considera-se desmerecedora de qualquer bondade (Rute 2:10). Ou ela não conhece as reivindicações da aliança sobre as mercês de Deus e do seu povo, ou talvez ela creia assim refletindo as opiniões de seus contemporâneos israelitas.

Todavia, esta ênfase sobre sua condição de estrangeira serve apenas para realçar e dramatizar o efeito do momento em que a situação de Rute como uma forasteira é revertida, uma reversão antecipada pelo comentário de Boaz em Rute 2:12. Essa reversão chega ao clímax no último capítulo do livro, em que Rute é retratada como abençoada pelo Senhor e honrada em Israel (Rute 4:11 a 22). Essa estrangeira, cuja ascendência moabita parecia colocá-la fora da órbita de tais bênçãos, é revelada como a bisavó de Davi, o israelita por excelência, e aquele por meio de cuja linhagem Jesus Cristo mais tarde viria (Mateus 1:1 a 17). Nenhuma honra maior poderia ser concedida em Israel!

Assim, em Rute temos uma notável testemunha da verdade bíblica subentendida nas genealogias de Gênesis e posteriormente revelada mais uma vez a Pedro: “Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável” (Atos 10:34 e 35). Esta verdade precisa ser proclamada em alta voz e com frequência em nossos dias, nos quais, lamentavelmente, termos ofensivos como “limpeza étnica” continuam bem vivos. O fato de que redenção e restauração são concedidas a essa aparente forasteira serve para realçar diante de nós a condição de igualdade e valor de todas as pessoas aos olhos de Deus. As riquezas do divino reino estão disponíveis a todos os que invocam o nome do Senhor (Romanos 10:13).

Referências

  1. A expressão “narrativa histórica” é, talvez, a mais adequada para o tipo de literatura mais prevalecente na Bíblia, tendo-se em mente que a história inclui o seguinte: (1) relatar o que ocorreu, (2) partilhar o ponto de vista do narrador sobre o que ocorreu, (3) colocá-la em um arranjo significativo para que transmita uma mensagem. (Walter C. Kaiser e Moises Silva, An Introduction to Biblical Hermeneutics [Grand Rapids: Zondervan, 1994], p. 83). Sendo que a seletividade e a tendência ou propensão do historiador estão sempre envolvidas em escrever a história, a ideia do século dezenove de história como uma declaração de eventos passados completamente objetiva e imparcial é fantasiosa. Embora alguns prefiram a palavra “história” para o gênero aqui sob discussão, para muitas pessoas “história” pressupõe algo que pode não ser verdadeiro, de sorte que este não é o melhor termo. Na expressão “narrativa histórica”, o adjetivo “histórica” indica que a literatura está relatando um evento passado e o substantivo “narrativa” sugere a forma literária em que ela vem.
  2. Kaiser e Silva, p. 69.
  3. Gordon D. Fee e Douglas Stuart, How to Read the Bible for All Its Worth (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p. 73.
  4. Embora os exemplos bíblicos discutidos sejam na maioria das vezes meus próprios, alguns foram selecionados e adaptados de Fee e Stuart, p. 78ss.
  5. Os parágrafos seguintes são adaptados de J. Scott Duval e J. Daniel Hays, Grasping God’s Word (Grand Rapids: Zondervan, 2001), p. 299ss.
  6. Ibid., p. 294.
  7. Fee e Stuart, p. 74-75.
  8. Ronald M. Hals, The Theology of the Book of Ruth (Philadelphia: Fortress Press, 1969), p. 12.
  9. Robert L. Hubbard, Jr., The Book of Ruth, NICOT (Grand Rapids: Wm. B. Eerdman’s, 1988), p. 141.
  10. Edward R. Campbell, Jr., Ruth, Anchor Bible (Garden City, NY: Doubleday, 1975), p. 29.

Bibliografia selecionada

Campbell, Edward R., Jr. Ruth, Anchor Bible. Garden City: Doubleday, 1975.

Fee, Gordon D. e Douglas Stuart. How to Read the Bible for All Its Worth. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1982.

Hals, Ronald M. The Theology of the Book of Ruth. Philadelphia: Fortress, 1969.

Hubbard, Jr., e Robert L. The Book of Ruth, NICOT (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1988.

Kaiser, Walter C. e Moises Silva. An Introduction to Biblical Hermeneutics. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994.

Greg A. King, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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LENDO OS SALMOS E A LITERATURA SAPIENCIAL

Introdução

O livro dos Salmos contém alguns dos assuntos mais inspiradores das Escrituras. É mais frequentemente citado no Novo Testamento do que qualquer outro e é reverenciado pelos cristãos até o tempo presente. , Provérbios e Eclesiastes focalizam o conceito hebraico de sabedoria (hokmāh), palavra que indica as tradições morais e intelectuais do antigo Israel. Uma vez que a sabedoria de Israel pertencia ao contexto mais amplo do antigo Oriente Próximo, encontramos na literatura bíblica sapiencial algumas semelhanças com os provérbios dos sábios egípcios e mesopotâmicos.

O livro de Salmos e a literatura sapiencial da Bíblia são obra de vários autores. A coleção foi provavelmente reunida em sua forma final no tempo de Esdras e de Neemias. Como esses livros foram escritos em forma poética, o intérprete precisa tomar conhecimento das características da poesia hebraica.

O livro dos Salmos

O livro dos Salmos é uma coleção de orações e hinos hebraicos inspirados, setenta e três dos quais são atribuídos ao rei Davi. Conquanto os Salmos primariamente contenham palavras faladas para Deus ou acerca de Deus, eles são, ao mesmo tempo, palavras de Deus ao seu povo. O foco dos textos está no relacionamento entre Deus e seus filhos. Os Salmos, portanto, contêm hinos de louvor pelos grandes feitos de Deus, lamentos em que o povo derrama o coração em tempos de angústia e orações pedindo a orientação e o auxílio divinos na jornada da vida. Refletem a experiência de fé do povo de Deus antes da primeira vinda de Cristo, mas não estão confinados ao tempo. Todos os salmos foram, e ainda são, usados em devoções privadas e em adoração pública. Desempenharam uma parte importante no ritual do templo até a sua destruição em 70 d.C. Sendo que há pouquíssimos vestígios do seu ambiente histórico, eles são, em certo sentido, universais. Falam para situações típicas humanas e, portanto, têm a capacidade de falar aos seres humanos em qualquer época.

Sendo que os salmos são poemas – poemas musicais –, eles exigem cuidado especial quando interpretados. Seu caráter poético não é óbvio na tradução, porque, em contraste com a poesia ocidental, a poesia hebraica não tem rima. A maior parte da linguagem dos salmos é intencionalmente emotiva; o intérprete, portanto, precisa ser cuidadoso em não buscar significados especiais em cada palavra ou frase em que o autor não intentou nenhum. Além disso, por ser a linguagem dos salmos grandemente metafórica, o intérprete deve procurar o desígnio das metáforas e não se deter em seu significado literal. Os montes realmente não saltam como carneiros (Salmos 114:4); nem deve o povo de Deus ser ou agir como ovelhas (Salmos 23).

Poesia hebraica

Mais de um terço do Antigo Testamento é poesia. A maior parte dela aparece no livro de Salmos, na literatura sapiencial (, Provérbios, Eclesiastes), e nos livros proféticos. Isaías é escrito quase inteiramente em forma poética. Vários capítulos poéticos são também encontrados nos livros históricos, por exemplo, Gênesis 49 e Números 23 e 24. Apenas sete livros do Antigo Testamento não têm absolutamente nenhuma poesia (Levítico, Rute, Esdras, Neemias, Ester, Ageu e Malaquias). Assim, é importante compreender a poesia hebraica a fim de interpretar corretamente grandes porções do Antigo Testamento.

O estudo moderno da poesia hebraica se iniciou em 1753 com a publicação do livro do Bispo Robert Lowth, De Sacra Poesi Hebraeorum. Ele acreditava que a poesia hebraica tinha uma métrica real, mas que era difícil reconhecer porque o conhecimento de como o hebraico clássico era falado tinha se extinguido. Portanto, ele focalizou a principal característica da poesia hebraica que rotulou de parallelismus membrorum (paralelismo de membros).

Paralelismo

O Bispo Lowth explicou paralelismo como segue: “A correlação de um verso ou linha com outra, eu chamo de paralelismo. Quando uma proposição é emitida, e uma segunda é acrescentada a ela, ou redigida por baixo dela, equivalente, ou contrastada com ela em sentido, ou semelhante a ela na forma de construção gramatical, estas eu chamo de linhas paralelas, e as palavras ou frases, respondendo uma à outra em linhas correlativas, termos paralelos”.1

Lowth distinguia entre três tipos básicos de paralelismo: sinônimo, antitético e sintético, divisão ainda hoje em uso.

Paralelismo sinônimo – O pensamento da primeira parte é repetido na segunda parte em palavras diferentes: Provérbios 1:20 – “Grita na rua a Sabedoria, nas praças levanta a voz”; Isaías 2:17 – “A arrogância do homem será abatida, e a sua altivez será humilhada”.

Paralelismo antitético – A segunda parte contrasta, ou anula, o pensamento e o significado da primeira parte. Frequentemente, a segunda linha é introduzida com um “mas”: Provérbios 14:30 – “O ânimo sereno é a vida do corpo, mas a inveja é a podridão dos ossos”; Provérbios 16:25 – “Há caminho que parece direito ao homem, mas afinal são caminhos de morte”.

Paralelismo sintético ou formal – Este paralelismo não é tão claro como os outros dois. Basicamente, a segunda parte desenvolve ou completa o pensamento da primeira parte: Salmos 28:6 –          “Bendito seja o SENHOR, porque me ouviu as vozes súplices!” Aqui a primeira linha faz uma declaração, e a segunda linha provê o motivo. Salmos 119:9 – “De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o segundo a tua palavra”. A primeira linha faz uma pergunta; a segunda linha provê a resposta.

Desde a obra de Lowth sobre paralelismo hebraico, tipos adicionais de paralelismo têm sido identificados. Por exemplo, em paralelismo emblemático, uma linha usa uma metáfora ou símile, enquanto que a linha de equilíbrio faz uma declaração factual: Salmos 42:1 – “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma”.

Paralelismo ascendente ou semelhante à escada repete e eleva a mensagem em passos sucessivos. O pensamento parece ascender em três ou mais passos: Salmos 29:1 e 2 – “Tributai ao SENHOR, filhos de Deus, tributai ao SENHOR glória e força. Tributai ao SENHOR a glória devida ao seu nome, adorai o SENHOR na beleza da santidade”.

Paralelismo quiástico inverte as palavras ou pensamentos em linhas sucessivas.2 Assim, o que era primeiro na primeira parte aparece por último na segunda parte: Salmos 30:8 – “Eu clamei a ti, ó SENHOR; E ao SENHOR eu fiz súplica”.

Acróstico

Vários salmos são compostos em uma forma acróstica em que a letra inicial de cada verso ou série de versos segue a ordem do alfabeto hebraico. Desse modo, em Salmos 34 o primeiro verso começa com a letra hebraica álefe, o segundo com a letra bete, o terceiro com a letra guímel, etc. Em Lamentações 3 não uma, mas três linhas são designadas para cada letra, isto é, todos os primeiros três versos principiam com álefe, todos os próximos três versos começam com bete, os próximos três com guímel, etc. Em Salmos 119, oito versos sempre têm início com a mesma letra hebraica, e sendo que o número de letras hebraicas é 22, o salmo tem 176 versos. A forma acróstica pode ter sido um auxílio para memorização.

Figuras de retórica

A poesia hebraica é rica no uso de imagens e figuras de retórica, mas é também muito elíptica, isto é, larga substantivos e versos em linhas paralelas e raramente usa conjunções (e, mas), indicadores temporais (quando, então), ou conectores lógicos (assim, portanto).3

(1) Figuras de comparação

Símile – Figura de retórica em que duas coisas essencialmente dessemelhantes são comparadas pelo uso de um “como” ou “tão”. Salmos 42:1 – “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma”. O símile é a figura de retórica mais facilmente reconhecível.

Metáfora – Em uma metáfora o escritor descreve uma coisa em função de outra. A comparação está meramente subentendida. Salmos 18:2 – “O SENHOR é a minha rocha, a minha cidadela, o meu libertador, o meu Deus, o meu rochedo em que me refugio; o meu escudo, a força da minha salvação, o meu baluarte”. Deus era para Davi como a força da rocha e a cobertura de um escudo que lhe dava proteção contra seus inimigos.

Parábola – Um símile ampliado torna-se uma parábola. É uma história curta que ensina uma lição por comparação. A parábola de Deus em Isaías 5:1 a 5 descreve seu desapontamento com a vinha que produzia apenas uvas bravas. O principal ponto de comparação é reconhecido no final da narrativa: “Porque a vinha do SENHOR dos Exércitos é a casa de Israel”.

Alegoria – Uma metáfora ampliada torna-se uma alegoria. Na alegoria de Provérbios 5:15 a 23, o ponto mais importante é fidelidade conjugal. “A comparação que aqui é extraída está entre a prática de alguém beber água do seu próprio poço e a necessidade de ser fiel nas responsabilidades conjugais e privilégios do matrimônio”.4

(2) Figuras de plenitude de expressão

Paronomásia – Paronomásia é um jogo de palavras em que palavras com som semelhante, mas não necessariamente significado similar, são repetidas. Por exemplo, Provérbios 11:18 diz: “O homem perverso faz trabalho ilusório (šāqer), mas o que semeia justiça terá uma recompensa segura (seker)”. Os sons da palavra “ilusório” e “recompensa” (šāqer e seker) são semelhantes, mas seu significado não é. Veja também a similaridade das palavras para “angústia” (sārār) e “pequena” (sar) em Provérbios 24:10. Este efeito literário geralmente é perdido na tradução.

Hipérbole – Este é um exagero consciente, por exemplo, Salmos 78:27 – “Também fez chover sobre eles carne como poeira e voláteis como areia dos mares”. Este texto é parte de um descritivo relato poético do milagre das codornizes. Para enfatizar os chuveiros de bênçãos de Deus, o número de codornizes é comparado à areia do mar.

(3) Figuras de associação

Metonímia – Nesta figura de retórica uma ideia é evocada ou nomeada por meio de uma palavra que se refere à mesma noção associada. Salmos 47:8 – “Deus reina sobre as nações; Deus se assenta no seu santo trono”. O trono de Deus está por seu reinado.

Sinédoque – Figura de retórica em que o todo pode ser posto por uma parte ou uma parte pelo todo. Salmos 26:10 – “em cujas mãos há crimes e cuja destra está cheia de subornos”. A destra ou mão direita como parte do corpo está por toda a pessoa.

Quando lida com figuras de comparação, associação ou plenitude, o intérprete deve ser cuidadoso para não pressioná-las além do que o autor pretendia originalmente. “As figuras de retórica não são de tal modo exatas em seus significados como é a prosa. Contudo, o que falta a essas figuras em precisão, é certamente compensado em sua ampliada capacidade de traçar quadros para nós e dar uma vivacidade que a prosa ordinária não pode”.5

Tipos de poesia hebraica

A poesia hebraica teve sua origem na vida das pessoas. Todavia, ela não era recreativa, mas funcional. Desempenhava um papel importante na vida da nação israelita, principalmente em seu relacionamento com Deus. Portanto, as mensagens proféticas eram frequentemente dadas em forma poética. Não somente eram mais facilmente lembradas, mas também eram mais emotivas e poderosas em sua mensagem.6

Cânticos de guerra – Os cânticos de guerra foram uma das mais antigas formas de poesia (Juízes 7:18 e 20). Os mais conhecidos são os cânticos de vitória de Moisés (Êxodo 15:1 a 18) e Débora (Juízes 5). Geralmente enfatizavam arrebatadoramente o poder de Deus que derrotava o inimigo.

Cânticos de amor – O mais famoso cântico de amor das Escrituras é o livro Cantares de Salomão. Outra expressão poética do amor humano encontra-se em Rute 1:16 e 17, em que Rute profere algumas das mais memoráveis palavras de todas as Escrituras.

Lamentos – O lamento, um clamor angustiado a Deus, é a forma poética mais comum dos Salmos. Mais de sessenta salmos são lamentos individuais (Salmos 3) ou lamentos coletivos (Salmos 9). Geralmente, um lamento tem vários, ou todos os elementos seguintes: (a) A invocatória a Deus – Salmos 22:1 – “Deus meu, Deus meu”. (b) Uma descrição da angústia – Salmos 57:4 – “Acha-se a minha alma entre leões, ávidos de devorar os filhos dos homens; lanças e flechas são os seus dentes”. (c) Apelo por livramento – Salmos 3:7 – “Levanta-te, SENHOR! Salva-me, Deus meu”. (d) Uma declaração de confiança em Deus – Salmos 28:7 – “O SENHOR é a minha força e o meu escudo; nele o meu coração confia”. (e) Confissão de pecado – Salmos 51:4 – “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mal perante os teus olhos”. (f) Um voto para fazer certas coisas – Salmos 61:5 – “Pois ouviste, ó Deus, os meus votos”. (g) Uma conclusão, que pode estar na forma de louvor ou ação de graças – Salmos 30:12 – “SENHOR, Deus meu, graças te darei para sempre”.

Hinos – Hinos, ou cânticos de louvor, eram usados no culto divino. Os estudiosos têm identificado três tipos específicos de hinos em que Deus é louvado como: (a) Criador (Salmos 8, 19, 104, 148), (b) Protetor de Israel (Salmos 66, 100, 111, 114), e (c) Senhor da História (Salmos 33, 103, 105, 106, 135).7 Além disso, há hinos de ação de graças que expressam gratidão a Deus por sua resposta a orações específicas (Salmos 18, 30, 32, 65, 67).

Salmos imprecatórios – São geralmente salmos de lamento em que o desejo de vindicação do escritor, baseado no princípio da retribuição, a lex talionis [lei de talião], são especialmente notáveis (Salmos 12, 35, 52, 58-59, 69, 70, 83, 109, 137). Frequentemente, declarações desses salmos são chocantes aos ouvidos modernos: “Feliz aquele que pegar teus filhos e esmagá-los contra a pedra” (Salmos 137:9). Todavia, é preciso lembrar que o pensamento por trás do desejo de vingança é bíblico (Deuteronômio 32:35 – “A mim me pertence a vingança”), mas como isso se expressa é humano. “Uma parte da linguagem provém das maldições da aliança… Em outros casos os conceitos e a fraseologia parecem ser tirados de alguma atividade punitiva divina contra pecadores ao longo da história e apontar para isto”.8 A linguagem hiperbólica é comum em tais passagens emocionais.

Diretrizes para a interpretação da poesia hebraica       

A poesia requer uma abordagem hermenêutica diferente daquela usada em narrativa. A narrativa traz informação e ensina por ilustração; a poesia dá lugar a uma expressão mais livre de inspiração. Aqui estão algumas diretrizes básicas para a interpretação da poesia hebraica.

(1) Tome nota da forma do poema ou do hino – O elemento primário da poesia hebraica é a forma de linhas paralelas conforme já indicadas.

(2) Agrupe as linhas paralelas – Sendo que o poeta está usando linguagem muito emotiva e colorida, o intérprete deve caminhar numa linha frágil entre ler demasiado em linhas individuais e admitir sinonímia sempre que os pensamentos sejam similares. O contexto deve indicar se as cláusulas são ou não sinônimas.

(3) Estude a linguagem metafórica – Na poesia hebraica, a linguagem figurativa é predominante e mais difícil de compreender do que a prosa. 38 e Salmos 19 não visam ensinar cosmologia hebraica; nem a declaração “Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro?” (Salmos 121:1) significa que Deus vive nos montes. Contudo, o ambiente para tais imagens adiciona riqueza e profundidade compreensão destas passagens.

(4) Onde for possível, note o ambiente histórico do texto – No livro de Salmos, os títulos de catorze salmos (3, 7, 18, 30, 34, 51, 52, 54, 56, 57, 59, 60, 63, 142) proveem algumas referências históricas. Conquanto os eruditos tenham debatido a autenticidade desses títulos, há pouco motivo para duvidar da fidedignidade básica dos mesmos, embora não sejam necessariamente inspirados. Os comentários e dicionários são úteis na elucidação dos antecedentes desses salmos.

(5) Estude os textos poéticos em função de seu tipo e posição básica – Um salmo imprecatório precisa ser estudado diferentemente de um salmo de louvor.9 As declarações acerca do relacionamento de Deus com seu povo em Provérbios e Eclesiastes diferem de tipo para tipo (provérbios, frases dialéticas ou experienciais, etc.), e a aplicabilidade às presentes circunstâncias muda de um caso para outro.

(6) Estude as passagens poéticas como um todo antes de tirar conclusões – Depois de notar a estrutura básica de um poema e estudar os detalhes, o intérprete precisa tomar nota de toda a passagem antes de explicar o seu significado.

(7) Estude os salmos messiânicos em função do seu significado histórico – Partindo da perspectiva dos escritores do Novo Testamento, muitos salmos foram interpretados como salmos messiânicos; suas palavras foram citadas com referência específica a Jesus (Salmos 2, 22, 110). Todavia, no antigo Israel, com exceção de Salmos 110, esses salmos não eram vistos como se referindo diretamente ao Messias; eles tinham um significado histórico no tempo em que foram escritos. Esses salmos, portanto, devem primeiro ser estudados para determinar o significado original pretendido pelo autor antes de serem aplicados ao Messias. Contudo, além do significado histórico, eles “proveem indicadores verbais que identificam a natureza tipológica desses salmos”.10 Em Salmos 22, por exemplo, muitos aspectos transcendem de longe as reais experiências de Davi. Eles podem ser compreendidos plenamente apenas no contexto do sofrimento de Jesus.

Na interpretação das porções poéticas das Escrituras, a palavra final não deve ser técnica, mas devocional, apresentando aos ouvintes as maravilhas do trato de Deus com o homem e sua graça no plano da redenção.

Literatura sapiencial hebraica

Além das diretrizes para a interpretação da poesia hebraica, será proveitosa uma compreensão das características especiais da literatura sapiencial hebraica. O título “Literatura Sapiencial” é usado por eruditos bíblicos para designar os livros de Provérbios, e Eclesiastes. A erudição católica inclui os livros apócrifos Eclesiástico (Ben Sirac) e Sabedoria de Salomão. Alguns sábios também incluem alguns salmos, geralmente chamados Salmos Sapienciais (Salmos 1; 32; 34; 37; 49; 73; 112; 127; 128 e 133) sob o gênero sapiencial. Com respeito a Cantares de Salomão, há diferentes opiniões, porém, muitos estudiosos da Bíblia argumentariam que embora o livro seja, ou pareça ser, uma coleção de poemas de amor, ele provavelmente foi preservado pelos sábios israelitas.

Na interpretação da literatura sapiencial, é importante ter uma compreensão básica da abordagem bíblica à sabedoria. Aqui podemos fazer apenas algumas observações gerais que esperançosamente animarão o leitor a estudar os próprios livros a fim de obter uma compreensão melhor do mundo intelectual dos pensadores da sabedoria. A sabedoria bíblica está interessada na relação entre a natureza e o homem e na vida social do ser humano. A literatura sapiencial ilustra o interesse hebreu na natureza e no uso da mente humana para estudá-la (1Reis 4:33). As pessoas sábias também examinavam a conduta humana e aprendiam dessas observações como usufruir a vida. Descobriam o valor da linguagem adequada na interação social, a importância do trabalho, e os riscos e perigos envolvidos nas relações sociais impróprias.

A motivação e o propósito para o estudo da natureza e dos seres humanos era significativamente diferente dos da moderna pesquisa científica. Os israelitas pressupunham que o Senhor era o seu Criador e que o mundo natural foi também o resultado da atividade criativa de Deus. O objetivo de explorar a natureza não era descobrir a origem de sua existência, mas observar e compreender o poder e a sabedoria do Criador.

Os israelitas criam que a sabedoria do seu Criador e Redentor era comunicada a eles, não somente pelas palavras dos profetas, mas também por meio da Criação. Os sábios, portanto, passavam tempo explorando a Criação de Deus a fim de apreender essa sabedoria. Mas a sabedoria era ao mesmo tempo um dom de Deus. “Porque o SENHOR dá a sabedoria, e da sua boca vem a inteligência e o entendimento” (Provérbios 2:6).

A aquisição de sabedoria era precedida pelo “temor [reverência] do SENHOR” (Provérbios 1:7). Isto não significava que o temor/reverência era o principal elemento na aquisição de sabedoria. Significava que o temor do Senhor era a esfera dentro da qual era possível obter sabedoria. Uma vez que esta pressuposição fosse aceita, a pessoa sábia saía em busca da sabedoria. Como era isto feito? Usando basicamente os mesmos princípios que usamos hoje. Eles observavam o mundo natural e a interação social dos seres humanos, analisavam o que observavam, e tiravam conclusões que exerciam um impacto sobre sua qualidade de vida (Provérbios 24:30 a 34). Em outras palavras, eles usavam as habilidades racionais que Deus lhes havia dado e obedeciam à sua ordem de explorar a inteligibilidade do mundo criado. No processo de análise, também descobriam as limitações da sabedoria. O que encontramos nos livros sapienciais do Antigo Testamento é o resultado desta busca de sabedoria.

Interpretando o livro de Provérbios

O que é um provérbio? O termo provérbio é difícil de definir. O termo hebraico māšāl (“ditado”, “adágio”, “cântico”, “poesia”) tem uma ampla extensão de significados, tornando-o um tanto impreciso para uma definição válida. A raiz verbal hebraica “parece indicar comparação, um significado que é ilustrado, implícita ou explicitamente, em muitos dos adágios do livro.”11 Talvez possamos dizer que um provérbio compara, contrasta, aponta para elementos similares ou dissimilares, expressando ideias em ditos populares que contêm um ensinamento explícito ou implícito. Tais provérbios tratam muito de uma parte da vida diária conforme indicam 1Samuel 10:12 e 1Samuel 24:13. Em geral o livro de Provérbios tem uma opinião muito elevada da função e da importância da sabedoria na existência humana, sem negar algumas de suas limitações. A sabedoria, uma característica divina, é personificada no livro como um ser que interage com os seres humanos. Em Provérbios 1:20 a 33; Provérbios 8:1 a 3; Provérbios 9:1 a 6, e 13 a 18, ela (sabedoria) é posta em oposição à “mulher-loucura”. Em outros lugares, as atividades da sabedoria se assemelham estritamente às de Yahweh. Ambos derramam o Espírito (Provérbios 1:23; Isaías 44:3); ambos convidaram a Israel, mas este se recusou a responder (Provérbios 1:24; Isaías 66:4); ambos promovem justiça (Provérbios 8:15; Isaías 11:4 e 5); etc. A sabedoria é a essência da natureza de Deus.

O livro de Provérbios é escrito em forma poética; portanto, os princípios utilizados na interpretação da poesia também se aplicam ao estudo deste livro. À parte disto, a interpretação de Provérbios poderia ser facilitada tomando-se em consideração as seguintes sugestões:

Primeira: devemos estar familiarizados com a estrutura do livro. Ele é formado por várias coleções de provérbios de diferentes indivíduos, escritos em diferentes períodos históricos.

1:1 a 9:18 – Provérbios de Salomão = (1:1 a 7) Título e introdução; (1:8 a 9:18) Texto principal.

10:1 a 22:16 – Provérbios de Salomão = (10:1) Título; (10:2 a 22:16) Texto principal.

22:17 a 24:22 – Palavras dos Sábios = (22:17 a 21) Introdução; (22:22 a 24:22) Texto principal

24:23 a 34 – Mais palavras dos Sábios = (24:23a) Título; (24:23b a 34) Texto principal

25:1 a 29:27 – Provérbios de Salomão copiados pelos homens de Ezequias = (25:1) Título; (25:2 a 29-27) Texto principal

30:1 a 33 – Palavras de Agur = (30:1) Título; (30:2 a 33) texto principal

31:1 a 9 – Palavras de Lemuel = (31:1) Título; (31:2 a 9) texto principal

31:10-31 – Poema acróstico à “Mulher Virtuosa”

Este esboço é útil se alguém está interessado em comparar a contribuição de cada coleção para um assunto específico. É curioso encontrar duas coleções de provérbios de indivíduos que talvez não tenham sido israelitas (Agur e Lemuel). Como esses provérbios encontraram um lugar no livro? A sugestão mais lógica é que o Senhor guiou o profeta na seleção desse material, porque continha verdades compatíveis com a vontade revelada de Deus para Israel.

Segunda: muitos dos provérbios são simples unidades de significado sem um contexto imediato que pudesse ajudar-nos a interpretá-los. Em muitos casos, o significado do provérbio está claro, mas, em outros casos, é difícil determinar o seu significado. Todavia, é útil nos familiarizar com o contexto cultural do escritor a fim de sermos capazes de obter uma compreensão melhor das imagens usadas nos provérbios.

Terceira: sendo que a finalidade do livro de Provérbios é dada claramente, o intérprete deve prestar atenção especial a ela e utilizá-la como uma chave hermenêutica. No prólogo do livro, Salomão enumera uma série de objetivos que ele está tentando atingir através da coleção (Provérbios 1:2 a 6). Mas o propósito supremo da busca de sabedoria é sumariado em Provérbios 8:33 a 36. A sabedoria é tão importante, porque “o que me acha, acha a vida… todos os que me aborrecem amam a morte”. A questão fundamental é de vida e morte. A centralidade deste aspecto é tal que a sabedoria é descrita como uma “árvore de vida” (Provérbios 3:18). Esta ideia, juntamente com o prólogo deve guiar o intérprete na interpretação do livro.

Quarta: saber um pouco sobre as diferentes formas literárias usadas em Provérbios será de auxílio ao intérprete. Como sugere o título, a forma mais comum é o modelo provérbio ou enigma. Os provérbios geralmente são uma descrição ou declaração acerca de algo com uma peculiaridade específica de sabedoria (Provérbios 12:5; e 26:1). Temos muitos tipos diferentes de provérbios, entre eles os ditos numéricos para indicar que a lista de itens não é completa (Provérbios 30:7 e 15); ditos melhor-do-que, para revelar o valor superior de uma determinada situação ou conduta sobre a outra opção (Provérbios 12:9; e 16:8); e o enigma comparativo, empregado para desencorajar uma ação específica (Provérbios 26:8).

Uma outra forma literária são as admoestações. Podem conter uma ordem para fazer alguma coisa (Provérbios 3:1; e 6:6) ou uma proibição para não fazer algo (Provérbios 22:24; e 23:6), e, em alguns casos, os dois estão combinados em um (Provérbios 1:8). Também encontramos relatos autobiográficos que contêm lições ou ensinamentos morais (Provérbios 4:3 a 9; e 24:30 a 34). A consciência do que o escritor bíblico está fazendo ajudará o intérprete a compreender o que está sendo dito.

Quinta: o livro de Provérbios pode ser estudado usando-se diferentes abordagens. Uma delas pode estudar passagens em que há um grupo de provérbios tratando do mesmo assunto. Isto facilita o estudo de um tema específico (exemplo, o valor da sabedoria [Provérbios 2:1 a 4:27; e 8:1 a 9:18]; pobreza [Provérbios 24:30 a 34]). Mas em muitos casos, os provérbios que tratam do mesmo assunto são encontrados em lugares diferentes ao longo do livro. Nestes casos, é melhor agrupar as passagens por estudo cuidadoso a fim de descobrir o que o livro ensina sobre um tema específico. Isto pode ser feito por áreas de matérias ou de assuntos, tais como oração, ódio, impiedade, justiça, etc., ou pelo estudo dos personagens mencionados no livro (ex.: o justo, o ímpio, o sábio, o tolo, o escarnecedor, o preguiçoso, a sedutora).

Interpretando o livro de

O livro de é considerado por alguns como uma das maiores obras literárias da humanidade. Os eventos por ele descritos pertencem aos dias pré-mosaicos, mas segundo uma primitiva tradição judaica, eles foram anotados por Moisés. A beleza da linguagem, seu estilo literário e o seu conteúdo teológico o destacam como um livro excepcional dentro da própria Bíblia. Surpreendentemente, tanto quanto sabemos, nenhum dos protagonistas são israelitas, embora adorassem ao Senhor (12:9). É um livro sapiencial na forma de uma narrativa, tornando sua leitura mais interessante. É uma discussão do sofrimento humano conforme está sendo experimentado por Jó, o principal personagem do livro. Na discussão a mais inquietante questão diz respeito ao papel de Deus na experiência de Jó. É ali que o problema do valor e da função da sabedoria dolorosamente vem à tona. Provê a sabedoria uma resposta para o sofrimento dos inocentes?

Com exceção do prólogo e do epílogo, o restante do livro é escrito em poesia. Além dos princípios para a interpretação da poesia discutidos anteriormente, as seguintes sugestões devem ser proveitosas na interpretação do livro:

Primeira: o livro consiste primariamente de diálogos entre Jó e seus amigos e entre Deus e Jó. Esta natureza dialogal do documento ajudará o leitor a seguir o fluxo de ideias e a determinar se existe ou não uma progressão nos argumentos que levam a uma determinação do enredo teológico.

Segunda: o diálogo é formado pelos três ciclos seguintes introduzidos por um discurso de Jó (Jó 3):

Primeiro ciclo                   

Discurso de Elifaz: 4 a 5 – Resposta de Jó: 6 a 7

Discurso de Bildade: 8 – Resposta de Jó: 9 e 10

Discurso de Zofar: 11 – Resposta de Jó: 12 a 14

Segundo ciclo                  

Discurso de Elifaz: 15 – Resposta de Jó: 16 e 17

Discurso de Bildade: 18 – Resposta de Jó: 19

Discurso de Zofar: 20 – Resposta de Jó: 21

Terceiro ciclo                    

Discurso de Elifaz: 22 – Resposta de Jó: 23 e 24

Discurso de Bildade: 25 – Resposta de Jó: 26 e 27

Esta organização é útil ao intérprete em no mínimo dois sentidos: (a) Pela leitura de todos os discursos de cada um dos amigos de Jó de uma vez, é possível compreender melhor seus argumentos. A leitura de todas as respostas de Jó do mesmo modo facilitará a compreensão do que ele está dizendo, bem como a intensidade de sua dor psicológica, teológica e espiritual. (b) Se os discursos são lidos na ordem dada no texto, será possível estabelecer mais claramente as áreas de acordos e de desacordos entre Jó e seus amigos.

Terceira: a interpretação de 29:1 a 31:40 é importante para a compreensão do livro. Este monólogo parece precipitar a “resolução” do enredo do livro. Em 31, Jó parece pronunciar um juramento de inocência. Se isto está correto, significa que Jó está exigindo que Deus apresente a evidência que tem contra ele ou doutro modo exonere-o de quaisquer acusações. Este é o clímax da defesa de Jó; deste ponto em diante ele permanece silente, esperando que Deus fale.

Quarta: tentar estabelecer o propósito do discurso do jovem Eliú pode ser uma tarefa difícil, mas que vale a pena tentar. Todos os outros discursos terminaram; Jó está em silêncio, esperando que o Senhor intervenha, e inesperadamente Eliú fala com clareza. O que significa isto? Está ele falando por Deus? Está defendendo-o?

Quinta: é útil observar que a última parte do livro é outro diálogo, desta vez entre Deus e Jó: primeiro discurso de Deus ( 38:1 a 40:2); resposta de Jó (40:3 a 5); segundo discurso de Deus (40:6 a 41:34); resposta de Jó (42:1 a 6). Esta é uma das mais desafiadoras e interessantes seções do livro. Responde Deus a todas as perguntas ou mesmo a algumas das perguntas suscitadas nos diálogos entre Jó e seus amigos? Por que é tão enfatizado o poder criador e mantenedor de Deus? É esta a maneira com que Deus lida com a reivindicação de inocência de Jó? Qual é a finalidade da descrição do beemote [hipopótamo] e do leviatã [crocodilo]? Há uma progressão de ideias nas respostas de Jó aos discursos divinos?

Sexta: o prólogo e o epílogo constituem a devida perspectiva teológica para a compreensão de alguns dos problemas básicos suscitados no livro. O intérprete deve prestar cuidadosa atenção ao seu conteúdo. O mistério do sofrimento não é totalmente resolvido, mas, colocando-o em uma perspectiva cósmica, algumas novas ideias são providas, e são revelados os limites da sabedoria humana.

Interpretando o livro de Eclesiastes

Em Eclesiastes 1:1 o autor identifica-se como filho de Davi, rei em Jerusalém. Portanto, a opinião tradicional, aceita igualmente por eruditos judeus e cristãos, tem sido que Salomão escreveu o livro em sua inteireza. Conquanto em alguns lugares o livro pareça um tanto pessimista, é preciso lembrar que a finalidade básica do livro é demonstrar que, à parte de Deus, a vida carece de qualquer significado fundamental e não significa mais do que vaidade.

A história da interpretação de Eclesiastes revela uma diversidade de opiniões concernentes à sua mensagem. Muitos acham que o livro contém uma visão muito pessimista da vida que geralmente leva alguém a considerar os seres humanos como vítimas de eventos fora do seu controle. Outros têm concluído que o livro é fundamentalmente agnóstico – que promove a ideia de que é impossível compreender o que ocorre debaixo do sol. Muitos argumentariam que o autor do livro não é um verdadeiro agnóstico porque ele faz afirmações específicas acerca de Deus, mas rejeita a possibilidade de se obter uma verdadeira compreensão da existência humana.

O livro de Eclesiastes é realmente difícil de interpretar. Há no livro elementos de pessimismo, cepticismo, e mesmo alguns aspectos de agnosticismo. As seguintes sugestões serão úteis na interpretação do livro.

Primeira: a finalidade principal do livro é mencionada em Eclesiastes 12:9: “O Pregador, além de sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento”. O livro tem uma função pedagógica ou didática. Como todos os livros sapienciais, tenta sumariar as descobertas do sábio a fim de instruir outros e torná-los sábios. Isto significa que o livro não é uma rejeição do valor da sabedoria para a existência humana. Talvez questione o valor primordial da sabedoria humana, mas não promove a estultícia.

Segunda: pode-se colocar o livro dentro da teologia sapiencial israelita. Em outras palavras, não deve ser interpretado isolado de outros livros sapienciais. Eles proveem o devido contexto para sua interpretação.

Terceira: embora os sábios não tenham sido capazes de concordar sobre o esboço da estrutura literária do livro, é claro que algumas seções são agrupadas tematicamente. Isto é proveitoso para o intérprete. Por exemplo, em Eclesiastes 1:4 a 11, o cosmo é estudado e tira-se a conclusão de que não há nada novo debaixo do sol. Em Eclesiastes 2, encontramos materiais autobiográficos, descrevendo a busca de significado do sábio na alegria, no trabalho, na sabedoria e na labuta. A conclusão da seção é que tudo é sem significado.

Quarta: é preciso ser dada atenção especial aos assuntos que são tratados várias vezes no livro. Por exemplo, a expressão “vaidade de vaidades” ou “Sem sentido! Sem sentido!… Tudo é sem sentido” aparece no início e no fim do livro (Eclesiastes 1:2; e 12:8). Na língua hebraica, a repetição era usada para expressar o superlativo – “absoluta vaidade!” Qualquer coisa que os seres humanos possam buscar em lugar de Deus é absoluta vaidade, segundo o Pregador.

Quinta: a fim colocar o livro em sua devida perspectiva teológica o leitor deve prestar especial atenção ao epílogo (Eclesiastes 12:9 a 14). A voz que ali ouvimos é a voz do narrador sumariando para o leitor a mensagem fundamental do livro. Isto é precisamente o que torna o epílogo tão importante para o intérprete. Torna claro que o pessimismo não é a mensagem principal do livro. Certamente “tudo é sem sentido”, porém existe mais na vida do que simplesmente procurar encontrar seu presente significado. O intérprete deve explorar cuidadosamente a contribuição do epílogo para a mensagem e para a teologia do livro. Qual é a contribuição? Em que sentido ela põe limites ao conteúdo do restante do livro? Qual é o seu significado para uma leitura cristã do livro?

Interpretando o livro Cantares de Salomão

A história da interpretação deste livro, que no verso de abertura é atribuído ao rei Salomão, revela bastante confusão que deve alertar o leitor quanto à complexidade da tarefa interpretativa. A abordagem mais comum tem sido tratá-lo como uma alegoria (veja capítulo 13 – Interpretação dos tipos, parábolas e alegorias bíblicas). Primariamente, porque o livro parece ser muito secular, mesmo erótico. A abordagem alegórica procura significados em um texto além do sentido literal da linguagem. No caso do livro Cantares de Salomão, compreende-se ser não-histórico, mas contendo profundas verdades espirituais. Usando o método alegórico, intérpretes judeus concluíram que a figura masculina dos poemas era o Senhor e a menina ulamita era Israel. Outros viam na experiência do homem e da mulher a maneira como a sabedoria e o estudante da sabedoria devem relacionar-se um com o outro. Entre os cristãos, o livro tem sido compreendido com uma descrição do relacionamento entre Cristo e a Igreja. Isto é, seu valor espiritual tem sido decifrado por meio da abordagem alegórica. Isto suscita a indagação se o texto em si está sugerindo tal abordagem e se, a despeito da aparente dimensão secular do texto, há no livro um interesse ou mensagem teológica.

Não há nenhuma indicação nas Escrituras de que o livro seja uma alegoria. Nem Jesus nem qualquer dos escritores do Novo Testamento se referiu a ele; mas isto não significa que este cântico de amor não tenha algum valor espiritual. As Escrituras ilustram repetidamente a união entre Deus e o seu povo pela relação de um esposo com sua esposa (Isaías 54:4 e 5; Jeremias 3:14; 2Coríntios 11:2), e Ellen G. White, ocasionalmente, usou passagens do livro para ilustrar verdades espirituais;12 mas isto não significa que ela considerava o livro como uma alegoria ou que ela usou o método alegórico para interpretá-lo.

Como deve o livro ser interpretado?

Primeiro: o livro deve ser lido muitas vezes. Uma das coisas mais óbvias que o intérprete perceberá é o fato de que estamos lidando aqui com poesia de amor.

Segundo: os poemas são primariamente falados por dois indivíduos, a saber, uma mulher (Cantares 1:2) e um homem (Cantares 4:1 e 2). Há referências às filhas de Jerusalém, mas elas não parecem desempenhar qualquer papel ativo no livro (Cantares 1:5).

Terceiro: o livro é caracterizado por diálogos (Cantares 1:7, 8, 15 e 16; e 8:13 e 14) e monólogos (Cantares 3:1 a 5; e 6:4 a 10). Seu estudo é útil na compreensão da natureza dos poemas.

Quarto: é preciso ser dada atenção especial à linguagem que é usada para que os poemas possam ser interpretados dentro do contexto cultural em que foram escritos. Isto significa que o intérprete deve ter acesso a comentários ou dicionários bíblicos que forneçam esta informação. O uso de uma concordância é provavelmente a melhor maneira de compreender a terminologia específica usada no livro. Às vezes é difícil compreender a que ponto está se querendo chegar através de uma comparação. Por exemplo, o homem diz: “Teus dois seios são como duas corças, gêmeas de uma gazela, que se apascentam entre os lírios” (Cantares 4:5). Uma possível interpretação desta comparação vê as gazelas como “símbolos de vida e renovação”.13 As corças representam os elementos simbólicos de suavidade e jocosidade. Diz O. Keel: “A literatura hebraica não vincula ao termo ‘seios” noções de forma, mas noções de bênção (Gênesis 49:25), de amabilidade, nutrição, e formação da confiança (Salmos 22:9; 3:12), de amenidade, cálida segurança… em resumo, noções de plena participação na vida e na renovação da vida”.14 Isto significa que “os seios e as corças de uma gazela simbolizam o entusiasmo da vida, um inspirador e vitorioso esforço contra a morte”.15

Quinto: deve-se tomar nota da liberdade com que o escritor bíblico fala acerca de assuntos sexuais. Isto revela ao intérprete a maneira como a Bíblia considera as relações sexuais. Sexto: a intenção fundamental ou mensagem dos poemas precisa ser investigada. Isto pode ser feito prestando-se especial atenção ao que é enfatizado no livro por meio das repetições. Tais ideias repetidas como amor, matrimônio, anseio pelo outro, e as referências ao jardim serão úteis na formulação e no desenvolvimento da teologia do livro.

Conclusão

Na interpretação dos Salmos e da literatura sapiencial das Escrituras, precisamos usar os mesmos princípios que usamos em outras partes das Escrituras – análise linguística e contextual e estudos dos antecedentes no que concerne ao texto ou passagem. Além disso, será de proveito se o intérprete tiver uma boa compreensão das características especiais da poesia hebraica e do conceito de sabedoria no Antigo Testamento.

Ao lermos a literatura sapiencial precisamos lembrar que ela ensina o viver racional, que, ao mesmo tempo, é o viver bom e piedoso. E ensina como quando vêm os problemas que o sábio pode suportar. Por isso, o senso comum e o são juízo ajudarão o intérprete a compreender o que Deus está dizendo por meio dessas porções poéticas das Escrituras.

Referências

  1. Robert Lowth, De sacra poesi Hebraeorum praelectionis academicae (Preleções sobre a Sacra Poesia dos Hebreus) (Oxford: Clarendon, 1753), citado em An Introduction to Biblical Hermeneutics, de Walter Kaiser e Moises Silva (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), p. 88.
  2. Nomeado segundo a letra grega qui (X). Refere-se à inversão de elementos afins dentro das construções paralelas.
  3. Kaiser e Silva, p. 91.
  4. Ibid., p. 94.
  5. Ibid., p. 98.
  6. As duas seções seguintes são devedoras ao material encontrado em The Hermeneutical Spiral, de Grant R. Osborne (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1991), p. 181-185, 187-190.
  7. Gordon Fee e Douglas Stuart, How to Read the Bible for All Its Worth (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1981), p. 176-177.
  8. Ángel M. Rodriguez, “Inspiration and the Imprecatory Psalms”, JATS 5.1 (1994): 57.
  9. Veja Rodriguez, 57-58.
  10. Richard M. Davidson, “New Testament Use of the Old Testament”, JATS 5.1 (1994): 23.
  11. Roland E. Murphy, Proverbs (Nashville, TN: Thomas Nelson, 1998), xxii.
  12. No livro Educação, p. 261, Ellen G. White ilustra a necessidade de um relacionamento pessoal com Jesus citando Cantares de Salomão 2:3 e 4; e repetidamente se refere a Jesus como “o mais distinguido entre dez mil”, “totalmente desejável”, como se encontra em Cantares de Salomão 5:10 e 16 (Testemunhos Para a Igreja, vol. 6, p. 175; Evangelismo, p. 186).
  13. Othmar Keel, Song of Songs (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1994), p. 150.
  14. Ibid.
  15. Ibid.

Bibliografia selecionada

Clements, Ronald E. Wisdom Theology. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1992.

Hartley, John E. The Book of Job. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1988.

Kaiser, Walter e Silva, Moises. An Introduction to Biblical Hermeneutics. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994.

Keel, Othmar. Song of Songs. Minneapolis, MN: Fortress, 1994.

Kidner, Derek. An Introduction to Wisdom Literature: The Wisdom of Proverbs, Job and Ecclesiastes. Downdrs Grove, IL: InterVarsity, 1985.

Longman, Tremper, III. The Book of Ecclesiastes. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998.

Murphy, Roland E. The Tree of Life: An Exploration of Biblical Wisdom Literature. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1996.

Murphy, Roland E. Proverbs. Nashville, TN: Thomas Nelson, 1998.

Osborne, Grant R. The Hermeneutical Spiral. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1991.

Weiser, Artur. The Psalms. The Old Testament Library. Philadelphia: Westminster Press, 1962.

Gerhard Pfandl e Ángel Manuel Rodriguez, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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INTERPRETANDO A PROFECIA DO ANTIGO TESTAMENTO

Introdução

Este capítulo focaliza a interpretação da profecia do Antigo Testamento, exceto as profecias apocalípticas de Daniel, que são discutidas no capítulo 14 – A hermenêutica da apocalíptica bíblica. As mensagens dos profetas do Antigo Testamento incluíam mensagens não-preditivas bem como predições divinas. Aqui a atenção é dirigida para as numerosas profecias preditivas que se estima abrangerem quase trinta por cento do Antigo Testamento. Estas são encontradas não somente nos livros dos profetas maiores e menores, mas também no Pentateuco, nos livros históricos e na literatura hínica/sapiencial.

Observações gerais

No estudo das profecias preditivas do Antigo Testamento, várias observações gerais e preliminares que surgem do autotestemunho bíblico são fundamentais.

Primeira: a Bíblia afirma especificamente que Deus é capaz de predizer o futuro próximo e distante (Deuteronômio 18:22; Isaías 46:10), e o intérprete não deve ser influenciado por modernas pressuposições críticas que rejeitam o conceito de predição futura e presciência divina.

Segunda: a profecia preditiva não era dada simplesmente para satisfazer a curiosidade acerca de eventos futuros, mas para propósitos morais, tais como a confirmação da fé em Deus (Isaías 45:21; Isaías 46:9 a 11; João 14:29) e a motivação ao viver santo (Gênesis 17:7 e 8; Êxodo 19:4 a 6).

Terceira: os mesmos passos básicos de análise cuidadosa seguidos na interpretação de qualquer passagem bíblica devem ser dados quando se interpreta uma profecia preditiva, inclusive atenção ao ambiente histórico, estrutura literária e outros aspectos literários, elementos gramaticais e sintáticos, significados de palavras dentro do contexto imediato e mensagens teológicas (para a elaboração destes princípios gerais, veja o capítulo 7 – Diretrizes para a interpretação das Escrituras).

Quarta: devemos reconhecer que no Antigo Testamento há dois diferentes gêneros ou tipos de profecia preditiva: apocalíptico (por exemplo, as visões de Daniel) e não-apocalíptico (frequentemente chamado profecia “clássica” ou “geral”). Tanto a profecia clássica quanto a profecia apocalíptica envolve regras hermenêuticas específicas de interpretação que surgem de um exame da evidência bíblica. (Os princípios de interpretação para a profecia apocalíptica são discutidos no capítulo 14 – A hermenêutica da apocalíptica bíblica). Algumas das principais diferenças entre a profecia clássica e a profecia apocalíptica podem ser resumidas no seguinte gráfico:

Dois gêneros de profecia preditiva no Antigo Testamento: Profecia Geral (Clássica) e Profecia Apocalíptica.

Profecia Geral (Clássica) – Enfoque primário: local/nacional.
Profecia Apocalíptica – Enfoque primário universal da história, com ênfase no fim do tempo.

Profecia Geral (Clássica) – Escatologia: dentro da história (nacional, geopolítica, étnica).
Profecia Apocalíptica – Escatologia: vem de fora da história (final, universal).

Profecia Geral (Clássica) – Alguns contrastes.
Profecia Apocalíptica – Notáveis contrastes (dualismo): temporais (era presente/era vindoura); espaciais (terrestre/celestial); éticos (justos/ímpios)

Profecia Geral (Clássica) – Simbolismo limitado com imagens reais.
Profecia Apocalíptica – Simbolismo profuso, complexo.

Profecia Geral (Clássica) – Base: “Palavra do Senhor” (mais algumas visões).
Profecia Apocalíptica – Base: visões/sonhos, anjo intérprete.

Profecia Geral (Clássica) – Condicionalidade (dois possíveis cenários são delineados para a própria geração do profeta: o caminho da bênção ou da maldição, dependendo da reação do povo ao concerto), embora seja certo um cumprimento final das promessas do concerto ou aliança para o povo de Deus.
Profecia Apocalíptica – Determinismo (o curso real dos eventos humanos, conforme moldados pela mão divina na história e reconhecidos pela presciência divina das escolhas humanas é anunciado e selado para ser revelado à geração do tempo do fim), com um resultado final positivo para o povo de Deus.

Profecia Geral (Clássica) – “Telescopia” profética; frequentemente o profeta salta da crise local, contemporânea, para o escatológico Dia do Senhor (por exemplo, Joel 2 e 3) de um pico do cumprimento preditivo último para outro, sem referência ao vale no meio deles.
Profecia Apocalíptica – Visões apresentam a extensão plena da história, desde o tempo do profeta até o fim do tempo, com uma lacuna entre o cenário local e o fim ou entre os estágios do cumprimento profético.

Como uma quinta observação geral, há várias formas preditivas diferentes no Antigo Testamento. A forma mais comum é o oráculo falado (introduzido por “Veio a mim a palavra do Senhor…” ou fraseologia semelhante), que pode ser registrada em prosa ou poesia e pode utilizar linguagem altamente figurativa, bem como declarações literais, diretas. As predições também podem ser simbolicamente dramatizadas como na vida de Jeremias (Jeremias 13:1; Jeremias 19:1; Jeremias 27:2) e de Ezequiel (Ezequiel 2:8 a 3:3; Ezequiel 4:1 a 17; Ezequiel 5:1 a 17), embora esses sinais-ações sejam geralmente acompanhados de uma interpretação verbal divina de seu significado. A tipologia é também uma espécie de profecia preditiva, sendo que o divinamente ordenado tipo do Antigo Testamento (uma pessoa, evento, ou instituição) aponta ao futuro para o seu cumprimento antitípico escatológico em Jesus Cristo e nas realidades do evangelho produzidas por Ele. O tipo em si geralmente é “mudo” no que concerne à sua natureza preditiva. Todavia, como acontece com os sinais-ações, há regularmente algum indicador verbal acompanhando o tipo (ou, ao menos, aparecendo em algum lugar do Antigo Testamento em antecipação do cumprimento no Novo Testamento) que anuncia o seu caráter preditivo.2

Como uma sexta observação, devemos sempre ser cautelosos com referência a profecias não-cumpridas do Antigo Testamento, principalmente se o Novo Testamento não lida diretamente com essas passagens. O conselho de Jesus quanto à profecia é válido: Ela é dada para que “quando acontecer, vós creiais” (João 14:29). Antes que aconteçam, não podemos compreender cada detalhe das predições do Antigo Testamento, mesmo que o contorno básico dos eventos e dos problemas seja claro.

Finalmente, há três importantes categorias de profecias preditivas no Antigo Testamento (fora de Daniel): (1) profecias messiânicas; (2) oráculos contra as nações estrangeiras; (3) e promessas/profecias do reino centralizadas na aliança dada a Israel como uma entidade geopolítica, inclusive profecias do fim do tempo envolvendo a luta final e mundial entre Israel e seus inimigos. Nas páginas seguintes, discutiremos sucessivamente cada uma destas categorias.

Profecias messiânicas

Dezenas de profecias específicas concernentes ao Messias aparecem ao longo das várias partes do Antigo Testamento. Aqui podemos exemplificar apenas algumas. Predições de que o Messias seguramente viria e realizaria sua obra salvífica, que não dependem da escolha humana, são incondicionais nas profecias clássicas, embora descrições dos resultados de sua obra entre o povo do concerto ou da aliança e o restante do mundo dependam da escolha humana. Elas são tratadas em diversas seções deste capítulo.

A primeira promessa do MessiasGênesis 3:15

Esta passagem contém a primeira promessa messiânica das Escrituras. Todo o terceiro capítulo de Gênesis é organizado em uma estrutura quiástica e, exatamente no centro, no ápice do quiasmo, nos versos 14 e 15, encontra-se a primeira promessa evangélica.

A última parte de Gênesis 3:15 vai ao âmago desta promessa e mostra que ela está centralizada em uma Pessoa. Deus diz à serpente: “Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”3 Neste verso, o conflito se estreita de muitos descendentes (uma “semente” coletiva), na segunda linha do verso, para um pronome masculino singular na última parte do verso – “Ele” [na versão inglesa] – lutando contra a serpente. Ao longo das Escrituras, sempre que os pronomes relacionados com o termo hebraico zera (semente, descendência) são singulares, é sempre um só indivíduo, não um coletivo de muitos descendentes, que se tem em vista.4 Desta forma, aqui Deus promete a vitória centralizada em uma só pessoa: “Ele” – a suprema representante Semente da mulher, posteriormente a ser revelada como o Messias – “te ferirá/esmagará a cabeça [Satanás]”, “e tu lhe ferirás/esmagarás o calcanhar”.

Segundo a comovente imagem que sublinha Gênesis 3:15, a Semente Prometida desnudará o seu calcanhar e pisará voluntariamente sobre uma víbora venenosa. Temos aqui um poderoso quadro profético de Cristo rendendo voluntariamente a sua vida para matar “a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás” (Apocalipse 12:9). Já está aqui implícito o sacrifício substituto de Cristo em favor da raça humana caída. Gênesis 3:15 também prediz o encerramento do conflito cósmico, o fim do mal e da serpente no final da história terrestre. O calcanhar do Representante, da Semente Messiânica, será ferido/esmagado, mas é apenas um ferimento no calcanhar. Posteriormente, a revelação bíblica deixa claro que, embora Cristo morra, Ele retorna à vida no terceiro dia. Mas a serpente, Satanás, é esmagada na cabeça, uma ferida mortal sem nenhuma esperança de recuperação. O grande conflito não continuará para sempre. Em Romanos 16:20, Paulo alude a este texto: “O Deus de paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás”. A cabeça de Satanás é mortalmente ferida pelo Messias no Calvário e receberá o esmagamento final no fim do tempo.

É importante notar que nesta passagem, como em muitas outras profecias messiânicas do Antigo Testamento, não há nenhuma clara separação entre acontecimentos do primeiro e do segundo e mesmo do terceiro advento [pós-milenial] do Messias; entre seu sofrimento, e sua glória e a erradicação final do mal. Os eventos dos “últimos dias” são reunidos no que tem sido chamado de “telescopia profética”, do mesmo modo que, quando vistas à distância, várias e imensas montanhas, com grandes vales entre elas, frequentemente aparecem como uma só montanha. Resta ao cumprimento do Novo Testamento esclarecer a distinção entre o reino da graça do Messias e o seu reino da glória.

O Messias como ReiSalmos 2

Em Salmos 2, escrito por Davi (Atos 4:25), encontramos notável evidência de que o ungido rei davídico do Antigo Testamento deve ser considerado como um tipo profético-preditivo apontando adiante para o futuro Messias. Salmos 2 muda do nível local do “ungido” terrestre (heb. mašîah, verso 2), instalado em Jerusalém como rei davídico e “filho” de Yahweh (versos 6 e 7), para o nível cósmico do divino Filho, o Messias. O verso final (verso 12) indica esta mudança: “Beijai o Filho para que [o Filho] se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira [do Filho]. Bem-aventurados todos os que nele [no Filho] se refugiam”. A palavra para “Filho” é o aramaico bar, usada noutro lugar nas Escrituras para filhos reais. Mas nesta passagem, como na referência ao Messias em Daniel 9:26, não há nenhum artigo “o”; portanto, o substantivo deve ser tomado em um sentido absoluto, não qualificado, de um título divino, “Filho” (com letra maiúscula em inglês): “Beijai o [supremo] Filho!” Para confirmar esta interpretação de “Filho”, a frase “confiai nele”, usada mais de duas dezenas de vezes noutras partes dos Salmos, é sempre reservada para a divindade, e, portanto, o uso desta frase para o “Filho” no verso 12, indica que esse Filho não é nenhum outro que o divino Filho de Deus. À luz do verso final do salmo, todo o mesmo deve ser considerado não apenas como descrevendo a investidura, o domínio e a vitória do rei davídico do Antigo Testamento, mas como tipologicamente apontando ao futuro para a missão real do Messias.

Os indicadores tipológicos internos de Salmos 2 afinam o tom para o restante do saltério davídico: em outros salmos davídicos, tais como os Salmos 16, 22 e 69, a linguagem move-se para além do que é aplicável ao Davi do Antigo Testamento e aponta além dele para o novo Davi, o Messias. Os escritores do Novo Testamento reconhecem o cumprimento de Salmos 2 na morte de Jesus (Atos 4:25 e 26), sua ressurreição (Atos 13:33), sua investidura como sumo sacerdote depois da sua ascensão (Hebreus 5:5), e a destruição dos ímpios em sua segunda vinda (Apocalipse 2:26 e 28; Apocalipse 19:15; Apocalipse 12:5).

O Messias como servo sofredorIsaías 53

Em Isaías 42 a 53 há uma frequente alternância entre referências ao servo corporativo (Israel nacional) e ao Servo individual (o Messias), usando as mesmas expressões para ambos, indicando assim que o Servo messiânico representará e recapitulará a experiência do Israel do Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, está claro pelo contexto que o Servo individual apresentado nesses capítulos não é sinônimo do Israel corporativo, porque é dito que o Servo messiânico traz salvação ao povo de Israel, bem como aos gentios (Isaías 49:5 e 6). Isaías 42 a 53 contém quatro “Cânticos do Servo” que predizem a vinda do Messias e delineiam várias fases de sua obra: (1) Isaías 42:1 (seu chamado), (2) Isaías 49:2 a 13 (sua comissão), (3) Isaías 53:4 a 11 (seu compromisso), e (4) Isaías 52:13 a 53:12 (sua carreira). Conquanto se faça alusão ao sofrimento do Messias por meio dos primeiros três Cânticos do Servo, este tema forma o próprio âmago do cântico final. Isaías 53, talvez o mais comovente retrato do Messias no Antigo Testamento, deixa claro que o sofrimento e morte do Servo não são devidos aos seus próprios pecados, antes Ele toma sobre si a culpa, as maldições da aliança e a punição “de nós todos”, como o Portador de Pecados, provendo uma expiação substituta (veja especialmente Isaías 53:4 a 6, 8, e 10 a 12). Este quarto Cântico do Servo também retrata a ressurreição, o ministério sumo sacerdotal intercessório e a exaltação real (Isaías 52:13; Isaías 53:11 e 12). Isaías 53 (juntamente com os outros Cânticos do Servo de Isaías 42 a 53) é frequentemente citado no Novo Testamento como cumprido em Cristo (por exemplo, Mateus 8:17; João 12:38; 1Pedro 2:20 a 25). Além das citações exatas, Isaías 53 forma a tela de fundo para muitos dos ensinos do Novo Testamento sobre a obra expiatória de Cristo.

O impulso messiânico de todo o Antigo Testamento

Poderíamos examinar numerosas outras profecias messiânicas específicas do Antigo Testamento, mas além dessas passagens individuais estão as indicações bíblicas de que todo o Antigo Testamento é messiânico em sua perspectiva. Jesus sugere isto em seu diálogo no domingo da ressurreição com os discípulos no caminho de Emaús: “E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lucas 24:27). Esta declaração não é simplesmente uma hipérbole.

Um exame cuidadoso da estrutura literária do Pentateuco e do Antigo Testamento, como um todo, revela que todo o Antigo Testamento está de fato centralizado no aparecimento e na obra do Messias nos últimos dias.5 Por exemplo, cada um dos grandes blocos narrativos do Pentateuco culmina com uma longa passagem poética que reconstitui o que ocorreu antes e liga essa história passada a uma predição da vinda do Messias nos “últimos dias” (Gênesis 49:1, 10 a 12, e 22 a 26; Êxodo 15:16 e 17; Números 23:22; Números 24:8 a 17; e Deuteronômio 32; Deuteronômio 33:8 a 10, e 13 a 17). Outra vez, no exato centro quiástico e clímax das leis levíticas e de todo o Pentateuco, encontra-se Levítico 16, apontando para a obra antitípica de Cristo como sumo sacerdote no escatológico Dia da Expiação.

Como uma indicação do impulso messiânico de todo o Antigo Testamento, o profeta (provavelmente Esdras) que, sob inspiração, organizou a ordem hebraica do cânon em três grandes seções – Torah (Pentateuco), Profetas e Escritos – colocou na introdução e conclusão de cada uma destas seções uma passagem profética que aponta para a vinda do Messias nos últimos dias. Assim, no início e no final da Torah estão Gênesis 3:15 e Deuteronômio 33, respectivamente (já mencionados); no início dos Profetas está Josué (que é apresentado como um tipo do Messias); no final dos Profetas está Malaquias (os capítulos 3 e 4, que predizem a vinda do messiânico “Mensageiro da Aliança” no tempo do grande e terrível Dia do SENHOR”); no começo dos Escritos estão os Salmos 1 e 2 (a introdução bipartite do Saltério, que, como já foi notado, prediz a vinda do Rei messiânico); e, no final dos Escritos está 2Crônicas 36 (que prediz a vinda de Ciro, que é apresentado como um tipo do Messias). Este modelo de passagens messiânicas escatológicas, colocadas na “costura” ou “sutura” do cânon hebraico, torna evidente o excessivo impulso messiânico de todo o Antigo Testamento. Jesus sumariou muito bem a mensagem das Escrituras do Antigo Testamento: “Examinais as Escrituras [Antigo Testamento]… e são elas mesmas que testificam de mim” (João 5:39)!

Profecias acerca das nações estrangeiras

A Bíblia tem muito a dizer acerca de outras nações além de Israel, inclusive muitas promessas/predições concernentes à sua condição futura. A fim de compreender essas profecias e interpretá-las corretamente, precisamos entender o quadro bíblico mais amplo da relação de Yahweh com as nações estrangeiras.

Segundo o Antigo Testamento, Yahweh, “criador/possuidor do céu e da terra” (Gênesis 14:19 e 22), é soberano sobre todo o mundo. Ele é rei sobre todas as nações (Salmos 47:2 a 8). Ele as “fez” (Salmos 86:9), quando determinava e controlava seus territórios e fronteiras (Deuteronômio 32:8; Deuteronômio 2:5, 9 e 19), dirigindo sua migração (Amós 9:7), elevando-as e humilhando-as (Jeremias 1:10; Daniel 2:21). As nações do mundo são todas parte de uma família (Gênesis 10), e Deus deseja o seu bem-estar e salvação. Abraão e seus descendentes são chamados para serem uma bênção às nações (Gênesis 12:2 e 3; Gênesis 22:18; Gênesis 26:4). No Sinai Israel é constituído como um “reino sacerdotal” para mediar as bênçãos de Deus às outras nações do mundo (Êxodo 19:5 e 6), e aqueles dentre outras nações que aceitam a adoração de Yahweh são bem-vindos na comunidade da aliança (por exemplo, Josué 6:20 a 25; Isaías 56:3 a 8). Uma obra especial do Servo messiânico é ser uma “luz aos gentios” (Isaías 42:6; Isaías 49:6), levando a salvação de Yahweh “aos confins da terra” (Isaías 49:6; Isaías 42:1; Isaías 51:4 e 5). Essas nações estrangeiras são às vezes usadas por Deus como seus agentes de juízo contra seu especial povo da aliança de Israel (Isaías 10:5; Jeremias 51:7 e 20; Habacuque 1:5 a 11) ou como agentes de salvação para livrar o seu povo (Isaías 44:28 a 45:1 a 7).

Ao mesmo tempo, como soberano sobre todo o mundo, Yahweh considera todas as nações responsáveis por seus atos. Toda a Terra é considerada por Deus como sob uma “aliança eterna” (Isaías 24:5), uma lei ou código internacional de normas humanas (Amós 1 e 2), em que todas as nações têm responsabilidades éticas de civilidade e humanidade. Yahweh em sua soberania universal é o fiador de justiça e decência entre as nações em seu tratamento umas com as outras. As nações que violam a norma universal do procedimento correto recebem sanções divinas por seus crimes. Numerosos oráculos concernentes às nações estrangeiras tratam de seus crimes e as sanções divinas contra elas (Números 24:17 a 24; Isaías 13 a 24; Jeremias 46 a 51; Ezequiel 25 a 32; Amós 1 e 2). Em alguns casos, livros inteiros da Bíblia têm seu enfoque sobre os pecados e a punição de nações estrangeiras (por exemplo, a Assíria nos livros de Jonas e Naum, e Edom no livro de Obadias). Conquanto as nações não-israelitas sejam o “campo missionário” para o qual Israel é chamado a levar a mensagem de salvação, essas nações, principalmente as que mantêm uma atitude hostil para com Israel e o Deus de Israel, são consideradas como ímpias e inimigas (Êxodo 15:9; Salmos 9:5; Habacuque 6; Salmos 59:5 e 6; Salmos 106:41 e 42).

Alguns têm argumentado que duas atitudes contraditórias e mesmo irreconciliáveis para com as nações estrangeiras são representadas nas predições relativas a elas: por um lado, um universalismo e profecias condicionais, revelando a compaixão de Deus e disposição de perdoar e aceitar as nações estrangeiras se elas se arrependerem (conforme retratadas no livro de Jonas); por outro lado, um nacionalismo e soberania divina, expressando uma furiosa aversão divina para com as potências estrangeiras, sem nenhuma oportunidade estendida para arrependimento e perdão (como em Naum). Embora estas duas perspectivas possam ter sido consideradas como irreconciliáveis por alguns indivíduos em Israel (veja as próprias lutas pessoais do profeta Jonas sobre este problema), as declarações proféticas inspiradas não são contraditórias quando vistas no cenário do quadro mais amplo.

O trato de Deus com relação aos amorreus em Canaã é instrutivo para compreendermos a interação da condicionalidade e soberania divinas nas profecias contra as nações estrangeiras. Deus predisse a Abraão que seus descendentes seriam estrangeiros em uma terra alheia e afligidos 400 anos antes que lhes fosse dada a posse de Canaã; o motivo dado para o adiamento é que “não se encheu ainda a medida da iniquidade dos amorreus” (Gênesis 15:16). Aos amorreus foi dado um extenso período de graça, durante o qual o próprio Abraão testemunhou para eles, e outros verdadeiros adoradores do Deus Altíssimo emprestaram sua influência à verdade (por exemplo, Gênesis 14:18 a 24). Mas quando os amorreus encheram a taça da iniquidade e se entregaram totalmente ao mal (Levítico 18:24 a 28), seu tempo de graça foi encerrado, e, desapossando-os, Deus deu sua terra ao povo de Israel (Êxodo 13:5; Deuteronômio 7:1 a 5, e 16 a 26).

As predições concernentes às nações durante a fase probatória de sua história nacional, devem ser vistas à luz do princípio geral de condicionalidade, declarado em Jeremias 18:7 a 10: “No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derribar e destruir, se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mal perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria”.

A predição de Jonas: “Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida” (Jonas 3:4), é um claro exemplo de uma profecia condicional, embora o princípio de Jeremias 18 não seja explicitamente declarado. De fato, esta é a maneira como o povo de Nínive a considerava; eles se arrependeram do seu mal, e Deus se arrependeu do seu propósito de destruir a cidade (Jonas 3:5 a 10).

Por outro lado, quando as nações enchiam a taça da iniquidade, não mais respondendo aos rogos divinos para se arrependerem, o juízo pressagiado certamente ocorria. Com respeito a Nínive, o profeta Naum escreveu cerca de um século depois do tempo de Jonas, em uma época em que Nínive e o país da Assíria haviam retornado aos seus maus caminhos de brutalidade, arrogância e idolatria. A taça da iniquidade da nação estava cheia. Nada havia sido deixado a Naum a não ser denunciar seus horrendos pecados e anunciar a irrevogável sentença do Soberano Senhor sobre sua condenação nacional.

Nem sempre é possível determinar se os oráculos divinos contra as nações estrangeiras vem numa ocasião em que a graça ainda permanece para uma determinada nação e, portanto, a ameaça de juízo é condicional, ou se aquela nação já ultrapassou os limites da paciência divina e o seu destino já foi selado. Em Amós 1 e 2, os oráculos contra cada nação começa com a frase: “Por três transgressões de [nação X] e por quatro, não sustarei o castigo” (Amós 1:3, 6, 9, 11, 13; Amós 2:1. O uso da fórmula 3 + 4 [= 7] provavelmente denota inteireza ou plenitude de transgressão, e a declaração de que o Senhor não sustará parece indicar que esses juízos são certos, isto é, incondicionais.

Todavia, esses juízos divinos que são certos talvez nem sempre envolvam total, permanente ou imediata destruição da nação que é punida. Apesar de Amós 1 e 2 predizer destruição e/ou cativeiro para os poderes políticos vizinhos de Israel e Judá (Síria, Filístia, Tiro, Edom, Amom e Moabe), Jeremias indica que, ao menos no caso de Amom e Moabe, Deus finalmente “traria de volta os cativos” desses povos (Jeremias 48:47; Jeremias 49:6). Para outras nações, tais como Edom e Egito, o profeta prediz que a nação em consideração se tornará um poder relativamente insignificante na política mundial do futuro (Jeremias 49:15; Ezequiel 29:14 a 16). Destruição completa e permanente é predita para Tiro (Ezequiel 26:1 a 14) e para Babilônia (Isaías 13:20 a 22; Jeremias 50:3 e 13).

Várias passagens do Antigo Testamento se referem ao julgamento final de todas as nações do mundo, em conexão com o livramento escatológico de Israel (Isaías 24 a 27; Ezequiel 38 e 39; Zacarias 9 a 14). Estas passagens de feitio apocalíptico serão discutidas a seguir em conexão com o plano e propósito original de Deus para Israel.

Promessas/profecias do reino relativas a Israel

Alguns têm insistido que as promessas da aliança feitas a Israel não são realmente profecias preditivas, mas apenas expressões de dois caminhos alternativos disponíveis a Israel (retratados fundamentalmente em Levítico 26 e Deuteronômio 27 e 28): o caminho da lealdade à aliança que conduz à prosperidade (as bênçãos da aliança) e o caminho da deslealdade à aliança que leva ao desastre (as maldições da aliança). Embora isto possa ser verdade no sentido técnico, ao mesmo tempo Deus prediz detalhadamente qual seria o resultado de os israelitas participarem sinceramente de sua missão de usá-los como agentes de salvação para todo o mundo. Sendo que predições específicas estão envolvidas e sendo que a missão divina para Israel abrange tanto das Escrituras do Antigo Testamento, é apropriado incluir essas promessas da aliança como parte de nossa discussão da profecia do Antigo Testamento. Conquanto o esboço seguinte mostre os contornos básicos do plano divino para Israel, não se pode ter certeza completa da sequência exata dos eventos divinamente planejados, porque, conforme já foi notado em nosso gráfico que contrasta as profecias clássicas com as profecias apocalípticas, a profecia clássica não dá um perfil detalhado e ininterrupto da história. Antes, sua “telescopia profética” salta da crise local imediata (tal como a praga dos gafanhotos de Joel 2) para o escatológico Dia do Senhor (Joel 3; Habacuque 4), sem preencher todos os detalhes históricos intermediários.

A missão divina para Israel

Desde o início, Deus especificou para o pai fundador da nação, Abraão, a missão universal de Israel desde o início: “De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!… em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:2 e 3). Quando no monte Sinai Israel foi finalmente constituído como uma nação, Deus reiterou o plano prometendo fazer do seu povo um “reino de sacerdotes” (Êxodo 19:6) mediando para o mundo as bênçãos da aliança.

Nas fronteiras de Canaã, Moisés recebeu e transmitiu a Josué, seu sucessor, um detalhado projeto divino da missão de Deus para Israel como nação. Depois de entrar em Canaã, o Anjo do Senhor iria adiante deles e enviaria os vespões para expulsar os habitantes da terra (Deuteronômio 7:17 a 20; Êxodo 23:23 e 28). Israel deveria desapossar essas nações agora totalmente entregues ao mal (Deuteronômio 9:4; Gênesis 15:16), mas indivíduos que ainda eram responsivos aos poderosos atos de Deus deveriam ser poupados e unidos ao seu povo (Josué 6:22 a 25). Enquanto Israel permanecesse lealmente obediente a Deus na Terra Prometida, as bênçãos da aliança seriam derramadas sobre ele (Deuteronômio 28:1 a 14; Levítico 26:1 a 13). Eles seriam pessoas tão saudáveis (Deuteronômio 7:15; Êxodo 15:26), felizes (Deuteronômio 28:2 a 8), santas (Deuteronômio 28:9), sábias (Deuteronômio 4:6 e 7), moralmente iluminadas (Deuteronômio 4:8) e prósperas (Deuteronômio 28:6 e 7; Levítico 26:4, 5 e 10), que se tornariam a cabeça e não a cauda (Deuteronômio 28:13) acima de todas as nações da Terra “em louvor, renome e glória” (Deuteronômio 26:19). Todas as pessoas de outras nações veriam que eles eram chamados pelo nome do Senhor (Deuteronômio 28:10).

Durante a monarquia unida esse plano divino para Israel adquiriu um enfoque espiritual mais nítido. A primeira provisão do rei Davi para louvar a Deus no santuário requeria uma proclamação da glória de Deus entre todos os povos (1Crônicas 16:24; Salmos 96:3). Outros salmos previam o louvor, o caminho e o poder salvífico de Deus como sendo proclamados ou alcançando todas as nações, mesmo nos confins da Terra (Salmos 48:10; Salmos 57:9; Salmos 66:4). O que os grupos de cantores levíticos entoavam foi ecoado na oração de dedicação do templo de Jerusalém feita por Salomão (1Reis 8:41 a 43), e parecia à beira do cumprimento na carreira do filho de Davi, quando “todo o mundo procurava ir ter com ele para ouvir a sabedoria que Deus lhe pusera no coração” (1Reis 10:24), e a riqueza do mundo era despejada em seu império em expansão (1Reis 14 a 29).

Os profetas do Antigo Testamento (mais notavelmente Isaías, o profeta evangélico) intensificaram a visão do vasto programa de Deus para um Israel penitente e fiel depois do exílio babilônico. É um plano glorioso! Ao reunir-se o povo de Israel e voltar para a Terra Prometida, Deus os perdoa e os purifica dos seus pecados e dá-lhes um coração novo, põe neles o seu Espírito, e os faz andar em seus estatutos (Ezequiel 36:24 a 28; Jeremias 31:31 a 34). As cidades em ruína são reconstruídas e a terra de Israel é renovada como o Éden (Isaías 44:24 a 28; Ezequiel 36:33 a 35), levando as outras nações a saber que Yahweh fez isto por eles (Ezequiel 36:22 e  36). Ao Israel servir lealmente a Deus e receber as concomitantes bênçãos da aliança, todas as nações veem sua justiça e glória e o chamam de bem-aventurado (Isaías 61:9; Malaquias 3:12); Jerusalém torna-se um louvor e uma glória diante de todas as nações (Jeremias 33:9).

Como resultado, as nações veem à luz (Isaías 60:3)! Elas estão reunidas, elas fluem, sim, elas correm para Jerusalém (Isaías 66:18 a 20; Isaías 2:2) para buscar ao Senhor (Zacarias 8:20 a 23) e se congregar a Ele (Isaías 56:7 e 8; Zacarias 2:11). Nação após nação sobe à casa do Senhor – que é chamada “casa de oração para todos os povos” (Isaías 56:7) – para buscar instrução em seus caminhos e servi-lo “ombro a ombro” (Isaías 2:3; Miqueias 4:2). Os portais de Jerusalém estão abertos continuamente para receber a riqueza de outras nações, contribuindo para produzir a conversão de ainda outras nações (Isaías 60:1 a 11; Isaías 45:14; Ageu 2:7). Finalmente, “todas as nações” são reunidas em Jerusalém e chamam-na de “trono do SENHOR” (Jeremias 3:17). Aqueles estrangeiros de outras nações que “se chegam ao Senhor”, isto é, prestam obediência a Yahweh e abraçam a sua aliança com Israel são considerados como sendo plenamente parte da comunidade da aliança de Israel (Isaías 56:1 a 8; Ezequiel 47:22 e 23).

Assim, Israel, em cooperação com os poderes do Céu, prepara o caminho para a vinda do Messias. O Messias vem, e como o Israelita Representativo (Isaías 42 a 53), recapitula a história de Israel em sua própria vida (Mateus 1 a 5), trazendo salvação. Ele é geralmente aceito como o Messias pelo povo de Israel. Embora Ele seja ainda traído por alguns dos seus supostos amigos (Zacarias 13:6) e seja entregue para morrer pelos pecados do mundo (veja, por exemplo, Isaías 53), a maioria de Israel, inclusive sua liderança, o aceita; e depois da sua ressurreição (imediatamente ou eventualmente depois de um intervalo no tempo, Ele volta para o Céu, a regulação do tempo não está clara), Ele assume o trono de Davi e reina para sempre sobre um reino de Israel reunido (Ezequiel 37:22 a 25; Isaías 9:6 e 7). O santuário e a cidade de Jerusalém, agora reconstruídos, também permanecem para sempre (Jeremias 17:24 e 25; Ezequiel 37:26). À medida que as nações aceitam o Senhor e o seu Messias, Israel estende suas fronteiras (Amós 9:12), até que seu domínio abrange o mundo (Isaías 27:6; Zacarias 9:10). Dessa forma, a “Terra Prometida” para Israel se expande para além das fronteiras de Canaã, incluindo a terra inteira.

Várias passagens do Antigo Testamento descrevem o divinamente predito desfecho escatológico da história deste mundo na luta final entre Israel e seus inimigos (Isaías 24 a 27; Ezequiel 38 e 39; Zacarias 9 a 14). Essas passagens têm sido classificadas por alguns como profecias apocalípticas a par com Daniel, visto que elas descrevem a intervenção final e universal de Deus fora da história. Contudo, visto que essas profecias de feitio apocalíptico tratam primariamente do livramento de Israel como uma entidade geopolítica nacional, acho melhor considerá-las como o clímax das profecias que são promessas do reino feitas a Israel e não de natureza plenamente apocalíptica.

Segundo o cenário universal e do fim do tempo predito por essas passagens, remanescentes da oposição de outras nações do mundo contra Israel e o Deus de Israel lançam um ataque final contra Jerusalém. Durante o cerco de Jerusalém, os israelitas réprobos são mortos por seus inimigos (Zacarias 13:8; Zacarias 14:2). Então Deus convoca as nações rebeldes para juízo, e elas são eliminadas pelo Senhor na batalha escatológica final (Zacarias 14; Ezequiel  38 e 39). Deus ressuscita os justos mortos e aplica o toque final da imortalidade sobre os vivos (Isaías 25:8; Isaías 26:19). Os ímpios também são ressuscitados, julgados e (depois de um período de tempo [o milênio?]: Isaías 24:27) punidos, terminando em destruição eterna (Isaías 24:20 a 23). Deus então recria novos céus e uma nova terra, além de recriar “para Jerusalém alegria e para o seu povo, regozijo” (Is 65:17 e 18). O mundo torna-se o Éden restaurado, e o universal e eterno reino do Senhor é introduzido (Zacarias 14; Isaías 24 a 27; Isaías 35; Isaías 51:3). “E será que, de uma Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante mim, diz o SENHOR” (Isaías 66:17). Pecado e pecadores são totalmente derrotados, e o mal nunca mais se levantará outra vez (Isaías 66:24; Naum 1:9).

O cumprimento escatológico da promessa/plano divino para o Israel do Antigo Testamento

Uma das mais prementes interrogações deste estudo diz respeito ao cumprimento (ou não-cumprimento) das numerosas profecias clássicas do Antigo Testamento predizendo o glorioso futuro escatológico de Israel. Do nosso ponto de observação, mais de dois milênios depois da época do Antigo Testamento, torna-se evidente que muitas profecias concernentes ao futuro de Israel como nação não se cumpriram conforme preditas no Antigo Testamento. Falharam essas profecias concernentes a Israel? Nunca serão cumpridas? Ou ainda são parte do plano divino para o futuro? Se elas ainda serão cumpridas, qual é a natureza desse cumprimento escatológico?

Respostas muito diferentes têm sido dadas a estas indagações. Os dispensacionalistas mantêm que a Bíblia apresenta dois programas distintos de salvação para a humanidade, um para a entidade étnica e nacional (geopolítica) de Israel, e outro para os gentios (a igreja). As predições divinas para os patriarcas relativas aos aspectos geopolíticos da história de Israel, bem como as bênçãos espirituais, devem ser vistos como incondicionais, baseadas nas irrevogáveis promessas divinas (Gênesis 12:1 a 7; Gênesis 17:8; Gênesis 26:3 a-5; 2Samuel 7:12 a 17). Conquanto o Israel do Antigo Testamento experimentasse as maldições da aliança de destruição e exílio (conforme descritas em Levítico 26:14 a 39 e Deuteronômio 28:15 a 68), ao mesmo tempo, no cumprimento destas mesmas passagens, Israel nunca será totalmente rejeitado e destruído mas, nos últimos dias, será reunido como uma entidade geopolítica e novamente restaurado em seu país (Levítico 26:40 a 45; Deuteronômio 30:1 a 10).

Segundo este roteiro, estamos agora vivendo na dispensação da igreja, que constitui uma lacuna cronológica no abrangente plano de Deus para Israel, produzida pela rejeição inicial de Cristo por Israel. Embora alguns dispensacionalistas (progressistas) admitam um parcial cumprimento espiritual das promessas da aliança a Israel no Antigo Testamento pela igreja, todos eles concordam que o cumprimento completo e literal ocorrerá por meio de um restaurado estado nacional de Israel. A fundação do Estado de Israel em 1948 é vista como essencial na conclusão do plano divino para Israel como uma entidade geopolítica, e a consumação deste plano é considerada como iminente, ocorrendo literalmente conforme predito nas profecias do reino do Antigo Testamento.

Os teólogos cristãos da aliança, por outro lado, argumentam que as promessas/predições feitas a Israel como nação eram condicionais à sua fidelidade à aliança. Sendo que, segundo esta opinião, a nação judaica provou-se desleal à aliança em sua rejeição do Messias, o Israel do Antigo Testamento recebeu as maldições de Deuteronômio 28, em vez das bênçãos, e foi permanentemente substituído pela igreja, a quem pertence o cumprimento das promessas da aliança do Antigo Testamento, de natureza espiritual. As passagens que retratavam um glorioso futuro para a nação de Israel, prometidas sob condição de fidelidade à aliança, não mais se aplicam, mas são suplantadas por um cumprimento espiritual e universal ao Israel espiritual, a igreja.

Muitas das profecias feitas pelos profetas clássicos do Antigo Testamento são realmente expressas dentro da estrutura de uma relação de aliança em que o povo de Deus é sempre livre para permanecer fiel à aliança e colher as bênçãos desta ou persistir na infidelidade e receber suas maldições. Assim, como já temos notado, os profetas clássicos apresentam duas diferentes opções: o plano de Deus para abençoar Israel se eles derem ouvidos ao chamado profético para permanecer fiéis à sua aliança, mas também a certeza de juízo punitivo e da recepção das maldições da aliança se Israel persistir em infidelidade à aliança. Na da profecia clássica, há repetidos chamados ao arrependimento para que Deus derrame suas bênçãos, e advertências de juízo se Israel não se arrepender. Neste aspecto, as profecias do reino dos profetas clássicos podem ser vistas como de natureza condicional.

Em relação à aliança, precisamos lembrar alguns pontos. Primeiro, no nível mais básico, todas as alianças divinas das Escrituras são parte de uma promessa  divina incondicional de operar a salvação para a raça humana, declarada primeiramente em Gênesis 3:15, e elaborada em cada desenvolvimento sucessivo desta aliança unificada (veja, por exemplo, as promessas de Gênesis 12, posteriormente reunidas no concerto abraâmico de Gênesis 15 e 17). Assim, como já notamos na primeira seção deste capítulo, a vinda do Messias para cumprir a promessa da aliança redentora de Deus, é incondicional, totalmente independente da escolha humana. Contudo, a realização da promessa divina na vida do ser humano é condicional, dependendo da resposta de cada indivíduo em aceitar o dom messiânico da salvação.

Um segundo aspecto das alianças do Antigo Testamento, principalmente os concertos abraâmico e davídico, é o de que se assemelham às alianças reais de concessão do antigo Oriente Próximo,6 em que um rei concede terra ou posição a um dos seus súditos e aos seus descendentes, perpetuamente, em reconhecimento à lealdade do servo. Assim Deus prometeu a Abraão e seus descendentes uma concessão de terra, para sempre, baseado na lealdade de Abraão à aliança (Gênesis 17:8;Gênesis 26:3 a 5). A Davi, Deus fez a promessa adicional de um reino interminável (2Samuel 7:12 a 16; Salmos 89:34 a 37).

Num terceiro aspecto, as alianças bíblicas também se assemelham às alianças de concessão do antigo Oriente Próximo, em que somente aqueles dentre os descendentes do beneficiado que permanecem leais à coroa realmente participam da concessão perpétua. Geração após geração poderiam perder seu direito à concessão real mas, finalmente, o que foi concedido será restaurado aos descendentes leais. Assim, nas Escrituras Deus doa eternamente a terra da promessa a Abraão e à sua linhagem de descendentes e o trono real e o reino de Israel a Davi e seus filhos (2Samuel 7:12 a 16). Embora tenham passado gerações em que a divina concessão, com suas características nacionais, tenha sido perdida, no futuro tudo o que foi prometido sob a concessão divina será restaurado aos descendentes de Abraão que são leais à “aliança perpétua” feita com ele (Gênesis 17:7, 13 e 19).

Isto nos leva ao último e, creio eu, mais decisivo aspecto das alianças do Antigo Testamento. Quem compunha o povo da aliança que deveria receber as promessas da aliança feitas a Abraão? Era Israel composto somente dos descendentes étnicos e diretos de Abraão, por meio de seu filho Isaque e de Jacó, filho de Isaque? A resposta a esta pergunta é um ressoante “não”! Ao longo do Antigo Testamento, como já temos visto, o plano de Deus era que Israel estendesse a mão a todos os povos e nações ao seu redor, convidando-as a se tornarem parte da aliança de Deus. O Israel do Antigo Testamento era composto dos descendentes físicos diretos de Jacó, mais uma multidão de outros de várias nações que aceitavam Yahweh, o Deus de Israel e escolhiam se tornar parte da comunidade da aliança (por exemplo, a multidão dos egípcios no tempo do Êxodo [Êxodo 12:38], Zípora, a midianita/cusita [Êxodo 2:16 e 21], a cananita Raabe e sua família [Josué 6:22 a 25], Rute a moabita [Rute 1:16 e 17], Urias o heteu [2Samuel 11], e os muitos persas que se juntaram a Israel [Ester 9:27]). Todos eles eram chamados “Israel”; nenhum deveria ser considerado cidadão de segunda classe na nação de Israel (Isaías 56:1 a 8; Ezequiel 47:22 e 23). Não havia no Antigo Testamento dois planos para dois diferentes grupos de pessoas tementes a Deus; todos eram chamados a se juntar ao Israel bíblico, o único povo de Deus. E dentro da nação israelita, houve sempre o remanescente “espiritual” daqueles que não somente tomavam o nome de “israelita”, mas também evidenciavam verdadeira lealdade à aliança do Deus de Israel (por exemplo, Isaías 10:22 e 23; Jeremias 23:3; Miqueias 2:12; Sofonias 3:3).7

Ora, à luz destes aspectos das alianças do Antigo Testamento, além de sermos informados pelos dados do Novo Testamento, vejamos como as promessas do reino feitas a Israel encontram um cumprimento escatológico de três estágios – em conexão com o primeiro advento de Jesus, em conexão com a Igreja ao longo da era do Novo Testamento, e no fim do tempo. Notamos que já na época do Antigo Testamento as promessas do reino começaram a ser cumpridas no tempo de Salomão e, novamente, depois do retorno de Israel do exílio babilônico. Essas promessas deveriam chegar ao clímax no primeiro advento do Messias nos “últimos dias” (Hebreus 1:2). Quando o Messias, o Rei supremo de Israel e Israelita Representativo, veio ao mundo, Ele realizou em si mesmo, em princípio, um cumprimento básico de todas essas promessas do reino (Mateus 12:28; 2Coríntios 1:20). Por meio de sua vida, morte e ressurreição, Ele inaugurou o “domínio” ou “reino” de Deus na Terra (“o reino da graça” que Jesus chamou de “o reino de Deus”).

No primeiro advento de Cristo, o povo de Israel, em geral, “o ouvia com prazer” (Marcos 12:37) e, embora muitos compreendessem mal sua missão, supondo que fosse a de um libertador político de Israel da ocupação romana, eles extensamente o saudavam como o Messias (Mateus 21:1 a 11). No dia da sua ressurreição, os discípulos, viajando pelo caminho de Emaús, puderam declarar que Jesus era “varão profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo” (Lucas 24:19). No dia de Pentecostes, dez dias depois da sua ascensão, milhares de judeus foram convertidos em um só dia (Atos 2:41), e a firmemente crescente comunidade da aliança do Novo Testamento, em continuidade com aquela do Antigo Testamento, era composta principalmente de judeus – uma multidão deles – à qual foi acrescentada uma multidão de gentios, que responderam à pregação dos seguidores do Caminho (Atos 2:47; Atos 4:4; Atos 5:14; Atos 6:1 e 7).

Assim, o Novo Testamento não apresenta um quadro de dois programas separados de salvação para dois separados povos de Deus. Antes, há apenas uma só oliveira, representando o verdadeiro povo de Deus, consistindo de judeus, os ramos naturais (crentes judeus, espirituais ‘segundo a eleição da graça’, Romanos 11:5), e gentios enxertados (Romanos 9 a 11; especialmente Romanos 11:17 e 24), como nos tempos do Antigo Testamento. Embora no tempo do primeiro advento de Jesus muitos dos ramos da Oliveira fossem quebrados, Paulo antecipou um enxerto escatológico de judeus antes da segunda vinda de Jesus, e, deste modo, “todo” o verdadeiro Israel (judeus e gentios) será salvo (Romanos 11:26).

Com a separação da nação israelita da teocracia, produzida pela rejeição de Cristo pelos líderes judeus, os aspectos nacionais (geopolíticos) das promessas da aliança não podiam mais ser cumpridos literalmente pela nação judaica como Deus originalmente pretendia. Por meio do período da Era Cristã, as bênçãos espirituais da aliança têm sido usufruídas pelo povo da aliança de Deus, constituído de judeus e gentios, e proclamadas ao mundo. O Israel espiritual, a igreja, como o corpo de Cristo, recebe o cumprimento de todas as promessas do reino (Gálatas 3:29), mas é somente um cumprimento espiritual, e a linguagem nacional assume um significado espiritual, universal, e/ou celestial. Assim, por exemplo, o monte Sião é usado espiritualmente para a igreja universal (Romanos 9:33; 1Pedro 2:6), que agora é o “sacerdócio real, nação santa” (1Pedro 2:9; Êxodo 19:6) ou se refere à cidade celestial de Jerusalém na qual os crentes terrestres são espiritualmente reunidos (Gálatas 4:26; Hebreus 12:22 a 24).

No entanto, as características literais das promessas da aliança não são anuladas permanentemente. No final do tempo, o “Israel escatológico” constituído de todas as pessoas fiéis a Deus ao longo de todos os séculos, incluindo judeus e gentios, serão ressuscitados ou trasladados para experimentar o supremo, universal e glorioso cumprimento literal das promessas da aliança do Antigo Testamento! No Céu, durante o milênio, eles reinarão com Cristo na Nova Jerusalém e depois do milênio receberão finalmente sua herança eterna na Terra renovada (Apocalipse 20 a 22). Conquanto os aspectos culturais específicos das promessas geopolíticas da aliança do Antigo Testamento sejam universalizados, um cumprimento final e literal é, não obstante, certo.

O livro de Apocalipse confirma esse cumprimento final, universal-literal das profecias do Antigo Testamento que se referem ao fim do tempo ao retratar a batalha pós-milenial contra as forças do mal na linguagem de Ezequiel 38 e 39. “Gogue e Magogue” – agora se referindo a todos os inimigos de Deus ao longo dos séculos – são repelidos em seu ataque contra a cidade santa de Deus e o seu povo, e consumidos no lago de fogo (Apocalipse 20:8 e 9). Igualmente, a Nova Jerusalém, o lar eterno dos santos na Terra renovada, é grandemente descrita na linguagem de Ezequiel 40 a 48, e a experiência de Isaías 25:8 é cumprida quando Deus “lhes enxugará dos olhos toda lágrima” (Apocalipse 21:4). A semente de Abraão herdará a Terra Prometida, que, já no Antigo Testamento, devia ser expandida para incluir toda a Terra. Os mansos finalmente “herdarão a terra” (Salmos 37:11; Mateus 5:5)!

Resumindo, as profecias do reino do Antigo Testamento, que são parte da profecia clássica, têm um cumprimento escatológico (últimos dias) em três estágios: (1) escatologia inaugurada: o cumprimento básico das expectativas escatológicas do Antigo Testamento, culminando na vida e obra terrestre de Jesus, o israelita representativo, em seu primeiro advento; (2) escatologia apropriada: os derivados aspectos espirituais de cumprimento pela igreja (constituída por judeus e gentios), o corpo de Cristo no tempo entre as suas primeira e segunda vindas, mas faltando os aspectos nacionais de cumprimento; e (3) escatologia consumada: o aspecto do cumprimento final e universal pelo Israel escatológico (todos os redimidos, incluindo judeus e gentios) em conexão com a introdução da era vindoura no segundo advento de Cristo e além, que inclui não apenas as dimensões de cumprimento espiritual, mas também literal.8

O modo de cumprimento em cada um destes aspectos é diferenciado de acordo com a presença física e/ou espiritual de Cristo, o rei com respeito ao seu reino. Primeiro, no ministério terrestre de Cristo, quando, como o israelita representativo, Ele estava fisicamente presente, o cumprimento foi literal e local, centralizado nele. Assim, por exemplo, as profecias de “ajuntamento” (Deuteronômio 30; Ezequiel 36 e 37) receberam um cumprimento inicial quando Ele literalmente reuniu os doze discípulos a si mesmo (Mateus 5:1; João 10:14 a 16; João 11:52).

Segundo, durante o tempo da Igreja em que Cristo está universalmente, mas apenas espiritualmente presente (isto é, por meio do seu Espírito), o cumprimento é espiritual e universal. Durante esse período, por exemplo, as “profecias de ajuntamento” do Antigo Testamento são cumpridas quando o povo de Deus é reunido espiritualmente (não fisicamente) e universalmente pela fé em Cristo (Mateus 18:20; Hebreus 12:22).

Finalmente, por ocasião do segundo advento de Cristo – em que Ele retorna fisicamente, reunindo literalmente o povo de Deus a si mesmo (reúne-se o Rei com seu reino) –, o cumprimento é gloriosamente literal e universal. Assim, com referência às “profecias de ajuntamento” do Antigo Testamento, no Segundo Advento, e, novamente, depois do milênio e pela eternidade, Cristo reúne a si mesmo, literal e gloriosamente, todo o seu povo (Mateus 24:31; 2Tessalonicenses 2:1; Apocalipse 21 e 22). No livro de Apocalipse, as várias descrições do cenário do fim do tempo contidas no Antigo Testamento, encontram um cumprimento glorioso, literal e universal, centralizado em Cristo, o rei vitorioso, e no seu povo, o Israel escatológico.

Passos funcionais para a interpretação

Como um guia prático para a interpretação da profecia preditiva das Escrituras do Antigo Testamento, os seguintes passos sugeridos podem ser úteis:

  1. Determine o ambiente histórico que suscita a profecia: quem escreveu a profecia, quando, e sob quais circunstâncias. Reconheça exemplos em que o livro pode saltar de uma crise local imediata, conforme descrita no livro ou passagem específica, para o escatológico “Dia do Senhor” no final do tempo (por exemplo, a descrição de Joel da praga local dos gafanhotos, saltando então para o escatológico “Dia do Senhor”).
  2. Analise a estrutura literária do livro e a passagem imediata sob consideração, determinando onde ocorre ou aparece essa passagem e que parte ela desempenha na estrutura global do capítulo ou do livro (por exemplo, Gênesis 3:15 aparecendo no centro quiástico de Gênesis 3).
  3. Olhe atentamente para o fluxo gramatical natural da passagem – palavras, frases, cláusulas, sentenças – para compreender o que especificamente é predito (por exemplo, a mudança ou deslocamento em Gênesis 3:15 de uma “semente” coletiva [descendentes espirituais de Eva] para uma “Semente” singular [o Messias]; uma mudança ocorre também em Gênesis 22:17 e 18, conforme reconhecido por Paulo em Gálatas 3:6 e 16).
  4. Note quaisquer símbolos evidentes ou qualquer linguagem figurativa empregada e determine o significado de cada símbolo ou figura à luz do contexto imediato e uso dessa linguagem em outra parte das Escrituras (por exemplo, os muitos sinais-ações de Ezequiel).
  5. Determine que tipo de predição profética está envolvido: messiânico, oráculo contra uma nação estrangeira, ou uma promessa do reino para o Israel teocrático. Se for profecia messiânica, note que aspectos dessas profecias não são dependentes da escolha humana e são, portanto, incondicionais, e quais estão descrevendo efeitos do advento do Messias que são condicionais, dependendo da reação de Israel. Note também se a predição é diretamente messiânica (como em Salmos 110), ou indiretamente (tipologicamente) messiânica (como em Salmos 2). Se for tipologicamente messiânica, procure na passagem indicadores de que a linguagem vai além do que é aplicável à pessoa, evento ou instituição do Antigo Testamento e aponta para o futuro, para o Messias. Use uma concordância ou anotações marginais para traçar conexões entre a profecia do Antigo Testamento e a vida de Cristo relatada nos evangelhos.
  6. Se for uma profecia do reino, concernente ao futuro de Israel, analise as promessas ou profecias específicas que são dadas e verifique as anotações marginais a fim de descobrir onde profecias similares ou relacionadas são dadas em outras partes do Antigo Testamento. Visualize o plano divino original para o povo de Israel enquanto eles permanecessem fiéis a Deus, bem como as maldições da aliança que vêm como ameaças no caso de contínua infidelidade à aliança, rompendo o plano divino.
  7. Na compreensão do cumprimento no Novo Testamento dessas promessas do reino, lembre-se de que Jesus, como o israelita representativo, realizou em si mesmo o cumprimento básico literal, inicial (inaugurado) das profecias do reino (por exemplo, as profecias de “ajuntamento” receberam um cumprimento inicial, em princípio, quando Ele reuniu a si mesmo os doze discípulos).
  8. Reconheça que essas mesmas promessas/profecias encontram cumprimento espiritual na igreja, o corpo de Cristo (por exemplo, a igreja é reunida espiritualmente pela fé em Cristo).
  9. Note que essas profecias do reino encontram seu cumprimento consumado, universal e literal no segundo advento e além (por exemplo, Cristo reúne universal e literalmente todo o seu povo a si mesmo no segundo advento e outra vez depois do milênio).
  10. Com respeito à terminologia geopolítica nacional ou imagens para Israel, que se encontram nas profecias do reino, reconheça que essa linguagem (Jerusalém, monte Sião, Israel, etc) é frequentemente universalizada no Novo Testamento quando se refere ao Israel cristão, às realidades celestiais, ou à Nova Jerusalém depois do milênio.
  11. As profecias do reino descrevendo os inimigos de Israel devem ser igualmente interpretadas no Novo Testamento com referência a Cristo (como nos passos 7 a 9): os literais e locais inimigos de Cristo em seu primeiro advento (por exemplo, João 13:18); os inimigos espirituais e universais durante a era cristã (Apocalipse 12:13 e 16); e os inimigos literais e universais no segundo advento e além (Apocalipse 20:8 e 9).
  12. As profecias do reino do Antigo Testamento de feitio apocalíptico, referindo-se especificamente à batalha final escatológica entre Israel e seus inimigos (Ezequiel 38 e 39; Zacarias 12 e 14; Joel 3; Isaías 24 a 27), também devem ser interpretadas em harmonia com os princípios cristocêntricos já enfatizados. O cumprimento consumado é literal (isto é, os inimigos de Deus marcham literalmente contra Jerusalém, e o monte das Oliveiras se divide em dois [Zacarias 12:1 a 9; Zacarias 14:4; Apocalipse 20:9], mas as referências a Israel e seus inimigos são universalizadas: Israel se refere ao verdadeiro povo de Deus em todas as eras; Gogue e Magogue se referem a todos os seus inimigos (Ezequiel 38 e 39; Apocalipse 20:8).

Referências

  1. Veja Barton Payne, Encyclopedia of Biblical Prophecy: The Complete Guide to Scriptural Predictions and Their Fulfillment (Grand Rapids, MI: Baker, 1973), p. 13, 674-675. Segundo a análise de Payne, dos 23.210 versos do Antigo Testamento, 6.641 contêm material preditivo, ou 28½ por cento.
  2. Para discussão da tipologia bíblica, veja o capítulo 13 e Richard M. Davidson, Typology in Scripture: A Study of Hermeneutical Typos Structures (Andrews University Dissertation Series, 2; Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1981).
  3. Tradução do autor.
  4. Veja Jack Collins, “A Syntactical Note (Genesis 3:15): Is the Woman’s Seed Singular or Plural?” Tyndale Bulletin 48 (1997): 139-148; e Afolarin O. Ojewole, “The Seed in Genesis 3:15: An Exegetical and Intertextual Study” (Ph.D Dissertation, Andrews University, 2002), p. 190-207.
  5. Para mais completa discussão e comprovação, veja Richard M. Davidson, “The Eschatological Literary Structure of the Old Testament”, em Creation, Life, and Hope: Essays in Honor of Jacques B. Doukhan, ed. Jiři Moskala (Berrien Springs, MI: Old Testament Department, Seventh-day Adventist Theological Seminary, Andrews University, 2000), 349-366; cf. John H. Sailhamer, “The Messiah and the Hebrew Bible”, JETS 44 (2001): 5-23.
  6. Veja Moshe Weinfeld, “The Covenants of Grant in the Old Testament and the Ancient Near East”, JAOS 90 (1976): 184-203.
  7. Gerhard F. Hasel, The Remnant: The History and Theology of the Remnant Idea From Genesis to Isaiah (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1972); e Kenneth Mulzac, “The Remnant Motif in the Context of Judgment and Salvation in the Book of Jeremiah” (Ph.D dissertation, Andrews University, 1995).
  8. Para elaboração desses princípios, veja Davidson, “Sanctuary Typology”, em Symposium on Revelation–Book 1, Daniel and Revelation Committee Series, vol. 6, ed. Frank B. Holbrook (Silver Spring, MD: Instituto de Pesquisas Bíblicas, 1992), p. 99-111, e Hans K. LaRondelle, The Israel of God in Prophecy: Principles of Prophetic Interpretation (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1983).

Bibliografia selecionada

Davidson, Richard M. “The Eschatological Structure of the Old Testament”, em Creation, Life, and Hope: Essays in Honor of Jacques B. Doukhan. Editado por Jiři Moskala. Berrien Springs, MI: Old Testaqment Department, Seventh-day Adventist Theological Seminary, Andrews University, 2000.

Doukhan, Jacques B. The Mistery of Israel. Hagerstown, MD: Review and Herald, 2004.

Hasel, Gerhard F. The Remnant: The History and Theology of the Remnant Idea From Genesis to Isaiah. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1972.

Kaiser, Walter C., Jr. The Messiah in the Old Testament. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995.

LaRondelle, Hans K. The Israel of God in Prophecy: Principles of Prophetic Interpretation. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1983.

Sailhamer, John H. The Pentateuch as Narrative: A Biblical-Theological Commentary. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992.

Strand, Kenneth. “Foundational Principles of Interpretation”. Em Symposium on Revelation: Introductory and Exegetical Studies–Book 1. Daniel and Revelation Committee Series, vol. 6, ed. Frank B. Holbrook. Silver Spring, MD: Instituto de Pesquisas Bíblicas, 1992. White, Ellen G. “The Lord’s Vineyard”. Christ’s Object Lessons. Washington D.C.: Review and Herald, 1941.

Frank B. Holbrook. “The House of Israel”. The Story of Prophets and Kings. Mountain View, CA: Pacific Press, 1943.

Richard M. Davidson, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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INTERPRETAÇÃO DOS EVANGELHOS E DAS EPÍSTOLAS

Introdução

Este capítulo discutirá métodos de interpretação que ajudarão a tornar significativos os evangelhos e as epístolas do Novo Testamento. Não é nossa finalidade entrar na discussão técnica dos eruditos do Novo Testamento relativa a esses livros, embora ocasionalmente seja feita referência a essa discussão para fins de esclarecimento. Nosso objetivo é ajudar o leitor a ver que a leitura cuidadosa, refletida e devota dos evangelhos e epístolas será recompensada com ideias significativas e trará renovação espiritual.

Interpretando os evangelhos

No momento, estamos interessados nos evangelhos e em como obter uma compreensão do que eles estão comunicando. Todos os quatro evangelhos relatam várias partes da vida e ministério de Jesus. É claro que eles não contêm um relatório completo, porque são demasiado breves para serem o que comumente chamamos de biografia. De fato, o apóstolo João conclui o seu evangelho com a observação: “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos” (João 21:25).

De início, uma simples norma empírica é proveitosa. Leia cuidadosamente. Não se apresse. Depois volte e releia. Absorva o que o escritor está dizendo. As epístolas normalmente podem ser lidas de uma só vez, mas é mais difícil fazer isto com os evangelhos, que são muito mais longos. Contudo, vários capítulos de um evangelho podem ser lidos de uma vez e então relidos.

Quando se interpretam os evangelhos, é importante, até onde for possível, estabelecer o seguinte: (1) os eventos históricos da vida pessoal de Jesus; (2) o contexto social e religioso no qual Jesus viveu e ministrou; (3) os interesses pessoais dos homens que escreveram os evangelhos; e (4) o contexto literário dentro do qual um determinado sermão, parábola, milagre, ou evento aparece. Isto envolve leitura cuidadosa.

Consideremos por um minuto cada um destes quatro pontos.

  1. Embora haja numerosos comentários e livros designados a ajudar o estudante dos evangelhos a obter um discernimento mais profundo sobre a vida pessoal de Jesus, O Desejado de Todas as Nações, de Ellen G. White, supera todos eles. Com introvisão inspirada, este livro nos guia para as emoções e o pensamento de Jesus desde sua infância até o seu sacrifício na cruz. Ser capaz de sentir o que Jesus sentia dá vida à narrativa do evangelho.
  2. Dois livros, dentre os muitos que estão disponíveis, são recomendados para ajudar a estabelecer o contexto social e religioso dentro do qual Jesus atuou. Jerusalem in the Time of Jesus, de Joachim Jeremias, e Everyman’s Talmud, de Abraham Cohen, ajudam a estabelecer o contexto social e religioso dos dias de Jesus.

Ao ler o relato evangélico de Jesus curando o cego, não se pode deixar de fazer a pergunta: “Por que Jesus cuspiu nos olhos do cego?” (Marcos 7:33; Marcos 8:23), ou “por que fez Ele lodo com a saliva e a aplicou aos olhos?” (João 9:6). A resposta pode ser encontrada no livro de Cohen, e o significado de usar a saliva torna-se então claro.

Cohen afirma que existia a seguinte crença nos dias de Jesus: “Para enfermidades oculares a saliva era comumente usada, mas somos informados de que ‘há uma tradição de que a saliva do filho primogênito de um pai tem virtudes curativas, mas não o filho primogênito de uma mãe’ (B.B. 126b).”1

Agora vejamos o significado do que Jesus fez. Comumente se acreditava que Jesus era o Filho ilegítimo de José com Maria. Porque José era pai de filhos antes de se casar com Maria, Jesus não era o primogênito de José (O Desejado de Todas as Nações, p. 86). Portanto, segundo a medicina popular judaica, Jesus não seria capaz de curar doenças dos olhos com sua saliva. A saliva de um filho primogênito de uma mulher, que era a relação de Jesus com Maria, não tinha nenhum poder curador. Assim, isto também excluiria Jesus de curar doenças dos olhos como Ele fez. Todavia, Jesus era capaz de corrigir problemas oculares com sua saliva. Usando a superstição da medicina popular judaica, Jesus evidenciou que Ele não era o filho ilegítimo de José, como muitos o acusavam de ser, mas era o que afirmava ser, o Filho unigênito de Deus.

  1. É importante firmar os interesses pessoais dos escritores do evangelho. Cada escritor foi tocado pela graça salvadora de Jesus e tinha um profundo interesse em quem Ele era e no que dizia e fazia. Mas cada um nos apresenta o relatório de sua própria estrutura conceitual. Compreender a estrutura conceitual nos ajuda a ver Jesus por meio de quatro pares de olhos e assim nos dá um quadro mais completo. Mais será dito posteriormente acerca dos interesses pessoais de cada escritor.
  2. Como é verdade na leitura de qualquer porção das Escrituras, o contexto literário deve ser visto claramente se devemos compreender a porção menor que está sendo lida. A ignorância do contexto pode levar à má compreensão e a interpretações errôneas do que uma passagem realmente está dizendo.

Por que quatro evangelhos?

Uma pergunta que tem sido feita reiteradamente é: por que existem quatro evangelhos? Apenas um não teria sido suficiente para nos dar uma descrição de Jesus, ou cinco ou seis não teriam sido melhores do que quatro? Não há nada sagrado quanto ao número quatro. Não há dúvida de que quatro evangelhos nos dão uma descrição mais completa do que um, e, evidentemente, quatro fizeram o que Deus queria, de sorte que não temos cinco ou seis. É interessante notar que Lucas estava ciente de que “muitos” relatos haviam sido escritos acerca de Jesus quando ele tomou sua pena e começou o seu trabalho. “Visto que muitos”, diz ele, “houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram…” (Lucas 1:1).

Mas desses “muitos” que escreveram, o Espírito Santo escolheu apenas quatro para serem incluídos no Novo Testamento. Mateus, um ex-cobrador de impostos, que havia trabalhado para Herodes, tetrarca da Galileia, e tinha sido, como podemos seguramente admitir, um herodiano. Marcos, cujos pais eram dedicados seguidores de Jesus, em cujo lar Jesus tomou a última ceia com seus discípulos e que pode ter sido o jovem que seguiu a Jesus e aos apóstolos até o jardim do Getsêmani, e que ao fugir daqueles que prenderam a Jesus, desembaraçando-se de suas garras, deixou o lençol com que estava enrolado nas mãos dos que tentavam prendê-lo (Marcos 14:51 e 52). Lucas, gentio e colaborador de Paulo e de Marcos (Filemom 24), além de médico (Colossenses 4:14). E ali estava João, o discípulo amado, que nos apresenta um relato inspirador de Jesus, o grande “EU SOU”.

O desafio sinótico

Três dos quatro evangelhos são muito semelhantes em seus relatos. Mateus, Marcos e Lucas são chamados os evangelhos sinóticos, isto é, eles oferecem uma “visão comum”. Mas se você os ler cuidadosamente, verá diferenças em cada um que preenchem o que está faltando em outros. Qualquer evangelho deveria primeiramente ser lido para se compreender o que o escritor está apresentando acerca de Jesus. Uma vez que isso esteja claro, então podem ser feitas comparações com os outros evangelhos quanto a outros detalhes.

Quando são feitas comparações, surgirão o que parecem discrepâncias. Essas diferenças incomodam os céticos, e são apontadas como evidência de que os evangelhos não são dignos de confiança. Mas os escritores sinóticos não eram robôs, aderindo rigidamente a um só relato do ministério de Jesus que não pudesse variar no mínimo. Antes, cada escritor estava pintando um retrato de Jesus, e as várias diferenças não são outra coisa senão o toque de seus pincéis produzindo diferentes matizes na coloração. Lembre-se de que cada escritor nos está falando sobre Jesus a partir de sua própria estrutura conceitual. Qualquer que ler os sinóticos reconhecerá imediatamente o mesmo retrato embora sendo refrescado pelas diferentes tonalidades.

As diferenças contidas nos evangelhos sinóticos são conhecidas no mundo erudito como o Problema Sinótico. Mas essas diferenças não são realmente um problema. Elas são, antes, um torturante desafio. Um desafio para se ver e compreender a Jesus da forma como o escritor do evangelho o via e compreendia. Comparando os relatos sinóticos dos milagres, parábolas e sermões de Jesus e o seu trato com as pessoas, você começa a ver o que cada escritor apreciava em Jesus. Você pode ver o toque de seus pincéis.

Enquanto Mateus, Marcos e Lucas apresentam uma visão comum da vida de Jesus, João está à parte. Seu evangelho é uma descrição que preenche as lacunas deixadas pelos outros três escritores. Mas, mesmo assim, lembre-se de que com os quatro evangelhos ainda não temos um relato completo da vida de Jesus. Os evangelhos sinóticos provavelmente foram escritos uns vinte e cinco ou trinta anos após a ascensão de Jesus. João foi escrito em algum tempo durante a última década do primeiro século d.C. De sua posição vantajosa ele podia ver quais eram os eventos importantes que haviam sido omitidos pelos outros três, e assim ele os partilha conosco.

Por exemplo, João é o único escritor que relata a conversa de Nicodemos com Jesus imediatamente após Jesus ter purificado o templo pela primeira vez. Ellen G. White faz a seguinte observação acerca dessa visita, ilustrando o interesse pessoal de João e como ele preencheu detalhes que faltavam: “Nicodemos relatou a João a história daquela entrevista, e por sua pena foi ela registrada para instrução de milhões. As verdades aí ensinadas são tão importantes hoje em dia como naquela solene noite, na sombria montanha, quando o príncipe judeu foi aprender, com o humilde Mestre da Galileia, o caminho da vida” (O Desejado de Todas as Nações, p. 177).

Fontes dos evangelhos sinóticos

Por vários séculos, a maioria dos eruditos do Novo Testamento tem acreditado que Marcos foi escrito antes de Mateus e Lucas. Possivelmente porque é o mais breve dos três (embora alguns achem que Mateus foi escrito primeiro). Contudo, alguns dos relatos das atividades de Jesus são mais detalhados em Marcos do que nos relatos paralelos de Mateus e Lucas. Seja como for, a ideia é a de que Mateus e Lucas usaram o relato escrito de Marcos como a base para seus evangelhos. Eles teriam usado outro documento escrito chamado “Q” (Q da palavra alemã quelle, que significa “fonte”) como a base para o material eles tinham em comum que não é encontrado em Marcos. Isto é conhecido como a hipótese dos dois documentos. Mas há um passo além disto: acredita-se que tanto Mateus como Lucas utilizaram material escrito ao qual os outros escritores não tiveram acesso. Assim, a hipótese dos dois documentos é agora ampliada para a hipótese dos quatro documentos. As fontes escritas agora se alinham como segue: Marcos e Q foram ambos usados por Mateus e por Lucas (a hipótese dos dois documentos [ou bidocumental]), Mateus usou uma fonte conhecida como “M” que Lucas não tinha, e Lucas usou uma fonte conhecida como “L” que Mateus não tinha, o que produz a hipótese dos quatro documentos [tetradocumental ou quadridocumental] (Marcos, Q, M e L).

Todavia, se você observar cuidadosamente Lucas 1:1 a 4, o autor parece estar dizendo aos seus leitores que ele e os “muitos” que haviam compilado as narrativas do ministério de Jesus não usaram fontes escritas, mas contaram com relatos orais de testemunhas oculares e ministros da Palavra.

Não há nenhuma evidência de que os escritores dos evangelhos receberam sua informação acerca do ministério de Jesus por meio de visões ou sonhos inspirados. Mateus e João eram apóstolos e passaram boa parte do tempo com Ele. Foram testemunhas oculares de muitos eventos que registraram. Marcos conhecia Jesus pessoalmente, mas não passou com Ele o mesmo tempo de Mateus e João. A tradição afirma que Pedro foi a fonte de informação registrada por Marcos. Lucas, por outro lado, não conheceu Jesus pessoalmente, nem mesmo o viu. Conquanto os outros três tivessem contato pessoal com Jesus em níveis variados, foi Lucas quem sentiu que devia explicar a Teófilo, e a qualquer um que lesse seu evangelho, como ele adquiriu sua informação acerca de Jesus.

Se os escritores do evangelho não receberam visões e sonhos inspirados, como podem seus relatos ser considerados como inspirados? A resposta está na inspiração do pensamento, que é descrita como segue: “Não são as palavras da Bíblia que são inspiradas, mas os homens é que o foram. A inspiração não atua nas palavras do homem ou em suas expressões, mas no próprio homem que, sob a influência do Espírito Santo, é possuído de pensamentos” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21). Dando mais um passo, nos é dito que “Deus escolheu comunicar sua verdade ao mundo por meio de pessoas que Ele mesmo, pelo Seu Espírito, habilitou e autorizou para realizarem sua obra. Ele guiou a mente na escolha do que dizer e escrever” (O Grande Conflito, p. 7).

Por exemplo, sendo que Lucas investigou cuidadosamente a vida de Jesus desde o princípio (Lucas 1:1 a 4), por que ele não registrou a visita dos magos do Oriente? Certamente, ele deve ter sabido disto, pois foi um evento importante que alvoroçou toda a cidade de Jerusalém e infundiu terror ao coração de Herodes, o Grande. Tinha Lucas conhecimento desse evento, ou foi ele guiado pelo Espírito Santo a selecionar em vez disto a visita dos pastores, que veio a ser uma pincelada no quadro de Jesus pintado por Lucas que não vemos nos outros evangelhos? E o que existe no tocante ao retrato de Jesus apresentado por Lucas que torna a visita dos pastores uma contribuição para o seu evangelho, ao passo que a visita dos magos faria uma contribuição para o retrato de Mateus? Posteriormente voltaremos a estas indagações. Notando-se estas diferenças, mesmo pequenas, a descrição de Jesus é acentuada ao vir da pena de diferentes escritores. O torturante desafio é notar estas diferenças e ver que contribuição elas oferecem para o quadro global.

A importância do evangelho de João

A interpretação dos evangelhos requer uma leitura cuidadosa de cada um. Uma das primeiras coisas que o leitor deve procurar é o tema principal ou a ênfase que o escritor deseja dar. Por exemplo, a mais importante ênfase de João é a divindade de Jesus. Os versos iniciais do seu evangelho dão o tom para o que segue: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1). Este tema é apresentado repetidamente ao longo do evangelho de João por sermões, parábolas, debates e milagres que o Espírito Santo o guiou a registrar. Depois de um debate com os líderes religiosos sobre a identidade deles e a sua, Jesus expôs quem é Ele: “Antes que Abraão existisse, EU SOU” (João 8:58). Assim, esteja atento ao principal tema de cada evangelho, porque varia de livro para livro.

O leitor procurará, em seguida, os eventos da vida de Jesus que são partilhados por outros evangelhos e, então, os detalhes desses eventos que são singulares no evangelho que ele está lendo. Tendo feito isto, o leitor reunirá todos os detalhes dos quatro evangelhos para uma compreensão mais completa. Variações nos relatos (os torturantes desafios) apenas ajudarão a ampliar o quadro. Por exemplo: o evangelho de João é muito importante para nossa compreensão global da vida e ministério de Jesus por três razões: (1) seu registro é constituído grandemente de eventos que os sinóticos não mencionam. Assim, existem poucas semelhanças; (2) quando ele registra um evento que tem semelhança com os sinóticos, acrescenta detalhes que resultam numa compreensão mais completa do que ocorreu; (3) ele nos dá uma estrutura cronológica do tempo para o ministério de Jesus.

  1. Aqui estão alguns exemplos para o ponto número um: (a) o chamado de um punhado de discípulos para o ministério de tempo integral vem numa ocasião posterior (O Desejado de Todas as Nações, p. 246 e 247); (b) as bodas em Caná (João 2:1 e 2); (c) a primeira purificação do templo, que inaugurou o ministério de Jesus (João 2:13 a 22); (d) a visita de Nicodemos (João 3:1 a 21); (e) a mulher de Samaria (João 4:1 a 42); (f) a cura do coxo no tanque no sábado, seguido pela detenção e julgamento de Jesus sob a acusação de violar o dia do repouso (O Desejado de Todas as Nações, p. 204), e sua defesa legal diante do conselho dos anciãos durante a qual Ele afirma igualdade com seu Pai por possuir vida como uma parte de sua própria natureza (João 5:1 a 47). E a lista continua. Nosso conhecimento seria grandemente restringido sem estes relatórios independentes, e a cronologia de João (ponto três já visto) ajuda a organizar este relato e o relato dos sinóticos em uma sequência lógica.
  2. Exceto quanto às horas finais da vida de Jesus, João repete muito pouco da informação que pode ser encontrada nos sinóticos. E mesmo em seu registro dos momentos finais de Jesus, ele nos fornece numerosos detalhes que são exclusivos do seu evangelho. Em João 6, encontramos uma ilustração de um evento que João tem em comum com os sinóticos. Acrescentando detalhes, ele aprofunda nossa compreensão do que está ocorrendo e enriquece nossa compreensão daqueles eventos registrados nos sinóticos pela inclusão de informação que os sinóticos não relatam.

João, em seu relato da alimentação dos cinco mil (João 6), acrescenta os seguintes fatos: (1) Depois do milagre do pão e dos peixes, a multidão queria arrebatar Jesus pela força e fazê-lo rei (João 6:15). (2) Sabendo que essas pessoas estavam interessadas apenas no poder mundano e não na vida eterna, Ele pregou o sermão sobre o Pão da Vida (João 6:26 a 59). (3) Do conteúdo do sermão, o povo percebeu que Jesus não tinha nenhuma intenção de realizar suas ambições políticas, mas os estava chamando à união espiritual com Ele (João 6:53 a 58). (4) A reação ao sermão foi uma deserção em massa de pessoas que tinham afirmado ser seus seguidores, apenas um dia depois que eles queriam fazê-lo rei pela força (João 6:60 a 66). (5) Essa deserção foi tão extensa que Jesus perguntou aos doze: “Quereis também vós outros retirar-vos?” (João 6:67). Os sinóticos não concluem a alimentação dos cinco mil com estes importantes detalhes. Esta é apenas uma ilustração de como uma leitura cuidadosa de um evangelho e sua comparação com os outros três pode expandir nossa compreensão dos eventos da vida de Jesus.

  1. O evangelho de João nos dá uma cronologia do ministério de Jesus. Se tivéssemos somente os sinóticos, teríamos de concluir que o ministério de Jesus foi muito mais breve do que realmente foi. João estabelece sua cronologia em torno de quatro páscoas. Jesus foi batizado no outono de 27 d.C. na conclusão das 69 semanas de Daniel 9:25. A primeira páscoa foi na primavera seguinte (28 d.C., João 2:13), quando Jesus purificou o templo pela primeira vez e iniciou o seu ministério (João 2:14 a 22). A páscoa seguinte (29 d.C., João 5:1; João 2:13) concluiu o seu ministério na Judeia com sua citação “perante o sinédrio para responder à acusação de violador do sábado” (João 5:2 a 47; O Desejado de Todas as Nações, p. 204). A terceira páscoa (30 d.C., João 6:4) envolveu a conclusão do seu ministério na Galileia com a alimentação dos cinco mil e a deserção em massa de seus professos seguidores (João 6:1 a 71). A páscoa final (31 d.C., João 13:1) liga-se à sua detenção, julgamento e a crucifixão.

Baseados na cronologia de João, podemos pôr os eventos relatados nos sinóticos em seu devido lugar. Sem dúvida, o evangelho de João dá uma valiosa contribuição para a interpretação e compreensão do relato do evangelho.

Interpretando os evangelhos sinóticos

No que se refere à interpretação dos evangelhos sinóticos, no mínimo três perguntas devem estar em primeiro lugar em nossa mente: (1) Sendo que o evangelho de João, que estabelece uma estrutura cronológica para o ministério de Jesus, foi escrito décadas após os sinóticos, onde os escritores sinóticos obtiveram a ordem dos eventos que vemos em seus evangelhos? (2) O que nos ensinam as variações de conteúdo? (3) É possível que Jesus repetisse seus ensinos, sermões e parábolas, adaptando-os para satisfazer as necessidades e interesses de grupos variados de ouvintes em diferentes localidades geográficas?

  1. Lidando com a primeira pergunta, uma leitura dos evangelhos sinóticos sugere que há uma certa ordem de eventos na vida de Jesus que é partilhada por todos os três. Por exemplo: se admitirmos que Marcos foi escrito primeiro e que ele registrou as memórias de Pedro, então Marcos recebeu a ordem dos eventos do seu evangelho ouvindo o relatório oral de Pedro (não há nenhum evangelho canônico de autoria de Pedro). Isto significa que, inserida no relatório oral de Pedro, havia uma ordem básica dos eventos que ocorreram na vida de Jesus.

Lucas nos afirma que ele compilou o relato do seu evangelho conversando pessoalmente com testemunhas oculares e ministros da Palavra. Embora ele acrescente muitas informações e faça alguns ajustes, Lucas tem a mesma ordem básica de eventos que pode ser encontrada em Marcos. É claro, Lucas foi um colaborador de Marcos e Paulo e, sem dúvida, recebeu muita informação oralmente de Marcos (Filemom 24).

Então nós temos as contribuições de Mateus, uma testemunha ocular, e novamente vemos a ordem básica dos eventos. Não se pode deixar de concluir que já existia na tradição oral acerca de Jesus uma sequência básica de eventos antes que os sinóticos fossem escritos.

Há outro detalhe de interpretação do qual o leitor deve estar ciente. É claro que alguns eventos de um evangelho não sincronizam com os outros. É aqui que uma observação de Ellen G. White é proveitosa. “Nem sempre há perfeita ordem ou evidente unidade nas Escrituras. Os milagres de Cristo não são dados na ordem exata, mas justo segundo ocorriam as circunstâncias, as quais reclamavam esta divina revelação do poder de Cristo” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 20). Em outras palavras, alguns dos milagres de Jesus foram usados como ilustrações literárias do seu poder e das verdades que Ele ensinava. Portanto, esses milagres não apareceriam na mesma ordem cronológica em cada um dos sinóticos.

Marcos parece registrar o esqueleto. Mateus e Lucas adicionam carne aos ossos com o acréscimo da informação não encontrada em Marcos, mas eles raramente desordenam a sequência básica dos eventos com suas adições. É verdade que Mateus e Lucas apresentam alguns eventos e parábolas diferentemente de Marcos, mas aqui é a situação ou lugar em que entra o torturante desafio. E isto nos leva à segunda pergunta que se deve ter em mente quando se interpreta os sinóticos.

  1. A segunda pergunta lida com as variações encontradas nos evangelhos sinóticos. Embora os sinóticos apresentem uma visão comum do ministério de Jesus, cada escritor mostra, a partir do seu próprio ponto de referência, seu interesse próprio e singular em quem é Jesus e no que Ele fez. São seus próprios interesses pessoais que apresentam o desafio para a interpretação, conquanto preenchendo os detalhes em cada descrição de Jesus.

Embora Marcos nos apresente o esqueleto do ministério de Jesus, ele tem um interesse pessoal no Jesus refletido em seu evangelho. Este interesse é visto na sentença de abertura: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Marcos 1:1). Que Jesus é o Filho de Deus é o fundamento das boas novas acerca de Jesus, e cada evento, cada sermão, e cada parábola comunica algo acerca do Filho, quer seja um reconhecimento de sua divindade pelos demônios (Marcos 1:24) ou uma afirmação ao paralítico de que seus pecados estão perdoados – palavras que estabelecem sua autoridade para perdoar pecados diante dos olhos surpresos dos escribas, reunidos depois de Ele ordenar ao paralítico que se levantasse, tomasse sua cama e fosse para casa (Marcos 2:5 a 11).

Ao nos movermos do essencial apresentado em Marcos, os interesses pessoais que Mateus e Lucas tinham em Cristo tornam-se muito evidentes. Por exemplo, o interesse de Mateus em Jesus clama por atenção desde o primeiro verso: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mateus 1:1). Esta declaração é seguida pela genealogia de Jesus começando com Abraão, passando pelos reis de Judá, até José, pai adotivo de Jesus (Mateus 1:1 a 17).

É claro o interesse messiânico em Jesus. Ele é o Filho de Davi; Ele nasceu na cidade real de Davi na família de José, que era um herdeiro ao trono (embora a concepção de Jesus fosse um milagre do Espírito Santo [Mateus 1:18]). Depois que os magos do Oriente vieram à procura do lugar onde nascera o Rei dos Judeus (Mateus 2:2), Herodes, em seu furor ciumento, tentou eliminar seu competidor ao trono (Mateus 2:3 a 18). O interesse messiânico é também evidente nas tentações de Cristo e em seu Sermão da Montanha. A última das três tentações no deserto foi sobre quem deveria dominar os reinos do mundo, Satanás ou Jesus (Mateus 4:8 a 10). Lucas inverte as duas últimas tentações (Lucas 4:1 a 12), e o Sermão da Montanha (Mateus 5 a 7) foi designado a dar aos seus ouvintes uma concepção correta do reino de Jesus e dEle como Rei (O Desejado de Todas as Nações, p. 299). Poder-se-ia acrescentar que esse sermão também foi destinado a mostrar como os cidadãos desse reino devem viver. As beatitudes começam com os humildes de espírito e terminam com aqueles que são perseguidos por causa da justiça, sendo assegurado a ambos que herdarão o reino dos céus. Sem dúvida, Mateus estava interessado em Jesus como o rei messiânico e em seu reino. Esse interesse percorre o seu evangelho. Uma vez estando o leitor ciente dos interesses pessoais que o escritor do evangelho tem em Jesus, ele pode estar atento ao vir isto à tona. Cada aparecimento amplia a compreensão global da narrativa do evangelho.

Pequenas diferenças podem ser procuradas, porque elas também ajudam o leitor a obter um discernimento acerca dos interesses do escritor. Por exemplo, Mateus tinha sido um empregado de Herodes e teria sido visto como um herodiano e simpatizante de Roma. Sabendo disto, o relato da cura do homem da mão ressequida pelos escritores sinóticos é interessante. Esse milagre ocorreu em uma sinagoga e diante de um grupo de homens que queria matar Jesus. Lucas conclui o relato do milagre dizendo simplesmente que esses homens “se encheram de furor e discutiam entre si quanto ao que fariam a Jesus” (Lucas 6:11). Marcos identifica esses homens como fariseus, notando que eles deixaram a sinagoga e conspiraram com os herodianos sobre como poderiam matar Jesus (Marcos 3:6). Mateus, um ex-herodiano, exclui seus antigos companheiros da conspiração assassina e diz: “Retirando-se, porém, os fariseus, conspiravam contra ele, sobre como lhe tirariam a vida” (Mateus 12:14). Isto não significa que Mateus ainda era simpatizante de Roma, mas pode indicar que ele lança a culpa dessa conspiração sobre aqueles que uma vez o odiaram por causa de sua posição no governo de Herodes.

Há um ponto de interpretação adicional que aqui precisa ser acrescentado antes de nos mudarmos para Lucas. Mateus foi um colaborador de Jesus e testemunha ocular dos dois últimos anos do seu ministério. Ele foi chamado para o discipulado imediatamente depois de Pedro, André, Tiago e João serem chamados para o trabalho de tempo integral (O Desejado de Todas as Nações, p. 272). Marcos, e principalmente Lucas, não tiveram as vantagens de Mateus como testemunha ocular. Portanto, quando aparece uma pequena discrepância, a lógica diria: vá com a testemunha ocular. O relato do exorcismo que ocorreu na margem oriental do Mar da Galileia no país dos gadarenos é um bom exemplo disto. Marcos 5:2 e Lucas 8:27 falam de um homem possesso do demônio, que morava nos sepulcros, e foi ao encontro de Jesus quando Ele saiu do barco. Mateus, por outro lado, fala que dois homens possuídos pelo demônio o encontraram (Mateus 8:20). Ellen G. White segue o relato de Mateus (O Desejado de Todas as Nações, p. 337).

O interesse de Lucas em Jesus provém de sua experiência pessoal. Lucas era um converso gentio. Ele olhava para Jesus a partir de uma estrutura conceitual inteiramente diferente daquela de Mateus, Marcos e João, que eram judeus. Sendo que os gentios eram desprezados pelos judeus, Lucas está interessado em como a narrativa do evangelho e o ministério de Jesus se relacionam com outros que são desprezados, ou em uma categoria social mais humilde. Por exemplo, enquanto Gabriel anunciava o vindouro nascimento de Jesus a José, filho de Davi (Mateus 1:20 e 21), o anúncio é feito a Maria em Lucas 1:26 a 38. As mulheres geralmente eram tidas em baixa estima.

Mateus relata a visita dos magos que estavam à procura do Rei dos Judeus, e Lucas relata a visita dos pastores (Lucas 2:8 a 20). Havia uma certa nostalgia ligada ao pastoreio dos tempos do Antigo Testamento, porque o rei Davi tinha sido pastor. Todavia, nos dias de Jesus a ocupação de pastor era desprezada. Deve ter sido de grande interesse para Lucas que Deus passasse por cima de todos os líderes religiosos para anunciar o nascimento de seu Filho a um desprezado grupo de homens.

Todos os três sinóticos citam a profecia de Isaías 40 concernente ao ministério de João Batista, a “voz do que clama no deserto…”, mas somente Lucas conclui a citação acrescentando a informação de Isaías 52:10, “e toda carne verá a salvação de Deus” (Lucas 3:6), que inclui a si mesmo, um desprezado gentio.

Enquanto as tentações de Jesus no deserto, conforme relatadas por Mateus, terminam com o problema sobre quem dominará as nações da Terra – que se encaixa nos interesses particulares do autor –, no evangelho de Lucas elas terminam em Jerusalém. Jesus é levado ao pináculo do templo e Satanás o desafia a provar quem Ele é lançando-se abaixo. Na ordem das tentações apresentada por Lucas, Jesus ganhou a vitória em sua luta com Satanás no centro da própria cidade que se voltaria contra Ele e o crucificaria (Lucas 4:9 a 13), a cidade em que os gentios eram menosprezados.

Somente Lucas relata a história da aldeia samaritana que recusou hospitalidade a Jesus e sua atitude para com esses gentios conforme comparada com o que Tiago e João queriam fazer a eles (Lucas 9:51 a 55). Somente Lucas registra a história do bom samaritano (Lucas 10:25 a 37) e da purificação dos dez leprosos, que eram proscritos da sociedade, e do único – que sucedia ser um gentio samaritano – que retornou para agradecer a Jesus pelo que Ele lhe tinha feito (Lucas 17:11 a 19). Lucas também registra a parábola do fariseu e do publicano orando no templo (Lucas 18:9 a 14) e Jesus aceitando a hospitalidade de Zaqueu, o desprezado publicano (Lucas 19:1 a 10). É claro que Lucas está interessado em como Jesus, o salvador do mundo, se relacionava com os não-judeus e com aqueles da nação judaica que eram desprezados.

Os torturantes desafios vistos nas adições e nas omissões dos relatos sinóticos apenas contribuem para o quadro mais amplo da vida e ministério de Jesus. O leitor interessado dos evangelhos os observará e estará ciente deles quando aparecerem, compará-los-á com os relatos paralelos dos outros dois sinóticos para ver como cada mudança aprofunda a compreensão do que está escrito.

  1. Agora, a pergunta final. É possível que algumas variações dos relatos sinóticos resultassem de Jesus repetindo seu ensino a vários grupos de pessoas? Isto é realmente o que ocorreu. Os pregadores geralmente apresentam um sermão mais de uma vez, alterando-o aqui e ali para se ajustar a diferentes audiências a quem eles se dirigem. Os ensinos e parábolas de Jesus contêm verdade que Ele queria que todos ouvissem. O que Ele ensinava na Judeia certamente seria repetido para o benefício daqueles que viviam na Galileia. E a mesma verdade poderia ser apresentada com uma ênfase diferente e com ilustrações variadas.

Ellen G. White faz o seguinte comentário: “Parte considerável dos últimos meses do ministério de Cristo foi passada na Pereia, província ‘além do Jordão’ para quem vem da Judeia. Ali a multidão se aglomerava aos seus passos, como nos primeiros tempos de seu ministério na Galileia, e foram repetidos muitos de seus anteriores ensinos” (O Desejado de Todas as Nações, p. 488).

A compreensão de que cada um dos escritores do evangelho pinta um retrato de Jesus como ele o vê prestará um grande auxílio na interpretação dos evangelhos e em resolver as diferenças que são encontradas. Essas diferenças não devem ser consideradas como erros ou alguma coisa que torne os evangelhos indignos de confiança, mas como torturantes desafios que expandem nossa própria visão de quem é Jesus e o que Ele ensinou e fez.

Interpretando as epístolas

Além dos evangelhos (relatos da vida e ministério de Jesus), Atos (história da igreja primitiva) e Apocalipse (profecia), o Novo Testamento contém um conjunto de documentos enviados a congregações cristãs ou a indivíduos. Esses documentos são geralmente chamados epístolas. Há uma dúvida quanto a se uma distinção deve ser feita entre uma epístola – uma produção literária para ser lida por todos – e uma carta que é enviada como correspondência pessoal.

Dessa coleção de documentos, aquelas que são cartas genuínas, geralmente seguem o formato de qualquer outra carta daquele tempo. O autor identifica-se pelo nome na saudação inicial e o receptor é identificado. Isto é seguido por uma saudação, uma oração ou expressão de agradecimento; segue, então, o corpo da carta e a despedida (Romanos e 1Coríntios, por exemplo). A algumas das epístolas falta a introdução formal (Hebreus e 1João, por exemplo) e a outras, a despedida final (Tiago, por exemplo).

Conteúdo das epístolas              

As epístolas não são exposições teológicas. Sua finalidade é a instrução prática para o viver cristão, nutrição espiritual dos leitores, correção onde é necessária, encorajamento e admoestação. Algumas das epístolas tratam de problemas teológicos para esclarecer os leitores, corrigir equívocos e enfrentar erros evidentes, mas não foram escritas como exposições teológicas.

Por exemplo, em Romanos Paulo desenvolve a justificação e justiça pela fé, mas este não é o único intento desta epístola. Em Gálatas ele enfrenta o erro de “outro evangelho” que não é um evangelho. A maior parte de Hebreus é dedicada a uma magistral apresentação da obra de Jesus como nosso sumo sacerdote no santuário celestial usando o santuário terrestre e seus rituais como um tipo do celestial, mas também contém conselhos práticos sobre o viver cristão.

A seguinte abordagem ao estudo das epístolas provar-se-á útil:

  1. Devido à natureza variada do conteúdo das epístolas, a prática de ler uma epístola inteira de uma vez é um são procedimento.
  2. Então releia-a vagarosa e cuidadosamente.
  3. Em uma folha de papel, divida o conteúdo da epístola em seções lógicas. Uma seção para estudo teológico, outra para identificar problemas que o escritor está tratando, outra seção para conselho e para advertência sobre o viver cristão prático, etc. Tendo feito isto, a cada seção pode ser dada atenção individual.
  4. Enquanto divide uma epístola em seções para estudo adicional, anote palavras que podem produzir ideias de um estudo de palavras. Por exemplo, comparar versos em que Paulo usa a palavra “justo” ou “justiça” é um estudo interessante. Será visto que estas duas palavras são usadas para tratar da experiência da fé, assim como o viver uma vida de obediência.

1Coríntios 15:29 produz interessantes resultados de um estudo de palavras. Este o único verso utilizado por algumas pessoas para apoiar o batismo vicário e, portanto, a salvação pelos mortos. Neste estudo de palavras duas coisas devem ser notadas: (1) o uso da preposição grega huper, geralmente traduzida por “pelos” ou “em favor de”, e (2) a presença e a ausência do artigo definido (“os mortos” e “pessoas mortas” em geral).

  1. A preposição huper significa “sobre” ou “acima” e, como se nota, é comumente traduzida por “para” ou “em favor de”. Dentro do contexto da salvação, a palavra transmite a ideia de um escudo protetor sobre o pecador arrependido, que absorve a punição merecida pelo pecador. Assim, Cristo como um sacrifício vicário pagou a penalidade da lei transgredida em favor dos pecadores e se torna seu escudo protetor, (Romanos 5:6 e 8; Romanos 8:32). Entretanto, o ser humano não pode vicariamente ganhar a salvação para outro ser humano, porque ambos são pecadores. Portanto, o batismo vicário (uma pessoa viva ser batizada “por” [huper] uma pessoa morta), é contrário ao evangelho e à teologia paulina de justiça pela fé. Portanto, em 1Coríntios 15:29, huper deve assumir um significado diferente.

Os pagãos dos dias de Paulo viam que a graça de Cristo e sua ressurreição eram a única esperança que eles tinham de serem reunidos aos queridos mortos que tinham se tornado cristãos antes de morrerem. O paganismo não mantinha nenhuma esperança de uma reunião ou ressurreição. Por causa da esperança cristã da ressurreição, os pagãos estavam se voltando para Jesus como seu salvador, crendo que por meio de sua graça eles seriam reunidos aos amados mortos por ocasião da volta de Jesus. Assim, os vivos estavam sendo batizados “por causa dos mortos” ou “pelos mortos” (conforme o comentário de G. G. Findlay sobre 1Coríntios, em The Expositor’s Greek Testament para discussão adicional sobre este verso). Se os coríntios realmente estivessem sendo batizados por parentes mortos, com a ideia de que seu batismo vicariamente salvaria os mortos, Paulo teria reprovado severamente esta heresia em sua carta a eles. Mas sua menção casual do que estava sendo feito indica que ele não tinha nenhum problema com isto.

  1. Neste verso há um artigo definido antes da primeira aparição da palavra traduzida por “mortos” (tōn nekrōn, caso genitivo), assim indicando que “os mortos” são um grupo específico dentre todos os mortos, neste caso cristãos. O segundo aparecimento da palavra traduzida por “mortos” (nekroi, caso nominativo) não tem nenhum artigo, indicando, assim, os mortos em geral. A KJV e a NKJV têm um terceiro aparecimento de tōn nekrōn na última sentença do verso. Porém os mais antigos manuscritos gregos trazem “por eles” (uper autōn), referindo-se ao primeiro aparecimento da palavra “mortos”. Como resultado deste estudo de palavras, o verso pode ser compreendido como dizendo: “Por que estão as pessoas sendo batizadas por causa de sua esperança de serem reunidas com seus falecidos, cristãos amados, se os mortos em geral não ressuscitam?” 1Coríntios 15:29 torna-se agora uma forte afirmação para a crença na ressurreição ao dar-nos a ideia do que estava ocorrendo historicamente dentro da cultura pagã dos dias de Paulo.

Para realizar um estudo de palavras, será necessário um Dicionário Grego-Português. Em inglês, há vários que podem ser adquiridos, tais como An Expository Dictionary of Biblical Words, de W. E. Vine. O Theological Lexicon of the New Testament, em três volumes, de Ceslas Spicq é também útil. Para aqueles que querem levar a sério o estudo de palavras, há o Exegetical Dictionary of the New Testament, em três volumes, de Horst Balz e Gerhard Schneider e o multivolume Theological Dictionary of the New Testament, editado por Gerhard Kittel. Também, The New Englishman’s Greek Concordance of the New Testament é uma ferramenta útil.

Contexto histórico

Como acontece com o estudo dos evangelhos, é importante estabelecer o contexto histórico das epístolas. No tocante à epístola é necessário (1) obter o máximo possível de informação acerca do autor e (2) obter toda a informação disponível a respeito da congregação ou indivíduo a quem é enviada epístola.

  1. Exceto quanto a Judas, os nomes dos autores das epístolas aparecem nos evangelhos e em Atos. É destas duas fontes que o contexto histórico dos escritores pode ser reconstruído. Sabemos muito acerca de Paulo, Pedro e João, muito menos sobre Tiago, e nada acerca de Judas além da afirmação sobre ser o irmão de Tiago (Judas 1). Isto o tornaria, juntamente com seu irmão, um filho de José (Marcos 6:3).

Das próprias epístolas, podemos reunir alguma informação a respeito da situação pessoal do autor quando ele escreveu. Por exemplo, quando escreveu Romanos, Paulo tinha desejado ir à capital do Império por algum tempo para que pudesse partilhar algum dom com os cristãos de Roma e fortalecê-los na fé (Romanos 1:11 e 12), bem como ganhar conversos para Cristo (Romanos 1:13), mas ele não tinha sido capaz de fazer isto (Romanos 1:13). Seu plano era levar a assistência material doada pelas igrejas da Grécia e da Macedônia para os pobres de Jerusalém e, então, passar por Roma em seu caminho para a Espanha (Romanos 15:26 a 32).

Quando Paulo escreveu suas cartas aos cristãos filipenses, a Timóteo, Tito e Filemom, ele era um prisioneiro em Roma. Tiago escreveu aos cristãos judeus espalhados pelo Império Romano, como fez Pedro em sua primeira epístola.

Quando Paulo escreveu às igrejas da Galácia, sua posição, autoridade e ensino estavam sendo desafiados por críticos que o seguiram a essas igrejas e estavam ensinando um evangelho que era diferente do que ele havia ensinado (Gálatas 1:1, e 6 a 11). 1 e 2Coríntios foram escritas para uma igreja que também desafiava a autoridade de Paulo (2Coríntios 1:23 a 2:5).

O apanhar desses petiscos ajuda a interpretar o que o autor está dizendo na epístola.

  1. Estabelecer o contexto histórico do leitor indo ao dicionário bíblico e descobrindo tudo o que você pode a respeito da cidade, região, ou indivíduo a que a epístola é dirigida. The Interpreter’s Dictionary of the Bible, publicado pela Abingdon Press, é uma ferramenta útil.

Tente estabelecer, também, a partir da própria epístola e de outras fontes, a composição da congregação. Se a epístola é dirigida a um indivíduo, qual foi o relacionamento entre o autor e o leitor? Se havia problemas dentro da congregação, quais eram, e como o autor trata deles?

Por exemplo, mais de dezesseis páginas de coluna dupla do The Interpreter’s Dictionary of the Bible são dedicados à cidade de Corinto e às duas epístolas que Paulo escreveu aos cristãos coríntios. A cidade era muito cosmopolita, um florescente centro de comércio, e localizada perto do lugar em que os antigos jogos olímpicos gregos eram realizados.

Um problema pode ser descoberto na própria epístola. Sendo um centro comercial, atraía pessoas das várias partes do Império que falavam diferentes línguas. Isto pode ter sido a raiz do problema com o falar em línguas na igreja. Nenhuma das outras igrejas parece ter tido este problema.

As epístolas a Timóteo e a Tito falam por si mesmas. Paulo tinha um relacionamento muito íntimo com esses dois homens, chamando ambos de seus filhos. Eles haviam participado com Paulo das alegrias e da dor de pregar o evangelho a um mundo pagão. O relacionamento de Paulo com Filemom era o de um maduro colaborador. Ele era um amigo de quem Paulo queria cobrar uma dívida, fazendo-o receber de volta como irmão em Cristo a Onésimo, um escravo fugitivo que havia prejudicado Filemom.

Aplicação do conteúdo

Talvez o maior desafio ligado à interpretação da epístola seja decidir o que é relevante para hoje. É perigoso rejeitar o conselho e a instrução que nos irrita afirmando que isto não se ajusta ao nosso moderno contexto cultural. Gordon Fee e Douglas Stuart fazem uma afirmação válida quando dizem que o que partilhamos hoje com os leitores originais destinava-se também a nós.3

Um outro problema com a interpretação de uma epístola é tentar fazê-la dizer o que originalmente não disse e tentar responder a perguntas que não são feitas dentro do seu contexto. Novamente Fee e Stuart têm íntegro conselho para a interpretação de uma epístola: o texto não pode significar o que não significava para o autor e para os leitores.4

Como então compreendemos hoje a instrução que foi dada no contexto do primeiro século d.C.? Aqui estão algumas sugestões proveitosas:5

  1. Determine o núcleo central da mensagem contida em uma epístola e então trate da instrução que é dependente desse núcleo. Exemplo: A condição caída e desajudada do homem no pecado está no âmago de muitas das mensagens das epístolas, como é a redenção em Cristo da condição caída por meio da sua morte e ressurreição. Justificação, santificação e o retorno de Jesus são também material essencial. Compreender a instrução para o comportamento e estilo de vida cristão é hoje tão dependente de uma compreensão do material essencial como quando este foi escrito.
  1. Identifique o que as epístolas veem como inerentemente moral e o que não é. O comportamento moral que era baseado na lei de Deus no tempo em que as epístolas foram escritas continua hoje comportamento moral, uma vez que a lei de Deus não muda. Exemplo: A lista de comportamento positivo dada por Paulo em Filipenses 4:8 permanece como guia para nós hoje. Que a mente se ocupe das coisas que são boas, nobres, justas, puras, amáveis, de boa fama, e aquilo que é virtuoso. Contrastando, a lista de pecados em 1Coríntios 6:9 e 10 se aplica tanto hoje como quando Paulo a compilou.
  1. Faça uma lista de itens que são consistentes ao longo das epístolas. Exemplo: O amor deve ser a base para toda interação com nossos semelhantes, amor do tipo que levou Jesus ao Calvário, amor altruísta. A não-retaliação se ajustaria sob a categoria de amor. Então há declarações enérgicas contra contenda, ódio, homicídio, furto, imoralidade e embriaguez.
  1. Distinga entre um princípio e uma aplicação específica.

Exemplo de um princípio: Há dois princípios fundamentais que os cristãos hoje devem notar que se originaram do conselho de Paulo aos coríntios: (1) Mesmo que não vivamos em uma cultura em que existem as tentações de banquetear-nos em um templo de ídolos e mesmo que não nos exponhamos à imoralidade que outrora existia nesses templos, nos deparamos com atividade demoníaca que é muito mais sutil. Podemos identificá-la em toda parte em nossa cultura pós-moderna. O perigo que os coríntios enfrentaram ainda existe hoje em algumas culturas do nosso mundo. Mas o princípio fundamental é que brincar com algo que nos expõe à atividade demoníaca nos coloca em grave perigo espiritual. Dentro do contexto dos coríntios, Paulo reconheceu o perigo. (2) O segundo princípio é o de que brincar com os poderes demoníacos nos desqualifica para o companheirismo com Jesus. Não podemos ter comunhão com Satanás e então esperar ter comunhão com Jesus.

Exemplo de uma aplicação específica: Em 1Coríntios 8 e 10, Paulo tinha palavras enérgicas para aqueles cristãos coríntios que estavam se banqueteando nos templos de ídolos. Essas festas do templo eram propagadas em honra do deus representado pelo ídolo. E, é claro, o poder demoníaco estava por trás do ídolo. Comendo nessas festas, os participantes estavam mostrando uma disposição de entrar para uma relação de aliança com o deus que assim estava sendo honrado. O cristão não pode achegar-se a um demônio. Assim, em 1Coríntios 10:20 e 21 Paulo é absolutamente claro quanto ao resultado de tal comportamento: “Antes, digo que as cousas que eles sacrificam é a demônios que as sacrificam e não a Deus; e eu não quero que vos torneis associados aos demônios. Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios”.

Quando as epístolas são lidas e relidas e são desenvolvidos esboços e estudos de palavras, o leitor acostuma-se a procurar princípios fundamentais que podem se tornar um guia para o cristão do século vinte e um. Seguindo os passos já esboçados, a mensagem essencial das epístolas pode ser vista claramente e então separada da instrução periférica.

Referências

  1. A. Cohen, Everyman’s Talmud (New York, NY: E. P. Dutton & Co. Inc., 1949), p. 253.
  2. Joachim Jeremias, Jerusalem in the Time of Jesus (Philadelphia, PA: Fortress Press, 1975), p. 304.
  3. Gordon D. Fee e Douglas Stuart, How to Read the Bible for All Its Worth, 3a ed. (Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 2003), p. 75.
  4. Ibid., p. 74.
  5. Ibid., p. 81-83.

Bibliografia selecionada

Balz, Horst, e Gerhard Schneider. Exegetical Dictionary of the New Testament. 3 vols. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1990-1993.

Brown, Raymond E. An Introduction to the New Testament. New York, NY: Doubleday, 1997.

Fee, Gordon, e Douglas Stuart. How to Read the Bible for All Its Worth. 3a ed. Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 2003.

Jeremias, Joachim. Jerusalem in the Time of Jesus. Philadelphia, PA: Fortress Press, 1975.

Kaiser, Walter C. The Use of the Old Testament in the New. Chicago, IL: Moody Press, 1985.

Marshall, I. Howard, ed. New Testament Interpretation. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1977. Osborne, Grant. The Hermeneutical Spiral. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1991. Synopsis of the Four Gospels. 10a ed. Stuttgart. Württembergische Bibelanstalt, 1993.

George E. Rice, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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INTERPRETAÇÃO DOS TIPOS, PARÁBOLAS E ALEGORIAS BÍBLICAS

Introdução

A tipologia baseia-se no fato de que há um modelo na obra de Deus ao longo da história da salvação. Deus prefigurou sua obra redentora no Antigo Testamento e a cumpriu no Novo Testamento. Parábolas e alegorias podem ser encontradas no Antigo Testamento, bem como no Novo Testamento. Ao ensinar, Jesus usou regularmente as parábolas. O grego parabolē ocorre quase cinquenta vezes nos evangelhos sinóticos, indicando que a parábola era um dos métodos de ensino preferidos por Jesus. A diferença entre a parábola e a alegoria é que no caso da primeira, a história e sua interpretação seguem-se uma à outra (Mateus 13:1 a 9, e 18 a 23), ao passo que na segunda, história e significado estão entrelaçados (Efésios 6). Além disso, as parábolas geralmente focalizam uma comparação, enquanto que as alegorias podem ter vários pontos de comparação.

Os tipos, parábolas e alegorias das Escrituras nos brindam com uma fascinante incursão no pensamento teológico imaginativo e, ao mesmo tempo, apresentam o perigo de diferentes interpretações que podem contradizer mesmo as verdades mais fundamentais das Escrituras. Realçar o primeiro aspecto, sem cair na armadilha do segundo, é o objetivo deste capítulo.

Definições

Antes de prosseguir, é importante definir os termos como eles são usados dentro de um contexto bíblico:

Tipo – Um evento histórico, pessoa ou instituição do Antigo Testamento que serve como um modelo ou padrão profético para um elevado ou intensificado cumprimento em um correlativo histórico do Antigo Testamento e/ou do Novo Testamento (frequentemente chamado o antítipo).1

Alegoria – O uso de uma narrativa como uma metáfora ampliada para se referir à verdade espiritual fora do significado literal do texto. O significado da metáfora é encontrado no método interpretativo. O enfoque reside no método do intérprete em vez de na própria narrativa. Em contraste com a parábola, em que a aplicação geralmente segue a narrativa, a alegoria mescla a narrativa e sua aplicação.

Parábola – Uma história curta que ensina uma lição por comparação. É geralmente extraída do ambiente da vida diária, que serve como um símile ou alegoria, comparando ou reunindo a realidade divina e nossa vida diária. Com frequência trata das realidades escatológicas do Reino de Deus (“O Reino de Deus é semelhante…”). Por meio de circunlóquios incomuns em trama ou impressionantes descrições da experiência humana, a história ou narrativa desafia o ouvinte a tomar uma decisão e mudança.

Estas definições fornecem um conteúdo de significado a cada um dos termos. Entretanto, para compreender melhor cada termo e seus limites é útil efetuar duas outras tarefas. Uma é explicar o emprego do termo em um contexto bíblico. A outra demonstrar como estes termos se comparam e se contrastam uns com os outros. No processo de realizar estas duas tarefas é importante formular regras claras e úteis para a interpretação de cada uma destas figuras literárias.

Tipos

A palavra portuguesa “tipo” vem do substantivo grego tupos. Originalmente tupos transmitia a ideia ou de um molde usado para fazer uma impressão, a própria impressão, ou ambos. A palavra veio a significar “forma”, “arquétipo”, “padrão”, “estátua”, “contorno/esboço” e “rascunho”.

Aplicações bíblicas. No Novo Testamento a palavra é frequentemente usada por Paulo para se referir a um “padrão”, “exemplo”, ou – quase se poderia dizer – um “paradigma”. Nos seguintes exemplos as palavras portuguesas que traduzem o termo grego tupos estão em itálico: 1Coríntios 10:6 – “Ora, estas cousas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram”; Filipenses 3:17 – “Irmãos, sede imitadores meus e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós”. Veja também 1Tessalonicenses 1:7; 2Tessalonicenses 3:9; 1Timóteo 4:12; e Tito 2:7. Paulo usa tupos nestas passagens para indicar um modelo de vida pelo qual outros devem modelar seu comportamento ou um modelo negativo que eles devem evitar. O “tipo” é o paradigma de estilo de vida que deve guiar as escolhas do cristão.

O termo tupos encontra sua mais plena função histórica/profética em Romanos 5:14, em que Adão é o tipo “daquele que havia de vir” (Cristo) [New American Standard Bible]. Uma personalidade histórica serve como um “esquema profético” para o qual o “antítipo” correspondente estará em analogia ou contraste.

Contudo, o “antítipo” cumpre uma função mais elevada e mais extensa do que o “tipo”. Cristo é superior a Adão e cumpre o que o primeiro homem não pôde ser. O “projeto profético”, o “tipo”, é sobrepujado e ofuscado pelo “antítipo” (Colossenses 2:16 e 17). Conquanto o “tipo” seja historicamente o primeiro, o “antítipo” é tipologicamente superior. De fato, em alguns casos esta superioridade do correlativo chega até mesmo ao ponto de papel invertido – em Hebreus o santuário celestial é denominado o tupos e o terrestre é o antitupos. O motivo para isto é que o celestial supera o terrestre e é realmente o “projeto” segundo o qual o tabernáculo terrestre é construído.

O pensamento e interpretação tipológica não está limitado às epístolas. É muito comum nos evangelhos em que algum aspecto do ministério de Jesus – ou pessoas ligadas ao seu ministério, tais como João Batista – são vistas como prefiguradas nas narrativas do Antigo Testamento. Em Mateus, João Batista é identificado com Elias (Mateus 17:11 a 13, conforme a alusão clara em Marcos 9:12 e 13). Jesus é posto em analogia com o rei Davi na narrativa do nascimento (Mateus 1) e nas tentações em contraste com Israel no deserto (Mateus 4). No evangelho de João, Jesus está ligado ao sacrifício do cordeiro pascal (João 1:29) e sua morte ao dia da páscoa em João 19 (também 1Coríntios 5:7). Em João 3 Jesus liga-se à serpente levantada no deserto (Números 21). O pensamento tipológico ocorre claramente nos escritos do Novo Testamento.

Todavia, mesmo no Antigo Testamento, há exemplos que apontam em direção do tipológico e que indicam a natureza preditiva da tipologia. É dito que Moisés seguiu o tupos mostrado a ele no monte Sinai ao preparar o tabernáculo. É construído um modelo tipológico celestial/terrestre ilustrando que a tenda terrestre tem um correlativo no Céu. Além disso, Moisés diz em Deuteronômio 18:15 a 19 que Deus enviaria um profeta “semelhante a mim”. É sugerida uma correspondência entre Moisés e o profeta vindouro. Nos Profetas, a saída do Egito é usada como um tipo do livramento do povo de Deus do exílio babilônio (Jeremias 16:14 e 15 e Isaías 43:16 a 19). Malaquias se refere ao novo Elias em Malaquias 4:5 e 6. Portanto, não é uma inovação neotestamentária ver os eventos em uma estrutura tipológica.

A esta altura pode ser útil sugerir vários princípios hermenêuticos que podem ajudar na descoberta da tipologia bíblica e na sua interpretação, envitando, ao mesmo tempo, as armadilhas de se estender demais a compreensão tipológica.

Regras para a interpretação dos tipos

  1. Reconhecimento do uso da tipologia

Leia e conheça a Bíblia – É quase impossível reconhecer a tipologia se não conhecemos bem as narrativas do Antigo e do Novo Testamento.

Reconheça declarações explícitas de tipologia – Às vezes, o escritor bíblico usará nomes ou títulos do Antigo Testamento para se referir a antítipos posteriores do Antigo Testamento, ou do Novo Testamento (Mateus 11:11 a 14 em que João Batista é Elias). Isto explicitamente traz à memória o tipo do Antigo Testamento e indica que a tipologia está sendo usada.

Reconheça declarações implícitas de tipologia – Às vezes, o escritor bíblico usará uma citação do Antigo Testamento para indicar ao leitor uma conexão tipológica (Mateus 2:14 e 15 – “Do Egito chamei o meu Filho”, citando Oseias 11:1. Em Oseias, as palavras se referem ao êxodo original e “meu filho” se refere a Israel. Quando Mateus usa a passagem, ele a aplica a Jesus. Assim, tipologicamente, Jesus é o novo Israel).

Note o paralelismo das narrativas – Às vezes, o escritor bíblico sugere tipologia por uma analogia entre os personagens das narrativas do Antigo Testamento e o cumprimento tipológico no personagem posterior do Antigo Testamento ou do Novo Testamento (Mateus 4:1 a 11, em que Jesus revive as tentações de Israel no deserto e vence onde eles falharam; Ele é o novo Israel).

  1. Estabelecendo os limites e o conteúdo da tipologia

Note o que é incluído e o que é deixado fora – O escritor do Antigo ou do Novo Testamento inclui algumas coisas ao referir-se à mesma narrativa ou instituição, e ele pode deixar de lado outros aspectos da narrativa ou instituição do Antigo Testamento. O mais seguro é interpretar a tipologia pelo que está incluído na nova referência. Isto põe limites e controles sobre a explanação tipológica e evita interpretar a tipologia de uma maneira que o escritor bíblico não planejava. Nem toda citação do Antigo Testamento no Novo Testamento é um exemplo de tipologia.

Note como o autor usa a tipologia – A tipologia é invocada pelo autor do Antigo ou do Novo Testamento para chegar ao ponto desejado. A tipologia envolve um elevado ou intensificado cumprimento histórico. O autor do Antigo ou do Novo Testamento ilustrará ou indicará como o cumprimento antitípico é semelhante ou contrasta com o tipo do Antigo Testamento. São estas semelhanças e contrastes que constituem o conteúdo do pensamento tipológico.

  1. Confirmando a interpretação tipológica

Confira a ligação da tipologia com a teologia do autor – Podemos levar a tipologia longe demais, expandindo-a além da finalidade do autor bíblico. Uma verificação disto uma análise cuidadosa da teologia do autor bíblico. Que ideias teológicas está ele tentando enfatizar em seu livro? Sua utilização da tipologia concordará com sua teologia e a edificará. Se há um contraste entre nossa compreensão da tipologia e os principais temas teológicos do autor, devemos reexaminar nossa compreensão da tipologia.

Por exemplo, Mateus vê Jesus especialmente como Filho de Deus e Senhor e enfatiza o cumprimento do Reino de Deus. A tipologia de Mateus edifica e enriquece esses temas. Em Mateus 2, Jesus é o recém-nascido rei, que é o Novo Israel. Ele é o Filho de Deus chamado do Egito. Ele é o Messias, o Filho de Davi que estabelece o Reino de Deus. Mas o fato de Jesus ser o Filho de Deus chamado do Egito não significa que, como o antigo Israel, Ele tenha experimentado os erros dos 40 anos de peregrinação. Isto seria estender a tipologia na direção errada, contra a teologia de Mateus.

Mantenha a tipologia em perspectiva – A tipologia não é todo o quadro. Não é o único caminho, nem mesmo o caminho primário para os escritores bíblicos atingirem seu objetivo. Manter a tipologia em equilíbrio com outros meios de explicar o propósito do autor é útil para preparar ou obter um esboço da argumentação ou narrativa do escritor bíblico. Além disso, evidencia qual ênfase o esboço coloca sobre a tipologia e que papel desempenha a tipologia na argumentação global. A tipologia pode então ser colocada dentro da perspectiva de toda a teologia do escritor bíblico.

Alegorias

A alegoria usa uma narrativa como uma metáfora extensa para se referir a verdades espirituais fora do significado literal do texto. Uma das palavras-chave desta definição é usa. A alegoria usa uma narrativa como um meio para um fim. Toma a narrativa como um meio para expressar uma ideia inteiramente fora de qualquer significado histórico literal. Contrastando, a tipologia encontra a fonte de seu significado no histórico e vê uma analogia em um evento histórico posterior. A alegoria faz a narrativa tornar-se uma mera cápsula para o significado vertido nela. A alegoria usa a narrativa para seus próprios fins.

Não importa se a narrativa usada é histórica ou fictícia, o conceito de alegoria sempre é ir além da narrativa para um significado mais elevado, não ligado historicamente à narrativa original. Como afirma G. W. H. Lampe em Essays on Typology: “A alegoria difere radicalmente da espécie de tipologia que repousa sobre a percepção do real cumprimento histórico. A razão para esta grande diferença é simplesmente que a alegoria não toma em consideração a história.”2

A narrativa em si não é o centro da atenção, é somente um veículo para expressar a realidade espiritual mais elevada. O enfoque reside no método do intérprete em vez de na narrativa em si. Assim, a alegoria é inerentemente um gênero focalizado no intérprete em vez de um gênero textualmente focalizado. Como observa Eta Linnemann: “Uma alegoria não pode, portanto, ser compreendida a menos que se conheça não apenas a narrativa alegórica, mas também o estado de coisas ao qual ela se refere”.

Qualquer um que não tenha essa chave pode ler as palavras, mas o significado mais profundo está escondido dele. As alegorias, portanto, servem para transmitir informação codificada, que é inteligível somente aos instruídos.3

A esta altura é útil diferenciar entre alegoria e alegorização. Alegoria é o gênero literário já visto que usa uma narrativa para comunicar um significado fora do significado literal da própria narrativa. Alegorização é o processo por meio do qual os textos que claramente não são alegóricos por natureza são tomados para serem alegorias e novos significados derivados delas, significados que claramente não eram parte do intento original do autor.4

O desafio da alegorização

O problema da alegorização é duplo: primeiro, algo não original ao texto é lido nele e, segundo, pode ser difícil aplicar um controle apropriado ao processo. O objetivo da exegese é compreender e explicar o que o autor original procurou transmitir. Ler em um texto algo que não era o intento do autor é inapropriado para a interpretação bíblica.3 A dificuldade de controlar apropriadamente o processo apenas aumenta o problema via voos de fantasia e princípios de interpretação que podem prender a Bíblia a ideias que se opõem até mesmo aos ensinos mais fundamentais da Palavra de Deus.

Alguns pregadores usam alegorização e assim dão crédito a este método que impõe significados ao texto das Escrituras em vez de apresentar o significado do texto. Os três presentes dos magos – ouro, incenso e mirra – são alegorizados como justificação, santificação e glorificação. As quatro âncoras lançadas do navio em que Paulo viajava para Roma (Atos 27:29) são alegorizadas como salvação, a igreja, o lar e a família. A parábola do bom samaritano torna-se uma alegoria acerca da queda da raça humana e restauração no evangelho. Nela, o homem ferido é Adão; os salteadores são o diabo e seus anjos; o sacerdote e o levita são o sacerdócio e o ministério do Antigo Testamento; o bom samaritano é Cristo; o burro é a encarnação; e a estalagem é a igreja.6

Estes são exemplos clássicos de alegorização. O texto é usado para ensinar alguma ideia totalmente fora do significado original e um significado não-histórico é imposto ao texto pelo intérprete. Em vez de permitir que a Palavra de Deus nos use, nós a torcemos e a usamos para nossos próprios propósitos. Isto pode parecer muito inocente por chamar a atenção para conceitos fundamentais das Escrituras, ou pode realmente aparentar estar demonstrando um mais profundo significado espiritual das mesmas. O perigo está no método interpretativo que tem poucos controles e que muda o ponto de enfoque do intento do autor original para os interesses do intérprete. Este método realmente não tem lugar no púlpito. As Escrituras estão repletas de verdade! Não precisamos usar um método que abala a autoridade das Escrituras.

Contêm as Escrituras alegorias conforme já definidas? É verdade que as Escrituras estão cheias de metáforas. “Vós sois a luz do mundo” (Mateus 5:14), “O SENHOR o meu pastor” (Salmos 23:1). “És fonte dos jardins, poço das águas vivas, torrentes que correm do Líbano!” (Cantares 4:15). Mas embora as Escrituras estejam cheias de metáforas, elas não contêm muitas alegorias. Na Bíblia, a linguagem metafórica geralmente vem em breves comoções, mesmo simples palavras que colorem e realçam a compreensão dentro de um contexto literário. É muito raro ter uma narrativa inteira metafórica, e é ainda mais raro que os escritores bíblicos tomem uma narrativa e a usem no modelo típico de alegorização.

Exemplo de Paulo em Gálatas

Gálatas 4:21 a 31 é um dos mais claros exemplos de alegoria nas Escrituras. Escreve o apóstolo Paulo nos versos 21 a 26: “Dizei-me vós, os que quereis estar sob a lei: acaso não ouvis a lei? Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da mulher escrava e outro da livre. Mas o da escrava nasceu segundo a carne; o da livre, mediante a promessa. Estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são duas alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera para escravidão; esta é Agar. Ora, Agar é o monte Sinai, na Arábia, e corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com seus filhos. Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe”.

No verso 24, quando Paulo diz “alegóricas”, o termo que ele usa é allegoroumena. Este termo pode significar duas coisas: “falar ou escrever alegoricamente” ou “explicar ou interpretar alegoricamente”.7 Se o primeiro é o caso, então Paulo está dizendo que Moisés, em Gênesis, descreveu a narrativa como uma alegoria. Se o segundo é o caso, então Paulo está afirmando que ele mesmo, no primeiro século d.C., está interpretando a passagem alegoricamente; isto é, ele está fazendo alegorização. Parece que a segunda opção é a que está ocorrendo, visto que o apóstolo usa uma forma passiva do verbo allēgoreō; quer dizer, a narrativa está “sendo interpretada alegoricamente”.8

Mas se este é o caso, parece que nossa anterior rejeição da alegorização precisa ser reexaminada. Se o apóstolo inspirado usa o método, ele é inapropriado para o pregador de hoje? Uma resposta possível é a de que o próprio fato de a inspiração de Paulo colocá-lo em uma categoria diferente daqueles dentre nós que não são inspirados e autorizados pelo Espírito para serem tais porta-vozes diretos de Deus. Devemos ser mais cautelosos em nossa abordagem, para que não apliquemos mal e interpretemos mal as Escrituras Sagradas. Mas tal resposta não satisfaz completamente, porque parece separar-nos do próprio processo de explicar as Escrituras que ilustra o texto inspirado.

Uma abordagem mais diversificada é notar mais cuidadosamente que tipo de alegorização o apóstolo usa e o provável contexto em que ele a usa. Observa R. P. C. Hanson: “Parece razoável concluir, então, que Paulo estava muito preparado para usar alegoria, … mas que ele empregou esta alegoria [de Gálatas 4] em uma tradição palestiniana em vez de alexandrina, e que, na prática, a inclinação do seu pensamento se dirige mais para tipologia do que estritamente alegoria, e que ele teve ao longo de suas cartas existentes poucas ocasiões para condescender com alegoria. Seus motivos para usá-la estavam, tanto quanto podemos descobrir, longe de ser aqueles dos alexandrinos e, especialmente, de Filo, que queria pela alegoria evitar a necessidade de levar a sério a narrativa histórica. Paulo, ao contrário, usou a alegoria como um auxílio à tipologia, um método de interpretar, que, apesar de algumas de suas formas poderem ser fantasiosas, ao menos considera a história como algo significativo. É digno de nota que não haja nenhuma tipologia em Filo, enquanto que Paulo está cheio dela”.9

O detalhe importante que entesouramos de Hanson é o de que a alegorização de Paulo era de um tipo distinto da de Filo (e, posteriormente, de Orígenes). O tipo de alegorização de Paulo leva em consideração a situação histórica, mas aqui com uma tendência muito incomum, porque ele identifica a aliança do Sinai com Hagar. Isto parece ser intuitivamente contrário ao fato histórico de que os judeus eram descendentes de Sara, não filhos de Agar.

Uma provável solução

Aqui, a situação especial sob a qual Paulo está escrevendo entra em jogo. Elabora F. F. Bruce: “Na presente ‘alegoria’, porém, há uma forçosa inversão da analogia, que é inigualável em qualquer outro lugar em Paulo. Enquanto que em outras passagens tipológicas o relato do Antigo Testamento é deixado intacto, o argumento aqui está em dificuldades com o fato histórico de que Isaque era o ancestral dos judeus, ao passo que os descendentes de Ismael eram gentios. Este choque singular entre o tipo e o antítipo exige uma explicação, e uma explanação altamente provável tem sido formulada por C. K. Barrett… a saber, que o incidente dos dois filhos de Abraão fora aduzido pelos opositores de Paulo na Galácia em apoio do seu caso, e que Paulo sentiu-se obrigado a refutar seu argumento invertendo-o e mostrando que o incidente, devidamente compreendido, apoiava o evangelho da graça, com sua antítese entre carne e espírito”.10

Deste modo, embora Paulo esteja empregando alegorização, não é do tipo praticado por Filo ou por alegoristas da Igreja Cristã de uma ocasião posterior. O argumento de Paulo permanece vinculado à história, mas ele faz um giro na aplicação das narrativas das duas mulheres a fim de contrariar o argumento de seus opositores que    muito bem poderiam ter usado as mesmas narrativas para apoiar seu próprio ponto de vista. Paulo usa contra eles o próprio argumento deles, ilustrando que os verdadeiros filhos de Abraão e Sara são aqueles que creem na justiça pela fé.

Resumindo, podemos dizer que a alegoria é rara nas Escrituras. Aparece ocasionalmente, como em algumas das parábolas de Jesus. Mas essas parábolas são seguidas pela explicação do seu significado metafórico. Raramente Paulo usa alegoria ou alegorização, mas quando usa uma alegoria, ela está ligada à história. Hoje o uso da alegorização para apresentar um sentido mais profundo e mais espiritual das Escrituras é injustificado.

Regras para a interpretação de alegorias           

  1. Determine se o texto é uma alegoria – Muitos textos da Bíblia são históricos e não devem ser compreendidos literalmente, nem alegoricamente. Há alguns exemplos de alegoria nas Escrituras. Em muitos casos, ou elas são identificadas como tais ou contêm as claras marcas de uma alegoria – uma narrativa com significados ligados a muitos dos elementos da narrativa, como na parábola do Semeador.
  2. Procure indícios interpretativos no contexto – Frequentemente se encontram no texto da própria alegoria indicadores de ligações com o mundo real. Às vezes é dada uma interpretação dentro do mesmo contexto, a qual serve como um controle sobre o significado (por exemplo, a parábola do Semeador).
  3. Confirme se a interpretação é coerente com os temas e teologia do escritor – Uma vez determinada a interpretação para uma alegoria, é preciso verificar se ela é coerente com os temas e teologia do escritor, bem como com todo o teor das Escrituras. Isto serve como um controle sobre interpretações de alegoria que podem afastar das intenções do escritor.
  4. Evite alegorização – Este método de interpretação torna as Escrituras reféns do nosso próprio senso do que são verdades espirituais mais elevadas que se estendem além do significado histórico e literal da Bíblia. Condescendendo com este método, afastamos as pessoas do significado claro e histórico das Escrituras e as encorajamos a levar menos a sério sua mensagem histórica.

Parábolas

A literatura sobre a interpretação de parábolas é extensa. Várias questões decisivas vêm à tona dentro da discussão – qual é o gênero das parábolas de Jesus, qual a sua ligação com as parábolas judaicas do mesmo período, qual era o propósito que Jesus tinha para contar parábolas, e que método deve ser usado para interpretar as parábolas?

O gênero das parábolas.11 No vocabulário popular de hoje “parábola” tem uma definição um tanto específica, geralmente uma narrativa curta que ilustra alguma verdade. Todavia, o termo neotestamental parabolē e o seu correlativo do Antigo Testamento mashal tem um significado muito mais amplo. Parabolē pode significar “provérbio” (Lucas 4:23), “metáfora” ou “ditado figurativo” (Marcos 7:14 a 17), “similitude” (símile expandido – Marcos 4:30 a 32, Mateus 13:13), “parábola” (parábolas-narrativa ou parábolas-exemplo – Lucas 12:16 a 21, Lucas 14:16 a 24), ou “alegoria” (Marcos 12:1 a 11). Assim, o significado do termo parabolē é um tanto amplo. Contudo, no âmago do significado de parabolē e mashal está a ideia de uma comparação entre duas coisas dessemelhantes. A realidade do nosso mundo é posta em contato com o mundo narrativo da parábola para alguma comparação que produza uma nova compreensão.

Mas devemos indagar se todas as parábolas de Jesus são símiles ou se, talvez, algumas delas poderiam ser alegóricas. O símile faz uma comparação entre duas coisas e coloca cada uma diante de nós para nosso exame. A alegoria, por outro lado, cria um mundo metafórico em que a narrativa significa algo mais. Este “algo mais” deve ser explicado por algum intérprete ou chave interpretativa.

Olhando para todas as parábolas que Jesus contou e as situações variadas em que Ele as proferiu, é razoável afirmar que Ele usou uma variedade de parábolas, algumas das quais eram meros símiles que não precisavam muito de alguma explicação (todos compreendiam imediatamente o seu propósito), e outras que poderiam ser melhor descritas como metáforas ou como de natureza alegórica e precisando de explicação.

Mas as parábolas fazem mais do que transmitir informação via símile ou metáfora. Também produzem emoção e tocam a imaginação, convidando o ouvinte para o cenário da narrativa e criando dentro dele sentimentos que demandam decisão e mudança no preparo para o encontro com Deus. Assim, o gênero das parábolas reúne a vida diária comum e o escatológico reino de Deus. Brindam-nos com o conteúdo da verdade, enquanto, ao mesmo tempo, despertam emoções que nos inspiram (ou exortam) à mudança.12

Conexão com as parábolas judaicas

O Antigo Testamento contém o estilo literário da parábola sob o termo mashal.13 Há aproximadamente dez parábolas no Antigo Testamento, estendendo-se desde a parábola de Jotão das árvores em busca de um rei, em Juízes 9, à panela fervente de Ezequiel 24. Craig Evans, em seu artigo “Parables in Early Judaism”, observa antecedentes das parábolas de Jesus no Antigo Testamento e apresenta as seguintes conclusões: 1 – Muitas das parábolas estão em um contexto judicial – o ouvinte pronuncia juízo sobre o que ele ouviu na parábola, e isto vem a ser um juízo sobre si mesmo! (por exemplo, a narrativa de Davi e a parábola da cordeirinha, 2Samuel 12). 2 – Algumas das parábolas são tomadas inicialmente pelos ouvintes como fato, que os apanha descuidados e eles se condenam a si mesmos. 3 – As parábolas são fiéis à vida. 4 – Algumas das parábolas contêm elementos alegóricos. 5 – As parábolas são todas dirigidas a líderes.14

Evans nota quatro características de parábolas rabínicas desde o tempo de Jesus até cerca de 150 d.C. Elas lançam luz sobre as parábolas de Jesus.15 As parábolas rabínicas frequentemente falam de um rei, e esta figura quase sempre significa Deus. “Reino” nas parábolas rabínicas geralmente se refere ao Reino de Deus. Os personagens das parábolas rabínicas às vezes agem ilogicamente. E as parábolas rabínicas usam terminologia e seguem temas que também, com frequência, aparecem nas parábolas de Jesus.

Evans conclui que o ensino de Jesus por parábolas estaria ambientado na Palestina do primeiro século.16 As parábolas de nosso Senhor encontram suas raízes nas parábolas do Antigo Testamento, e analogias às parábolas rabínicas de aproximadamente o mesmo período.

Esses textos paralelos ajudam a ilustrar vários detalhes importantes sobre como os evangelhos registram as parábolas de Jesus. As parábolas do Antigo Testamento são às vezes acompanhadas de explicações. Este mesmo fenômeno aparece nas parábolas do evangelho (por exemplo, a parábola do joio). Às vezes, uma explicação é essencial para compreender a parábola do Antigo Testamento por causa do personagem oculto da narrativa original. Isto também encontra um correlativo nas parábolas do evangelho (por exemplo, a do Semeador). Às vezes são incluídas feições alegóricas na parábola do Antigo Testamento, isto também ocorrendo nas parábolas do evangelho (por exemplo, a do joio). Deste modo, esses textos do Antigo Testamento ilustram como o ensino de Jesus por parábolas era muito semelhante aos métodos usados na história judaica.

O propósito de Jesus com o ensino por parábolas

Por que Jesus falava por parábolas? Era para ilustrar verdades acerca do Reino de Deus? Era para ocultar informação de seus inimigos? Ou tinha Ele ambos estes propósitos? Talvez a variação em formas que já notamos acerca das parábolas forneça uma pista ou indicação. Em Marcos 4:11 e 12 Jesus dá uma explicação para o motivo por que Ele falava por parábolas. Esta passagem vem dentro do contexto da parábola do Semeador. Devemos notar que esta talvez não tenha sido a única razão pela qual Ele falava por parábolas.17 Mas aqui está o que Ele diz: “Ele lhes respondeu: A vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas, aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não venham a converter-se, e haja perdão para eles”.18

A compreensão de várias fases da passagem ajuda a explicar o seu significado. O termo “mistério” neste contexto se refere a um segredo que só pode ser compreendido se Deus o revela a você. É o segredo do Reino de Deus que é revelado em Cristo aos discípulos, mas se tornará evidente a todos somente no fim do mundo.

“Para que” (gr. hina) introduz uma citação de Isaías 6:9 e 10 acerca de pessoas não entendedoras. Alguns intérpretes tomam o “para que” como indicando propósito – Jesus conta parábolas para conservar o povo nas trevas. Contudo, tal posição está em contraste com Marcos 4:33 e 34, em que Jesus ensina por parábolas à multidão “conforme o permitia a capacidade dos ouvintes”. Isto soa como instrução em vez de manter o povo nas trevas. Uma outra maneira de traduzir hina é com um sentido de resultado – “com o resultado de que”. Isto significaria que a falta de compreensão das parábolas não era inerente ao ensino de Jesus em si, mas, em vez disto, surgia do endurecimento do coração dos ouvintes. A semente lançada pelo semeador é sempre a mesma, a diferença está em que espécie de solo ela cai. “Os de fora”, aqueles que são hostis a Jesus, veem apenas parábolas enigmáticas, sendo que eles não são acessíveis à revelação de Deus. Mas “os de fora” com sua abertura para Deus podem receber a revelação. Não é que os de fora estejam permanentemente excluídos; eles podem mudar.

O propósito de Jesus ao falar por parábolas era multifacetado. Ele as usava para ensinar aos seus discípulos, e as usava para manter os inimigos na escuridão. Mas também as usava para advertir seus inimigos, como em Marcos 12:1 a 12. E em Marcos 4:33 e 34, Ele usou parábolas para ensinar a Palavra ao povo “conforme o permitia a capacidade dos ouvintes”. O uso multifacetado de parábolas por Jesus acompanha as variações das próprias parábolas. Algumas são ilustrações de como os discípulos devem viver. Outras ilustram as características do reino escatológico de Deus. Algumas são advertências aos seus inimigos sobre a direção para onde seus passos os estão conduzindo. Algumas têm características alegóricas, ao passo que outras não têm. Seus modelos variados, juntos, as tornam a ferramenta versátil nas mãos de Jesus para estabelecer o Reino de Deus.

Interpretando as parábolas

Resumindo o que temos dito sobre este assunto, as parábolas de Jesus são narrativas da vida diária, usadas para fazer comparação com a realidade divina. Mais do que simples informação, os personagens e o enredo dessas narrativas atrai o leitor para o mundo da narrativa e gera as emoções e sentimentos que convidam o ouvinte à decisão e à mudança. Jesus usou essas narrativas tanto para ensinar seus discípulos quanto para desafiar seus inimigos. Às vezes elas são enigmas, tendo em vista manter os de fora nas trevas a fim de proteger Jesus de ataques, mas elas também visavam instruir o ouvinte suscetível nos caminhos do Reino de Deus. As parábolas surgem da experiência diária da vida palestiniana do primeiro século, usando o corriqueiro para explicar as realidades eternas do Reino de Deus.

Não é necessário limitar as parábolas a similitudes; nem é necessário chamar as interpretações das parábolas do evangelho de invenção da igreja apostólica. Embora algumas parábolas sejam alegóricas, devemos evitar a alegorização pelas mesmas razões que já observamos sobre a interpretação de alegorias. A alegorização carece de controles e impõe ao texto um significado que o autor jamais pretendia. Conquanto possamos confiar no ambiente dos evangelistas para as parábolas, é extremamente importante pesquisar seu ambiente e antecedente palestiniano a fim de interpretar corretamente as ações que ocorrem dentro do seu ambiente narrativo.

Regras para a interpretação de parábolas19

  1. Evite alegorização – Alegorização é o processo de redefinir cada termo e personagem em uma parábola por um código de um período diferente daquele do autor (tal como Agostinho fez com a parábola do Bom Samaritano, em que o homem que descia para Jericó é igual a Adão, o Samaritano representa Cristo, etc).
  2. Reúna dados históricos, culturais, gramaticais e léxicos – Nosso mundo moderno difere significativamente do mundo de Jesus. Todavia, excelentes dados arqueológicos, históricos e culturais disponíveis em bons dicionários e comentários bíblicos lançam luz sobre o significado das parábolas. Como exemplo, na parábola que veio a ser chamada “O Bom Samaritano”, é importante notar que para os judeus dos dias de Jesus este título seria um oxímoro [figura que consiste em reunir palavras contraditórias, paradoxismo. Por exemplo: silêncio eloquente – Aurélio]. Achava-se que os samaritanos eram tudo menos bons. Informação acerca do significado das palavras e acerca de suas relações umas com as outras realça uma clara explanação das parábolas.
  3. Analise a narrativa da parábola – Primeiro, leia a narrativa várias vezes. As parábolas têm personagens, ações, cenários e suportes, e relações de tempo; elas têm um narrador e um leitor subentendido, um ponto de vista e um enredo. A análise destes ajuda o leitor a ver, de forma objetiva, a maneira por que é criado o impacto emocional da narrativa e ajuda a delinear os temas e ênfases da narrativa (veja o capítulo 9 – Interpretando a narrativa histórica do Antigo Testamento).
  4. Aplique a parábola à situação de hoje – Uma vez que se tenha sido feita uma cuidadosa análise da parábola, é possível imaginar os ambientes modernos aos quais ela fala. Esta aplicação deve provir da análise da parábola em vez de ser imposta a ela.

Exemplos de interpretação

Segue abaixo uma interpretação, em forma muito resumida, de duas parábolas – a do Filho Pródigo e a do Rico e Lázaro. O espaço não permite uma exposição plena de cada uma das parábolas; todavia, estas breves exposições ilustrarão o método.

A parábola do filho pródigo – Lucas 15:11 a 32

Dados históricos, culturais, gramaticais e léxicos. Esta parábola aparece em Lucas 15 com duas outras parábolas, a da ovelha perdida e a da dracma perdida. O contexto indica que Jesus está respondendo à acusação dos escribas e fariseus contra Ele de que “recebe pecadores e come com eles” (Lucas 15:1 e 2). Os “cobradores de impostos”, agrupados sob o termo pejorativo mais geral de “pecadores”, eram um grupo odiado nos dias de Jesus, sendo que eles colaboravam com os romanos em arrancar fundos de imposto da populaça geral judaica. Seu trabalho era considerado um “negócio desprezível” em que nenhum judeu seguidor da Lei devia participar. Os fariseus e escribas, por outro lado, eram grupos respeitados nos dias de Jesus.

As três parábolas de Lucas 15 têm várias características em comum que cumulativamente provavam o ponto de vista de Jesus. Em cada uma das narrativas algo valioso está perdido. Em cada caso, ou é feita uma busca diligente ou um processo um tanto complicado está envolvido na recuperação do que se perdeu. Em cada narrativa, há referência ao arrependimento, ou, no caso do Filho Pródigo, uma clara demonstração de arrependimento no retorno do filho mais jovem. Em cada caso, quando é encontrado o perdido, há um grande regozijo, com a reunião de amigos para festejar. A última narrativa é a mais desenvolvida das três e expande a história para incorporar a nota discordante de alguém que não gosta da celebração – o irmão mais velho. Mas o final em aberto (nunca sabemos se o irmão mais velho se junta ao festejo) constitui um apelo aos escribas e fariseus para mudar seus caminhos.

Pontos de especial interesse na análise da narrativa. A narrativa constitui-se de três cenas, cada uma focalizando um dos principais personagens. Muitos indicadores são usados na narrativa, principalmente com o propósito de realçar a posição no mundo social. Por exemplo, o filho mais moço no país distante se refere ao pão que os servos comem, uma indicação de que eles estavam acima dele em condição social. Quando o jovem retorna para casa, o pai prodigaliza-lhe todos os símbolos do poder familiar – a melhor vestimenta, anel, sandálias, bezerro cevado. Em contraste com estes marcadores de elevada posição estão os indicadores que apontam para a condição humilde – porcos, alfarrobas, cabrito (o que o irmão mais velho diz que nem sequer obteve).

Os personagens da narrativa são brevemente, mas interessantemente desenvolvidos nela. O filho mais moço é impetuoso e rebelde em suas ações, mas percebe os erros do seu procedimento quando chega ao chiqueiro de porcos. Caracteriza-se a si mesmo como um pecador não mais digno da filiação, juntamente com um rogo para ser servo (um aprimoramento!). O pai, porém, recusa esta função para o jovem e, em vez disto, graciosamente o caracteriza como filho. As palavras do pai quanto ao jovem estando morto e agora vivo, de estar perdido e agora achado, são ecoadas por um servo para o irmão mais velho, e repete-se na conversa entre o pai e o filho mais velho.

A parábola apresenta o irmão mais velho como zangado e com ciúmes do filho mais novo. Há uma forte amargura em suas observações ao pai – o pecador consegue tudo enquanto o justo não obtém nada. No processo, o filho mais velho caracteriza-se a si mesmo como um escravo, mas o pai rejeita esta caracterização, precisamente como rejeitou a caracterização de si mesmo do filho mais novo. Para o pai, ambos os jovens são seus filhos e o lugar de confraternização é dentro de casa, juntos.

As ações da primeira cena da narrativa são relatadas para indicar o rápido declínio do filho mais novo. Somente quando ele atinge o chiqueiro de porcos o enredo reduz a velocidade a fim de focalizar a mudança que ocorre. Quando o jovem volta para casa, há uma longa descrição das ações do pai dando as boas-vindas ao moço perdido. O perdão imerecido que o pai concede ao rapaz humilhado torna-se o mais comovente aspecto da parábola, pintado da maneira mais inesquecível. Mas a parábola não termina aí. A cena do pai com o irmão mais velho chama a atenção para diferentes interpretações do significado do retorno do filho mais novo. Para o irmão mais velho, injustiça que demanda rancorosa ira; para o pai, é graça que convida ao regozijo. As expressões de relações de tempo da parábola correm principalmente como narrativa direta ao longo da história – os eventos são descritos à medida que ocorrem. Mas há algumas exceções. Na cena crucial do chiqueiro de porcos, o jovem diz: “Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai”. Isto prenuncia a importante cena principal com sua surpresa de graça. Mas também há várias vezes em que os personagens da narrativa relembram o passado do filho mais novo. O filho mais jovem refere-se duas vezes ao seu passado (Lucas 15:18 e 21), chamando-o de pecado. O pai se refere a isto duas vezes (versos 24 e 32), chamando-o de morto e perdido. O irmão mais velho se refere a ele uma vez (verso 30), chamando o filho mais novo de alguém de desperdiçou os bens com meretrizes. O irmão mais velho também se refere ao seu próprio passado como uma experiência de servidão não retribuída (verso 29). Curiosamente, o pai interrompe a caracterização de si mesmo por cada filho chamando cada um deles de “filho” (com a implicação enfatizada ao filho mais velho de que o filho mais novo é seu irmão).

Aplicando hoje a narrativa. A parábola do Filho Pródigo responde à acusação contra Jesus: “Este homem recebe pecadores e come com eles” (Lucas 15:2). Nosso Senhor mostra que o retorno é uma ação profundamente humilhante, mas necessária. É a graça do pai que é tão cativante na narrativa. É esta demonstração fundamental de amor que subjuga o leitor – tal graça entrando em contato com tal humilhação. O apelo da parábola é que para amar o pai devemos também amar nosso irmão ou nossa irmã que caiu e retornou. A parábola não ensina que o pecado não existe; nem ensina que qualquer coisa que alguém faz é correta diante de Deus. Se o leitor compreende mal o assunto a respeito do pecado, o assunto acerca da graça está perdido. Mas se alguém focaliza a santidade, como fizeram os fariseus, com a exclusão da graça, então o próprio âmago da comunidade está perdido. Isto vem a ser uma lição que especialmente hoje precisamos aprender.

O rico e Lázaro – Lucas 16:19 a 31

Dados históricos, culturais, gramaticais e léxicos. A parábola do rico e Lázaro aparece apenas no evangelho de Lucas. Quase todo o conteúdo de Lucas 16 lida exclusivamente com o assunto das riquezas e do seu significado na vida. O capítulo começa com a parábola enigmática do administrador infiel, a quem Jesus elogia pelo astucioso uso dos bens de seu senhor. Para que ninguém tenha a ideia errônea da parábola e de sua breve conclusão em Lucas 16:9, Jesus continua com dois claros ensinamentos acerca da fidelidade nos pequenos detalhes da vida e sobre a importância de servir a Deus, não ao dinheiro. Isto é seguido pela zombaria dos fariseus contra Jesus. O Senhor os reprova severamente contrastando sua justiça própria com a verdadeira avaliação do coração feita por Deus. Então aparecem as duas breves declarações de Lucas 16:16 a 18, seguidas pela parábola do rico e Lázaro. O contexto da parábola ajuda a limitar as possibilidades para o seu significado – é claramente um ensinamento acerca de como usamos nosso dinheiro nesta vida e as consequências para o nosso futuro, e o seu ponto central pode muito bem estar ligado ao contraste entre a justiça própria e a avaliação de Deus, conforme visto em Lucas 16:15.

O que é singular nesta parábola, dentre todos os ensinos de Jesus nos evangelhos, é a ideia de vida imediatamente após a morte de alguém. Em outras partes dos evangelhos Jesus se refere à morte como um sono do qual Ele desperta as pessoas (veja Mateus 9:24, Mateus 27:52, João 11:11 e 12, Atos 7:60, 1Coríntios 15, 1Tessalonicenses 4:13 a 15 e 1Tessolonicenses 5:10).20 Além disso, notamos a coerente ênfase do Novo Testamento sobre a ressurreição como vital ao cumprimento do divino Plano de Redenção (1Coríntios 15, 1Tessalonicenses 4:13 a 17). Estes conceitos nos impedem de ver a parábola do rico e Lázaro como explicando literalmente o que acontece a uma pessoa quando morre.

Se o assunto da parábola não é vida após a morte, então qual é o assunto? A análise da narrativa é útil aqui e segue-se um breve sumário dos dados da narrativa da história.

Pontos de especial interesse na análise da narrativa. Esta parábola poderia melhor ser chamada “a parábola do rico e Abraão”, porque Lázaro nunca diz uma palavra em toda a parábola, ao passo que Abraão tem muito a dizer ao torturado homem rico. A narrativa é uma demonstração de assinalados contrastes tanto nesta vida quanto na vida porvir. O homem rico é abastado neste mundo, com uma rica mesa e belas roupas, ao passo que Lázaro é pobre, faminto e incomodado pelos cães que lhe lambem as feridas. No mundo vindouro da narrativa há uma grande inversão: o rico é torturado nas chamas, e Lázaro tem maravilhoso repouso com Abraão.

Nem o rico, nem Lázaro dizem uma palavra na narrativa antes da morte; mas na vida após a morte, o rico clama a Abraão por misericórdia. Na morte, a atitude do rico permanece a mesma. Ele ignora Lázaro na vida presente e na vida futura, concentrando-se, em vez disto, no exaltado e autorizado Abraão em busca de auxílio. Sua conversação vem em três ciclos. Primeiro, o rico pede um pouco de água. Abraão recusa por duas razões – primeira, o rico teve os bens durante sua vida enquanto que Lázaro sofreu, e agora as coisas estão corretamente invertidas; e segunda, um grande abismo foi posto entre o Céu e o inferno.

Tendo deixado de obter o auxílio, o rico roga em seguida a Abraão que mande Lázaro de volta para advertir seus cinco irmãos. Outra vez Abraão recusa, declarando que o testemunho de Moisés e dos profetas é suficiente. Mas no terceiro ciclo de conversas o rico protesta, insistindo que se alguém ressurgisse dos mortos, o testemunho seria irresistível. Abraão recusa ainda outra vez, repetindo que o testemunho das Escrituras é suficiente. A esta altura, a parábola chega a um fim um tanto abrupto, deixando o leitor com a evidente interrogação em mente quanto ao que acontece aos cinco irmãos – eles dão ouvidos às Escrituras?

A narrativa apresenta uma clara ideologia. O rico estava errado em negligenciar o pobre Lázaro. O pobre, ao contrário, é apresentado como alguém que merece piedade e conforto – expressando a ética bíblica comum de preocupação com os fracos. Parece não haver nenhuma dúvida a respeito da justiça da recompensa de ambos os homens. Além disso, é claro que a parábola ensina que a vida presente é uma oportunidade para mudança e que Deus provê as necessárias oportunidades para arrependimento no testemunho das Escrituras.

Aplicando hoje a narrativa. A parábola tem três pontos claros – (1) o rico tem a responsabilidade de ajudar o pobre nesta vida; (2) as Escrituras são um testemunho suficiente para levar-nos ao arrependimento e a seguir a ética bíblica; (3) e não há oportunidade de mudança após a morte: você receberá a recompensa que merece. É esta recompensa dada por ocasião da morte? Não, o Novo Testamento ensina claramente que a retribuição vem no retorno de Cristo (veja Mateus 16:29; Mateus 25:31 a 46), e numerosas outras passagens ensinam o mesmo. A recompensa dos ímpios é o tormento eterno no inferno? Outra vez não, como atestam numerosas passagens que falam da retribuição divina terminando na destruição dos ímpios (veja Malaquias 4:1 a 3; Apocalipse 20). João 3:16 indica que todo aquele que crê em Cristo não perecerá, mas terá vida eterna. O oposto de vida eterna não é um inferno queimando eternamente, mas morte eterna – sendo os ímpios destruídos para sempre pelo fogo que purifica a Terra no final. Concluímos que esta parábola usa uma representação folclórica popular da vida após a morte a fim de realçar a necessidade de viver agora para Deus, abençoando e ajudando outros, e dando ouvidos aos apelos e à repreensão das Escrituras.21

Conclusão

Neste capítulo consideramos os tipos, alegorias e parábolas. É útil comparar e contrastar cada uma destas figuras literárias usadas nas Escrituras no tocante à sua relação com a história, com seu método de apresentação literária ou com sua interpretação. Os tipos e seus correlativos antítipos estão arraigados na história e no cumprimento histórico. Os tipos desempenham uma função profética que é percebida na aplicação mais elevada e mais extensa nos antítipos. Em contraste, as alegorias têm uma função mais atemporal, desligada da história, mas concentrada em um conceito de verdade que elas ensinam. As parábolas preenchem uma função intermediária entre os tipos e alegorias, porque elas são às vezes símiles e, em outras vezes, de natureza mais alegórica. As parábolas que são símiles têm consigo uma certa qualidade atemporal; contudo, elas são fiéis à vida – não como desligadas da vida diária como as alegorias tendem a ser. Como métodos de apresentação literária, os tipos e antítipos vem na forma de narrativas históricas, em ambos os casos. A índole do tipo e antítipo é a maneira pela qual dois eventos históricos são unidos como comentário um do outro. As conexões entre as narrativas criam uma interpretação dos dois eventos que excede um e outro quando lidos sozinhos. Nas alegorias há também dois níveis, e não dois eventos históricos – existe antes uma narrativa (geralmente não histórica, mas de natureza atemporal) e sua chave interpretativa, que formam os dois níveis. A narrativa por si mesma não expressa o objetivo do autor. A chave interpretativa explica o significado da narrativa. As parábolas também mantêm uma posição um tanto intermediária. As parábolas que são símiles tomam a realidade e a comparam com uma narrativa (“O reino de Deus” [a realidade] “é semelhante…” a [narrativa]). A narrativa nos diz algo acerca da realidade que antes não conhecíamos e nos ajuda a compreender a verdade a respeito da realidade. Assim como os tipos e alegorias, as parábolas têm a característica de dois níveis. A realidade divina é um nível, e é comparada com as coisas do nosso mundo.

Em relação à interpretação, as três figuras literárias têm em comum a importância de analisar cuidadosamente o texto e seu contexto. É importante diferenciar entre estas diferentes figuras literárias quando se estuda qualquer texto. A maior parte das Escrituras está enraizada profundamente em realidades históricas; desse modo, não é surpreendente que as alegorias na Bíblia sejam as menos comuns das três figuras literárias estudadas neste capítulo. As alegorias são também as menos históricas das figuras.

As três figuras têm também se assemelham no fato de que cada uma delas requer a comparação da figura literária com algum outro texto ou realidade para explicar o significado da figura. Os tipos devem ser comparados com os antítipos para serem compreendidos, as alegorias devem ser comparadas com sua chave interpretativa, e as parábolas requerem a comparação da realidade do Reino de Deus com o ambiente narrativo encontrado na parábola.

Finalmente, o número de controles necessários para manter a interpretação correta é o mais alto para a menos histórica das figuras literárias, a alegoria, e o mais baixo para a mais historicamente fundamentada das figuras, o tipo. Os controles necessários para as parábolas encontram um lugar em alguma parte entre os tipos e alegorias. No tocante às parábolas e alegorias, a alegorização é um risco ao qual se deve resistir. Há tanta verdade nas Escrituras como a que nos tem sido dada de que não precisamos recorrer aos voos da fantasia a fim de elevar-nos como as águias. A Palavra de Deus, mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, deve ser levada a relacionar-se com o coração humano a fim de que seu poder renovador possa recriar-nos à imagem do nosso Criador.

Referências

  1. Veja, Richard Davidson, Typology in Scripture, (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1981), p. 184-190, 397-424.
  2. G. W. H. Lampe e K. J. Woolcombe, Essays on Typology, Studies in Biblical Theology (Napervile, IL: Alec R. Allenson, Inc., 1957), p. 31.
  3. Eta Linnemann, Parables of Jesus: Introduction and Exposition (Londres: S.P.C.K., 1966), p. 7.
  4. Veja, Maureen Quilligan, The Language of Allegory: Defining the Genre, (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1979), p. 29-31.
  5. Poderia ser argumentado que “ler em um texto algo que não estava originalmente ali” exatamente o que acontece em tipologia. Mas o que ocorre em tipologia é muito diferente. A tipologia leva a sério o contexto histórico original e então vê sua expressão em um nível mais elevado na nova situação histórica. A alegoria não tem nada disto, sendo que ela nem leva a sério a situação histórica original, nem deriva o novo significado de um vínculo com o novo evento histórico.
  6. Veja “From Allegorizing to Allegorizing: A History of the Interpretation of the Parables of Jesus”, em Klyne R. Snodgrass, The Challenge of Jesus’ Parables, ed. Richard N. Longenecker (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000), p. 4. O exemplo da parábola do Bom Samaritano é da alegorização de Agostinho.
  7. Veja Richard N. Longenecker, Galatians, Word Biblical Commentary, vol. 41 (Dallas: Word Books, 1990), p. 209-210.
  8. Ibid., p. 210.
  9. R. P. C. Hanson, Allegory and Event: A Study of the Sources and Significance of Origen’s Interpretation of Scripture (London: SCM; Richmond, VA: John Knox Press, 1959), p. 82-83; conforme citado em Longenecker, Galatians, p. 210. Aqui Hanson usa o termo “alegoria” em vez de “alegorização”. Ele está se referindo ao texto de Gálatas em que Paulo produziu uma alegoria. Contudo, o processo usado por Paulo para fazer uma alegoria de um texto histórico é corretamente chamado alegorização.
  10. F. F. Bruce, Commentary on Galatians, New International Greek Testament Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1982), p. 218. A referência a C. K. Barrett é encontrada em C. K. Barrett, “The Allegory of Abraham, Sarah, and Hagar in the Argument of Galations”, em J. Friedrich, ed., Rechtfertigung: Festschrift für Ernst Käsemann (Tübingen/Göttingen: P. Stuhlmacher, 1976), p. 1-16.
  11. Veja Robert Stein, An Introduction to the Parables of Jesus (Philadelphia, PA: Westminster Press, 1981), p. 15-21, e Robert Stein, “The Genre of the Parables”, em The Challenge of Jesus’ Parables, p. 30-50.
  12. Veja Stein, “The Genre of the Parables”, em The Challenge of Jesus’ Parables, p. 34-36.
  13. Veja Craig Evans, “Parables in Early Judaism”, em The Challenge of Jesus’ Parables, p. 51-75.
  14. Ibid., p. 65-66.
  15. Ibid., p. 66-72.
  16. Veja Ibid., p. 72-74.
  17. A declaração de Jesus em Marcos 4:11 e 12 é dada em conexão com a parábola do Semeador, que, como já notamos, tem características alegóricas.
  18. A tradução é minha. As palavras em itálico são uma citação de Isaías 6:9 e 10.
  19. Veja Stein, An Introduction to the Parables of Jesus, p. 53-71, e Arland Hultgren, The Parables of Jesus: A Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmanns, 2000), p. 12-19, para várias dessas ideias.
  20. Alguns mantêm que a ideia de vida no Céu após a morte também aparece em Lucas 23:43, em que Jesus promete ao ladrão na cruz que ele estará com Cristo no Paraíso. Contudo, é instrutivo que em outra parte dos escritos de Lucas, o evangelista se refere à recompensa dos cristãos como recebida por ocasião da volta de Cristo (Lucas 22:16 a 18; Atos 1:6 a 8 e Atos 3:19 a 21). Além disso, Lucas ensina que o juízo ocorre na segunda vinda de Cristo (Lucas 11:31 e 32, Lucas 22:28 a 30).
  21. Josefo, em seu “Discourse to the Greeks Concerning Hades” [Discurso aos gregos concernente ao Hades] fala de uma região subterrânea. “Nessa região há um certo lugar separado, como um lago de fogo inextinguível… há uma descida para essa região, em cujo portão cremos que há um arcanjo com uma hoste; aqueles que passam por esse portão são conduzidos abaixo pelos anjos que são designados sobre as almas; elas não vão pelo mesmo caminho, mas os justos são guiados para o lado direito… Esse lugar nós chamamos ‘o seio de Abraão’. Mas quanto aos injustos, eles são arrastados à força para o lado esquerdo pelos anjos designados para a punição… Agora aqueles anjos que são postos sobre essas almas, arrastam-nas para as cercanias do próprio inferno; quando eles estão perto dele, continuamente ouvem o seu barulho, e não estão livres do próprio vapor quente… são feridos de pavorosa expectação de um futuro julgamento, e de fato punidos por meio disso; e não somente isto, mas ali eles veem o lugar dos pais e dos justos, e, mesmo por isto, eles são punidos; porque um abismo largo e profundo está posto entre eles… (The Works of Josephus [Obras de Josefo], traduzido por William Whiston [Peabody, MA Hendrickson, 1987], 813). Cf. o comentário de Hultgren: “Deve estar evidente que a parábola recorre à imagem folclórica comum das condições após a morte, e a imagem é usada somente aqui no Novo Testamento. Não é a finalidade da parábola revelar a natureza daquelas condições” (Hultgren, p. 113).

Bibliografia selecionada

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Hultgren, Arland. The Parables of Jesus: A Commentary. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000.

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Tom Shepherd, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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A HERMENÊUTICA DA APOCALÍPTICA BÍBLICA

Introdução

A Igreja Adventista do Sétimo Dia nasceu e se criou nas profecias apocalípticas bíblicas de Daniel e Apocalipse. Nos anos formativos da história da Igreja, os pioneiros adventistas davam a estas profecias no destaque central. E havia várias razões para se fazer isto. (1) Daniel e Apocalipse proveem muito do conteúdo que torna a teologia adventista sem paralelo no mundo cristão. (2) Esses livros apocalípticos fornecem o núcleo da identidade e da missão adventista, principalmente a convicção de que o movimento adventista deve desempenhar um papel decisivo na preparação do mundo para o breve retorno de Jesus. (3) O senso apocalíptico de que Deus está no controle da história supria a confiança para prosseguir, mesmo quando o movimento ainda era pequeno e as dificuldades eram grandes. (4) E o senso de um fim que se aproxima, favorecido pelo estudo de Daniel e Apocalipse, proporcionava a motivação para levar esta mensagem ao mundo em um breve período de tempo.

Recentes desafios

Especulação

Durante a última geração tem havido vários desafios à compreensão adventista de Daniel e Apocalipse. Alguns que desejavam ampliar nossa compreensão ou focalizar de modo especial essas profecias, ofereciam aplicações especulativas da profecia na história. Por exemplo, na década de 1990, alguns evangelistas ensinavam que os gafanhotos de Apocalipse 9 retratavam a frota de helicópteros em uso durante a Guerra do Golfo, então em andamento. Outros procuravam usar a apocalíptica como base para determinar a data da vinda de Jesus ou outros eventos do fim do tempo, focalizando equivocadamente datas como 1964, 1987, 1994 e o ano 2000. A atenção dada a essas tendências especulativas tem levado alguns a questionar a validade de algumas das nossas crenças fundamentais.

Abordagens alternativas

Outros adventistas foram atraídos por abordagens alternativas aos textos apocalípticos. A abordagem preterista, estimada entre os eruditos profissionais, tratam Daniel e Apocalipse como mensagens para o seu tempo e lugar originais, não como uma sequência divinamente ordenada de eventos futuros. O povo de Deus beneficia-se desses livros, dizem eles, não por ver onde se encontra no curso da história, mas pela aplicação de princípios espirituais extraídos do texto para situações posteriores. Esta abordagem trata a literatura apocalíptica como se ela não fosse em nada diferente de Mateus ou Romanos.

Uma alternativa muito diferente vê a apocalíptica como preocupada primariamente com um breve período de tempo ainda futuro nos nossos dias. Embora rejeitando a forma dispensacionalista de futurismo, popularizada pelo best-seller de Hal Lindsey, Late Great Planet Earth, e a série mais recente, Left Behind [Deixados Para Trás], alguns estudantes adventistas da Bíblia estão buscando interpretações do fim do tempo em cada canto de Daniel e de Apocalipse. Uma importante motivação em torno da abordagem futurista é “relevância”, a busca de uma mensagem adventista que fale mais diretamente aos problemas atuais do que parecem fazer as aplicações pioneiras. Contudo, abordagens a Daniel e Apocalipse que limitam o significado da maior parte do texto a eventos do fim do tempo, têm provado exigir mais do que eles podem oferecer. Formas adventistas de futurismo tendem a um alegorismo de dupla ou múltiplas aplicações que perdem o contato com o ambiente original e com o contexto das profecias.

Pós-modernismo

Um outro desafio para as interpretações pioneiras de Daniel e Apocalipse surge de uma importante mudança filosófica na experiência ocidental, às vezes chamada pós-modernismo. Começando com a década de 1960, muitas pessoas mais jovens das nações ocidentais vem tendendo a rejeitar soluções radicais para os problemas do mundo. Questionam as convicções religiosas e a confiança científica de seus antepassados. A ideia apocalíptica de uma detalhada e ordenada mudança de rumo na história parece difícil de compreender, e ainda mais difícil de crer. Embora seja mais provável que os pós-modernistas acreditem em Deus do que seus antepassados baby boomers, eles têm muita dificuldade em imaginar que alguém tenha uma compreensão detalhada sobre como Deus realmente é [baby boomers: os que nasceram durante o baby boom, ou seja, grande aumento no nascimento de bebês nos Estados Unidos e na Europa logo após a Segunda Guerra Mundial, entre 1945 e 1964 – nota do tradutor]. A confiança que os pioneiros adventistas tinham sobre seu lugar na história lhes parece fora de passo com os tempos.

O pós-modernismo tem suscitado preocupações válidas acerca da confiança “modernista” com que evangelistas e ensinadores têm apregoado interpretações questionáveis da profecia no passado. Alguns têm sido demasiado rápidos em promover pontos de vista pessoais como verdade absoluta. Mas nossa própria ignorância a respeito dos aspectos do “grande quadro” não é motivo para negar que um grande quadro exista. Embora não possamos conhecer a verdade em sua plenitude, ela está incorporada em Jesus Cristo e revelada suficientemente em sua Palavra para que possamos ter um relacionamento significativo com Ele. A apocalíptica histórica é uma parte desta revelação.

O resultado

Como resultado deste e de outros desafios, alguns adventistas estão prestando cada vez menos atenção à abordagem adventista histórica à apocalíptica. Liberais, conservadores, velhos e jovens igualmente estão fazendo experiências com abordagens alternativas e questionando as tradicionais. Mas esta negligência de atenção às profecias apocalípticas não é um assunto neutro, uma vez que está criando uma radical, se não intencional, mudança no âmago da mensagem da Igreja Adventista. Cada vez mais a pregação profética é deixada a evangelistas enquanto que os sermões semanais concentram-se mais em ideias sociais científicas e em mexericos.

Nossa finalidade

O objetivo deste capítulo é oferecer diretrizes práticas para uma abordagem bem-sucedida à apocalíptica bíblica. Tais diretrizes podem ajudar os intérpretes a evitar os extremos da especulação enquanto valorizando a precaução apropriada do pós-modernismo. Quando tratarmos acerca do texto bíblico, descobriremos que ele confirma o melhor da identidade essencial adventista, embora apontando para novas ideias que falam poderosamente ao mundo de hoje.

Como é a apocalíptica

A palavra “apocalipse” é extraída da frase introdutória do livro de Apocalipse (Apocalipse 1:1) e significa “revelação” ou “exposição”. É usada para descrever escritos semelhantes a Daniel e Apocalipse na Bíblia. Uma considerável coleção de obras comparáveis existia no judaísmo antigo, como, por exemplo, o etiópico Enoque, 4Esdras e 2Baruc. Os livros apocalípticos usam a forma de uma narrativa para desvendar as coisas de Deus além da capacidade de compreensão dos cinco sentidos, coisas tais como as realidades do Céu e do curso da história conduzindo até à salvação divina no fim do mundo. Essas revelações são às vezes comunicadas ao escritor por seres sobrenaturais, tais como os anjos ou vinte e quatro anciãos do Apocalipse.

Cosmovisão

A cosmovisão apocalíptica retrata o controle supremo de Deus na história. Os apocalipses veem o mundo como mau e opressivo, sob o aparente controle de Satanás e seus cúmplices humanos. Mas a presente ordem mundial será brevemente destruída por Deus e substituída por uma ordem nova e perfeita, correspondente ao Éden. Os eventos finais da história envolvem um severo conflito entre a velha ordem e o povo de Deus, mas o resultado nunca está em dúvida. Por meio de um poderoso ato de julgamento, Deus condenará os ímpios, recompensará os justos e recriará o universo.

Uma breve reflexão indicará que muitas crenças fundamentais adventistas do sétimo dia estão baseadas na apocalíptica bíblica. Para os adventistas, Daniel e Apocalipse não são obras marginais; elas são fundamentais para a cosmovisão adventista e seu conceito de Deus. Para os adventistas, a rejeição desta posição como desesperadamente obsoleta seria o início de uma mudança fundamental no pensamento adventista. A finalidade deste capítulo é demonstrar um método para o estudo da apocalíptica que prolongará a atenção bíblica. Ninguém pode ter uma fé verdadeiramente bíblica sem um profundo respeito pela intenção dos autores divinos e humanos do texto bíblico.

Profecia e apocalíptica

Características da profecia e da apocalíptica. A literatura profética da Bíblia pode ser dividida em dois grandes tipos: profecia geral, representada por Isaías, Jeremias, Amós e outros, e profecia apocalíptica, representada por Daniel e Apocalipse.1 A profecia geral, às vezes conhecida como “profecia clássica”, focaliza primariamente o próprio tempo e local do profeta, mas ocasionalmente oferece um vislumbre do futuro, apontando para o final “Dia do Senhor”. A profecia apocalíptica, por outro lado, vê a história como uma série de eventos divinamente guiados que conduzem até os eventos finais da história terrestre. A profecia geral normalmente focaliza a visão de curto alcance, ao passo que a profecia apocalíptica toma a visão de longo alcance. O enfoque primário da profecia geral é a situação imediata; o foco primário da apocalíptica é a conclusão do fim do tempo.

A profecia apocalíptica está preocupada com longas sequências da história humana, inclusive os importantes atos salvíficos de Deus na história. As profecias gerais, que são escritas para afetar a resposta humana, tendem a estar condicionadas às reações de povos e de nações. Por outro lado, as profecias apocalípticas são incondicionais, refletindo a presciência de Deus quanto à sua vitória final e ao estabelecimento do seu reino eterno. Portanto, um princípio chave interpretativo deve determinar quais profecias bíblicas são gerais e quais são apocalípticas. Tendo uma vez sido determinado o gênero, pode ser seguida a abordagem apropriada.

Características da profecia geral e da profecia apocalíptica:

Profecia geral …………………………………………………………… Profecia apocalíptica
Eventos do presente e do fim do tempo combinados ……….. Série de eventos históricos
Visão de breve alcance ………………………………………………….. Visão de longo alcance
Cumprimento duplo …………………………………………………….. Cumprimento único
Enfoque imediato ………………………………………………………… Enfoque do fim do tempo
Situação local em vista …………………………………………………. Toda a extensão da história
Condicional …………………………………………………………………. Incondicional

O principal fator desta determinação se refere ao tempo e à frequência de cumprimento. Por sua própria natureza, uma sequência de tempo apocalíptica está limitada por um simples cumprimento. Como uma predição da história que abrange todo o período desde o tempo do profeta até o final, não há lugar para cumprimentos duplos ou múltiplos. Conquanto aspectos da profecia (tais como a “pedra” de Daniel 2) possam ser aplicados de várias maneiras por escritores inspirados posteriores, o significado original da profecia como um todo é completo em seu cumprimento único. Por outro lado, uma profecia clássica, como Joel 2:28 a 32, pode prontamente ser aplicada à situação original, bem como a situações similares no futuro. Estudiosos recentes, fora das fileiras adventistas, geralmente parecem apoiar esta distinção.

Método historicista

As sequências históricas da apocalíptica levaram os adventistas pioneiros, em harmonia com praticamente todos os comentaristas protestantes até aquele tempo, a utilizar um método de interpretação conhecido como historicismo para Daniel e Apocalipse. O método historicista entende que as profecias de Daniel e Apocalipse encontram seu cumprimento no tempo histórico por meio de uma sequência de eventos que vão desde o tempo do profeta até o estabelecimento do reino de Deus no fim do mundo. Esse método tem sido a pedra fundamental da interpretação adventista da apocalíptica.

Estudos recentes têm mostrado como o antiquíssimo método do historicismo deu lugar ao futurismo dispensacionalista e ao mais erudito preterismo.2 O historicismo tornou-se desacreditado em grande parte porque os mileritas, em 1842 e 1843, passaram da antecipação geral da proximidade do advento para uma tentativa de determinar a data exata. Com a passagem do tempo fixado pelo “movimento do sétimo mês”, sob a liderança de Samuel Snow, os métodos do milerismo e do próprio Miller tornaram-se objeto de zombaria, uma zombaria que continua em alguns círculos eruditos até o dia de hoje.

Embora o historicismo tenha sido substituído na percepção popular pelo preterismo e futurismo, de fato não está morto. Vive em uma forma modificada e parcialmente renovada nas igrejas que construíram sua fé sobre a herança de Miller. É às vezes desfigurado pela marcação de datas e a tendência de prestar mais atenção à história e aos jornais do que à exegese do texto bíblico. Uma equilibrada interpretação historicista extrai seu estímulo do texto bíblico em vez da moda ou de suposições externas.

Métodos corretos de interpretação

Deus vai ao encontro das pessoas onde elas estão

Um princípio de interpretação bíblica geralmente aceito é o de que Deus vai ao encontro das pessoas onde elas estão. Em outras palavras, as Escrituras foram dadas no tempo, lugar, língua e cultura de seres humanos específicos. Paulo, que era altamente instruído, expressa a revelação divina a ele de uma maneira diferente de Pedro, o pescador. João escreve em grego simples e claro. Por outro lado, o autor de Hebreus exibe talvez o grego mais complexo e literário de todo o Novo Testamento. Assim, as Escrituras Sagradas foram expressas por meio da fragilidade de seres humanos de um modo compreensivo a cada audiência. Para compreendermos corretamente a Bíblia, precisamos interpretar cada passagem em função do seu contexto original tanto quanto isto seja possível para nós hoje.

Embora este princípio seja verdadeiro para a Bíblia em geral, aplica-se ele às vastas sequências históricas da apocalíptica? Considerou Deus a língua, tempo e lugar de Daniel e de João quando providenciou as visões que eles registraram em seus livros? Realmente considerou. A apocalíptica bíblica também vai ao encontro do povo de Deus onde ele está. O livro de Apocalipse foi designado a ter sentido para alguém que lê e para aqueles que ouvem (Apocalipse 1:3). A visão de Cristo utilizou a linguagem do passado de João, o Antigo Testamento, como a fonte primária para seu simbolismo.

Também em Daniel Deus vai ao encontro das pessoas onde elas estão. Para Nabucodonosor, em Daniel 2, Ele retrata os futuros impérios mundiais por meio de um ídolo. Isto fazia sentido naquele tempo e lugar, porque para o rei pagão as nações do mundo eram réplicas claras e brilhantes dos deuses que eles adoravam. Por outro lado, para Daniel, o profeta hebreu, as nações do mundo eram como animais ferozes e vorazes ferindo seu povo (Daniel 7). A mensagem primária de ambas as visões é a mesma, ou seja, Deus está no controle da história (Daniel 2:21; Daniel 7:26 e 27).

Portanto, na visão de Daniel 7, Deus novamente se vale do ambiente e conhecimento do profeta. Desta vez, em lugar do simbolismo extraído do mundo babilônico, Ele parece moldar a visão em função do relato da criação em Gênesis 1 e 2. Deus descreve o futuro de Daniel em termos de uma nova criação. A sequência da história nas duas primeiras visões de Daniel é aproximadamente a mesma (Daniel 2:45; Daniel 7:17). Mas em sua escolha da imagem, Deus vai ao encontro dos escritores apocalípticos onde eles estão.

O princípio de que Deus encontra as pessoas onde elas estão, mesmo na literatura apocalíptica, tem várias implicações hermenêuticas gerais.

  1. Quando Deus se revela, Ele sempre fala na língua do tempo, lugar e circunstâncias do profeta. Isto significa que em nosso estudo da literatura apocalíptica, devemos sempre começar com o tempo, lugar, língua e circunstâncias originais. O significado de Deus para hoje não contradirá a mensagem que Ele pôs na visão em primeiro lugar.
  2. A finalidade das visões apocalípticas não é simplesmente satisfazer a curiosidade humana quanto ao futuro. É uma mensagem acerca do caráter e das atividades de Deus. Estudar a apocalíptica apenas como uma chave para desvendar o futuro é negligenciar sua mensagem acerca de um Deus que procura ser conhecido por seu povo.
  3. A apocalíptica é orientada para as pessoas. Seu propósito é confortar e instruir o povo de Deus na Terra. Mesmo que os detalhes de uma passagem possam estar ocupados com outro tempo e espaço, Deus a está usando para oferecer mensagem poderosa de esperança e de advertência aos receptores originais da passagem. E essa mensagem de esperança e de advertência é espiritualmente significativa ao longo da história para cada leitor dessas visões. Conquanto a sequência histórica de uma passagem tenha um só cumprimento, a mensagem mais ampla de esperança e de advertência é aplicável a todos os tempos e a todos os lugares.

Visão e interpretação

À luz destes fatos, porém, deve ser feita distinção entre o tempo das visões apocalípticas e o tempo de sua interpretação. Em uma visão o profeta pode viajar da Terra para o Céu e se estender para diante e para trás desde o tempo passado até o fim do tempo. A visão não está necessariamente localizada no tempo e lugar do profeta. Mas quando a visão é explicada posteriormente ao profeta, a explanação quase sempre vem no tempo, local e circunstâncias daquele que tem a visão.

Vemos claramente este princípio em Daniel 2. Conquanto a visão da estátua leve Nabucodonosor ao final da história terrestre, a explicação da visão por Daniel está firmemente fundada no tempo e no lugar de Nabucodonosor. A interpretação começa com uma asserção direta e destituída de ambiguidade: “Tu és a cabeça de ouro” (Daniel 2:38). Então é dito a Nabucodonosor que a série de reinos que se seguem são “depois de ti” (Daniel 2:39) com referência ao tempo.

Como foi o caso com Daniel 2, a profecia apocalíptica de Daniel 7 está dividida em duas partes: uma descrição da visão (Daniel 7:2 a 14) e uma explicação da visão, dada na língua, tempo e lugar do profeta (Daniel 7:15 a 27). Assim, sempre que a visão muda-se para a interpretação, o princípio de que “Deus encontra as pessoas onde elas estão” deve ser aplicado às explanações dadas. Isto tem profundas implicações para a interpretação de textos apocalípticos difíceis, tais como Apocalipse 17:7 a 11.

Princípios gerais de interpretação

A despeito do propósito divino de esperança e de advertência, a apocalíptica frequentemente tem se tornado um “porto-seguro” para marcadores de datas e especuladores. A ambiguidade do simbolismo apocalíptico torna fácil ler ideias, conceitos e necessidades no simbolismo. Como podemos salvaguardar da especulação nosso próprio estudo da apocalíptica? Cinco princípios gerais podem servir como guia. Estes formam o que eu às vezes chamo de “hermenêutica vital”, um processo vitalício de permitir que as Escrituras tenham seu próprio caminho em nossa vida, em vez de simplesmente procurar servir nossas próprias necessidades e nossas próprias finalidades.

Oração e desconfiança de si mesmo. Ao abordarmos qualquer texto bíblico, especialmente os textos apocalípticos, é importante estudá-los no contexto de muita oração e numa atitude de desconfiança própria. Por natureza temos falta de um espírito dócil (Jeremias 17:9). O verdadeiro conhecimento de Deus não provém de mera busca intelectual ou estudo acadêmico (João 7:17; 1Coríntios 2:14; Tiago 1:5). Portanto, o estudo dos textos apocalípticos precisa começar com oração autêntica para que o Espírito de Deus nos torne acessível a verdade, não importa o custo. Só então pode a Bíblia realmente tornar-se nosso professor em vez de nosso servo.

Use uma variedade de traduções. Cada tradução tem suas limitações e deficiências e, até certo ponto, reflete as tendências do tradutor. Tais limitações podem ser minimizadas comparando-se várias traduções umas com as outras. Onde muitos tradutores concordam, o significado do grego subjacente ou do texto hebraico é provavelmente muito claro e a tradução pode ser seguida com segurança.

Concentre-se nos textos claros. Gaste a maior parte do seu tempo de estudo nos textos claros das Escrituras. Os textos claros fundamentam o leitor nos grandes temas centrais da mensagem bíblica, salvaguardando o intérprete contra o mau uso de textos que são mais ambíguos. Portanto, uma salvaguarda importante para o estudo de livros como Daniel e Apocalipse não é fazer deles o único enfoque do estudo da Bíblia. Eles são melhor compreendidos por intérpretes que estão inteiramente fundamentados nos ensinos claros e centrais da Bíblia.

Concentre-se na leitura geral. Gaste a maior parte do seu tempo de estudo lendo a Bíblia em vez de examinar uma concordância. Quando você lê os livros bíblicos do princípio ao fim, o autor bíblico está no controle da ordem e fluir do material. Portanto, a leitura geral da Bíblia fundamenta o intérprete nas intenções dos escritores originais. Por outro lado, quando usamos uma concordância estamos no controle de onde vamos e o que aprendemos. Embora o estudo da concordância seja uma ferramenta valiosa, há o perigo de perder a floresta no meio de todas as árvores. A leitura geral da Bíblia mantém nossos olhos concentrados no grande quadro.

A crítica dos colegas. Preste cuidadosa atenção à avaliação dos colegas (pessoas que estudam a Bíblia tão cuidadosamente como você), especialmente aqueles que discordam de você ou que são competentes nas línguas originais e nas ferramentas da exegese. Um dos maiores problemas na compreensão bíblica é que cada um de nós tem uma inclinação natural para a auto-ilusão (Jeremias 17:9). Um bom antídoto para a auto-ilusão é sujeitarmos constantemente nossos próprios conhecimentos à revisão de outros que estão igualmente fazendo vigorosos esforços para compreender aqueles textos.

Os que se fartam no grande quadro da Bíblia que provém da leitura ampla dos textos claros, corrigidos pela vigorosa escuta de outros, obterão como resultado dois grandes benefícios. Ficarão de fora da armadilha do sensacionalismo e da marcação de datas. E usufruirão o maravilhoso senso de segurança e de identidade que vem quando alguém compreende melhor as firmes e confiáveis atuações divinas na história humana.

Descobrindo sequências apocalípticas

Embora se imagine amplamente que Daniel e Apocalipse sejam livros apocalípticos, nenhum é completamente apocalíptico no sentido estrito do termo. Daniel contém várias histórias em um estilo prosa-narrativa, particularmente Daniel 1, 3 a 6, e 10. O livro de Apocalipse contém sete epístolas escritas para sete igrejas da Ásia Menor (Apocalipse 2 e 3). Embora muitos comentaristas tenham visto uma sequência histórica nessas cartas, esta não pode ser a finalidade primária do texto.

Marcadores de sequência. Um significativo indicador de uma sequência histórica apocalíptica é a presença de mudanças nas palavras, frases, ou tempos (por conveniência eu chamo a todos estes de marcadores de sequência) que indicam uma passagem sucessiva de tempo, de eventos, ou de instituições. Em Daniel, tais marcadores de sequência em si mesmos são geralmente evidência suficiente de sequência apocalíptica. Por exemplo, em Daniel 2 está claro que a visão começa no tempo e lugar de Nabucodonosor por causa da declaração: “Tu és a cabeça de ouro” (Daniel 2:38). Os termos (marcadores de sequência) “depois de ti” (Daniel 2:39), “outro” (Daniel 2:39), e “finalmente” (Daniel 2:40) assinalam reinos sucessivos que seguiriam o reino de Nabucodonosor. Estes quatro estágios são seguidos por um quinto, o reino misto de ferro e barro (Daniel 2:41). O clímax da visão e sua interpretação vem “nos dias destes reis” (Daniel 2:44). A vinda da pedra-reino de Deus é o evento final da visão, aquele que conduz a um fim todo o curso da história. Portanto, a visão de Daniel 2 é uma profecia apocalíptica com uma clara sequência histórica, indo desde o tempo de Nabucodonosor até o fim da história terrestre. Daniel 7 apresenta marcadores similares de uma sequência.

Os marcadores de sequência são também proveitosos para identificar sequências apocalípticas em Apocalipse. As sete trombetas, por exemplo, contêm vários períodos de tempo. Há um período de cinco meses (Apocalipse 9:5 a 10), outro de 42 meses (Apocalipse 11:2), um período de 1260 dias (Apocalipse 11:3), e um período de três dias e meio (Apocalipse 11:9 e 11). A natureza sequencial das trombetas é fortemente confirmada pela série de ais depois da quarta (Apocalipse 8:13; Apocalipse 9:12; Apocalipse 11:14). As trombetas cinco, seis e sete não somente ocorrem numa sequência de tempo; cada uma é concluída antes de começar a próxima. Isto provê um forte paralelismo às sequências apocalípticas de Daniel.

Introduções de personagens. Um outro significativo indicador de sequência histórica em Apocalipse é a estratégia literária que poderíamos chamar de introdução de personagem. Coerentemente, ao longo do livro, o autor de Apocalipse introduz personagens em termos gerais antes de descrever suas ações no tempo da visão. Em outras palavras, quando aparece um personagem no livro pela primeira vez, há uma descrição geral da aparência do personagem e frequentemente várias ações anteriores, seguidas por uma descrição das ações que o personagem desempenha no contexto do próprio tempo e ambiente da visão. Essas passagens de introdução de personagens normalmente apresentam marcadores de sequência.

Em Apocalipse 11, por exemplo, as duas testemunhas são introduzidas com uma descrição de sua aparência e uma descrição global de suas características e suas ações. Embora esta introdução utilize os tempos presente e futuro, é claramente anterior em questão de tempo à descrição que segue do que tem a visão (Apocalipse 11:7 a 13). Os eventos do verso 7 e seguintes vêm somente quando são finalizados os 1260 dias do verso 3. Em Apocalipse 13:1 a 7, as ações da besta que sobe do mar antes do conflito final são descritas em tempo aoristo (passado). A narrativa então muda para os tempos presente e futuro a fim de descrever como a besta e seus aliados agirão no final da história (Apocalipse 13:8 a 10, e 12 a 18). Assim, quando aparece no texto um personagem apocalíptico, há normalmente uma descrição sumária de seu “pedigree”, ou ações antes da visão principal. Assim, as ações de tal personagem são retratadas em dois ou mais estágios.

Raízes do Antigo Testamento

Quando alguém lê o livro de Apocalipse é submergido plenamente na atmosfera do Antigo Testamento. Embora Apocalipse jamais cite diretamente o Antigo Testamento, repetidamente alude a ele com uma palavra aqui e uma frase ali.

Uma das melhores maneiras de descobrir sequências apocalípticas em Apocalipse identificar alusões estruturais a partes do Antigo Testamento que contêm séries de eventos. Por exemplo, importantes analogias estruturais às sete trombetas incluem a Criação, as pragas do Êxodo, e a batalha de Jericó. Cada um destes antecedentes do Antigo Testamento inclui uma série de dias ou eventos, inferindo que as trombetas também devem ser compreendidas como uma série de eventos.

Simbolismo apocalíptico           

A apocalíptica usa símbolos para transmitir verdades. Por sua própria natureza, os símbolos expressam um duplo significado. Há uma intenção literal, o significado primário que o termo tem na vida diária. Então há uma segunda intenção, o literal, que aponta além de si mesmo para um segundo significado evidente somente em relação com o primeiro significado. Estes dois significados podem ser até mesmo opostos! No livro de Apocalipse o leão é um cordeiro, a morte é uma vitória, e a vítima é o vitorioso!

Este fato torna os livros apocalípticos ao mesmo tempo difíceis de compreender e ricos em significado potencial. O mesmo símbolo pode ter diferentes significados em contextos diferentes. Para interpretar corretamente um símbolo devemos comparar seus muitos possíveis e às vezes conflitantes significados com o contexto literário em que ele é usado.

Simbolismo é a principal escolha de palavras nas visões de Daniel, conforme evidenciado desde a primeira. Em Daniel 2:45 a estratégia da visão/sonho de Nabucodonosor é expressa a seguir: “O grande Deus fez saber ao rei o que há de ser futuramente”. A visão de Daniel 2 é uma representação pictorial de eventos a ocorrer no presente e no futuro de Nabucodonosor. O tradutor grego de Daniel usa a palavra sēmainō (“tem mostrado”) para expressar que Deus “tinha simbolizado” para o rei o que ocorreria no futuro.

O livro de Apocalipse se inicia com uma clara alusão a Daniel 2. Apocalipse 1:1 assimila Daniel 2:45 e seu conceito de sēmainō. Esta alusão a Daniel 2 deixa claro que todo o livro de Apocalipse é expresso em simbolismo como um método primário de comunicação. As palavras do Apocalipse devem ser compreendidas como simbólicas ou figurativas a menos que cuidadosa investigação indique que a linguagem deve ser compreendida em termos literais.

Tipos de símbolos

Como deve alguém empreender a interpretação de símbolos? A melhor resposta a esta indagação encontra-se na introdução ao comentário de Apocalipse, de G. K. Beale.3 Beale estimula o intérprete de Apocalipse a reconhecer a maneira pela qual funcionam os diferentes tipos de símbolos. A metáfora, por exemplo, é “uma transgressão deliberada das fronteiras de significado de uma palavra”. Se você disser, como fez Jesus, “Pedro é uma rocha”, você está transgredindo o limite entre um ser vivo e um objeto inanimado. Você está aplicando uma característica do objeto, rocha, ao homem, Pedro. Conquanto a metáfora transgrida as fronteiras tanto de Pedro quanto da rocha, a descrição de Pedro é enriquecida pela comparação.

Embora a metáfora “Pedro é uma rocha” seja bastante direta, Beale concorda que os símbolos são frequentemente múltiplos em significado, resistindo à simplicidade da comparação. Por exemplo, o conceito de água em Apocalipse pode ser uma metáfora para nutrição (positivamente em Apocalipse 22:17 e negativamente em Apocalipse 8:11), para poder e destruição (Apocalipse 9:14; Apocalipse 17:15), bem como para algo que forma uma barreira (Apocalipse 16:12; talvez Apocalipse 21:1). Em tais casos, o contexto em que o símbolo é encontrado informa o leitor quanto a quais dos muitos possíveis significados deve ser compreendido.

Sendo uma vez estabelecido um determinado significado para um símbolo em uma determinada obra, esse mesmo significado normalmente conduz a repetidos usos daquele mesmo símbolo posteriormente no livro, a menos que um contexto posterior requeira uma compreensão diferente. Quando o significado de um símbolo não é provido em uma obra, torna-se importante pesquisar a maneira por que esse símbolo foi usado em outra parte no restante da Bíblia e na literatura antiga. Leitores de Daniel e Apocalipse podem ter acesso a tal informação em comentários exegéticos e recursos como dicionários bíblicos, léxicos eruditos e concordâncias.

Outra maneira de interpretar os símbolos é examinar o grau de correspondência entre o quadro evocado pelo símbolo e as limitações do assunto literal do símbolo. Na comparação “Jorge é um lobo”, o lado humano de Jorge exclui associações semelhantes a lobo como pêlo, orelhas pontudas e dentes grandes. A menos que Jorge exiba tais características em um grau consideravelmente maior do que muitos dos seres humanos, é provável que sua comparação com um lobo esteja restrita a algum aspecto do comportamento do lobo em vez de sua aparência.

Como pode alguém perceber a presença de um símbolo? Beale nota no mínimo seis maneiras: (1) a conexão formal de duas palavras de significado totalmente diferente ― “os sete candeeiros são as sete igrejas”; (2) o emprego de um termo-chave descritivo para alertar o leitor quanto à presença de algum significado incomum ― “o mistério das sete estrelas”; (3) a improbabilidade de que se pretenda uma interpretação literal ― “eu comi o livro”; (4) uma declaração que seria ultrajantemente falsa ou contraditória se tomada em sentido literal ― “minhas duas testemunhas são as duas oliveiras e os dois candeeiros”; (5) contexto que transmite uma improvável interpretação literal; (6) uso claro e figurativo da mesma palavra em outra parte do livro. Beale observa que a última destas é provavelmente a mais útil.

O uso de números na apocalíptica

Um outro aspecto do simbolismo apocalíptico mencionado por Beale é o uso de números, que mais frequentemente devem ser compreendidos como simbólicos.

Beale observa que sete é o número da inteireza, da perfeição, da totalidade, ao passo que quatro representa uma extensão a algo universal ou mundial em escopo. Doze representa unidade na diversidade, como na nação de Israel, composta de doze tribos. Dez também representa inteireza, totalidade. Além da utilização óbvia dos números, o livro de Apocalipse é frequentemente organizado em modelos de quatros e setes. Assim, em Apocalipse o intérprete precisa prestar atenção não somente aos números do livro, mas também precisa verificar agrupamentos de símbolos, que podem ter um extenso significado como resultado.

Uma área de simbolismo numérico que Beale não discute é o uso do princípio dia-ano para a interpretação dos períodos de tempo em Daniel e em Apocalipse. Embora este princípio tenha sido enunciado por intérpretes bíblicos durante muitos séculos, o melhor tratamento corrente do assunto pode ser encontrado nos escritos de William Shea.4 Quando períodos de tempo incomuns, tais como 1260 dias, 1335 dias, e tempo, tempos, e metade de um tempo ocorrem na apocalíptica bíblica, como devem estes períodos ser interpretados – como dias literais ou como simbolizando um igual número de anos? Há uma sólida base exegética para interpretá-los como simbólicos. Por exemplo, Daniel 9:24 a 27 se refere a um período profético de 70 semanas. Dentro dessas “semanas” Jerusalém e o templo seriam reconstruídos, o Messias viria e seria tirado, ou morto. Não se poderia esperar que todos estes eventos ocorressem em um ano e meio.

A possibilidade do simbolismo dia-ano em Daniel está fundamentada em dois aspectos da interpretação de Daniel. Primeiro, ele repousa sobre a crença na profecia preditiva. Nenhum ser humano não-inspirado seria bem-sucedido em predizer com exatidão eventos que ocorreriam centenas de anos no futuro. Segundo, está também baseado em uma datação do livro no sexto século. Se Daniel foi escrito no sexto século a.C. e o chifre pequeno é identificado com Roma em vez de Antíoco Epifânio, então os períodos de tempo proféticos de Daniel devem durar vários séculos, no mínimo. Compreendidos como tempo literal, os períodos proféticos de Daniel não abrangeriam nem mesmo uma pequena porção daquela história.

Dentro do texto, como salienta Shea, a primeira característica desses períodos de tempo que aponta para sua natureza simbólica, é o seu contexto simbólico. Por exemplo, as 2300 tardes e manhãs de Daniel 8 são encontradas em um contexto que contém vários outros símbolos, tais como um carneiro, um bode, quatro chifres e um chifre pequeno (Daniel 7:21 e 25). Uma segunda característica especial desses períodos de tempo é a natureza simbólica das unidades em que eles são geralmente dados, “tardes e manhãs” em vez de dias, “um tempo, tempos e metade de um tempo” em vez de três anos e meio. Terceira, os períodos de tempo são expressos em quantidades que um hebreu normalmente não usaria para datar algum evento no futuro. Um hebreu normalmente diria que um evento está seis anos, quatro meses e vinte dias no futuro (embora tão exata especificidade seja rara), não 2300 dias. As profecias dia-ano das Escrituras são caracterizadas por números invulgares tais como 1260 dias, 70 semanas, e 42 meses.

Há exemplos claros de uma relação entre dias e anos nos tempos antigos? Biblicamente falando, declaração explícita é feita sobre o princípio dia-ano nas profecias clássicas de Números 14:34 e Ezequiel 4:6. Em Números 14:34, o Senhor diz a Moisés que os 40 dias em que os espias exploraram a terra prometida seriam proféticos de 40 anos em que Israel deveria vaguear no deserto. Em Ezequiel 4:4 a 8, o profeta deveria deitar-se por um total de 430 dias a fim de representar os 430 anos em que Israel e Judá tinham sido desobedientes à vontade de Deus (o período da monarquia). Em cada caso um dia claramente representa um ano.

O conceito hebraico de um dia para um ano está embutido no conceito de ano sabático. O sábado semanal tornou-se a base para um ciclo agrícola de sete anos (Êxodo 23:10 a 12). No sétimo ano a terra devia descansar, para que houvesse “sábado de descanso” (Levítico 25:4 e 5). Claramente, o ano sabático é modelado pelo sábado semanal, em princípio um dia para um ano. Assim, em sequências apocalípticas, a presença de uma forma incomum de numerar (tais como “2300 tardes e manhãs” ou “tempo, tempos e metade de um tempo” ou “2300 dias”) normalmente seria compreendida à luz do princípio dia-ano.

Um olhar em alguns textos-amostra

Daniel 7

Daniel 7 contém a primeira visão do livro comunicada diretamente ao próprio Daniel. Como as narrativas que precedem este capítulo, a visão é escrita na língua aramaica (o hebraico é usado de Daniel 8 a 12). Daniel 7 é, em muitos aspectos, o ponto central do livro de Daniel, que o torna uma boa passagem-amostra para nosso breve estudo da interpretação apocalíptica.

Semelhantemente ao capítulo 2, a visão de Daniel 7 é introduzida por uma “visão-fórmula” (Daniel 7:1; Daniel 2:28) e seguida por uma explicação da visão (Daniel 7:15 a 27; Daniel 2:36 a 45). Ambas as passagens tratam de quatro reinos (Daniel 2:37 a 40; Daniel 7:17), alguns dos quais são numerados: “primeiro”, “quarto”, e assim por diante (Daniel 2:39 e 40; Daniel 7:4, 5, e 7). Em ambas as visões, o quarto elemento é numerado (Daniel 2:40; Daniel 7:7), envolve ferro e usa a linguagem de esmagar. Ambas as visões têm como ponto culminante o estabelecimento final do reino de Deus (Daniel 2:44 e 45; Daniel 7:27). O Deus que deu estas visões estava usando o princípio da recapitulação para transmitir mais claramente sua revelação.

Também há várias diferenças em relação a Daniel 2. Em Daniel  7 há uma extensa narrativa que conduz até à visão. Outro novo elemento é o poder do chifre pequeno que arranca três chifres e fala coisas arrogantes (Daniel 7:8). Há também uma cena celestial de julgamento (Daniel 7:9 a 14), com seus livros, com seu Ancião de dias e com seu Filho do Homem. Portanto, na interpretação de Daniel 7, é proveitoso comparar e contrastar com Daniel 2, que é amplamente reconhecido como uma sequência histórica.

Existem marcadores de sequência apontando para uma sequência histórica apocalíptica em Daniel 7? Vários de tais marcadores são dignos de nossa atenção. Primeiramente, uma visão-fórmula é repetida três vezes; “Eu estava olhando nas minhas visões da noite”. Estas ocorrem em Daniel 7:2, 7 e 13. Isto divide a visão em três partes, ou três cenas: (1ª) os animais do mar (Daniel 7:2 a 6), (2ª) o quarto animal e o juízo (Daniel 7:7 a 12), e (3ª) o Filho do Homem (Daniel 7:13 e 14). Há uma fórmula adicional que assinala progressão cronológica, traduzida livremente por “aqui diante de mim”, e “depois disto” (ou mais clara e consistentemente como “eis”). Este termo (aramaico: waarû) é encontrado em Daniel 7:5, 6, 7, 8 (duas vezes) e 13. A combinação destes dois indícios leva à seguinte estrutura para a visão: (1) Daniel 7:2 a 6 – Animais do mar; Leão; Urso; Leopardo. (2) Daniel 7:7 a 12 – Quarto animal e juízo; Animal não-descrito; Dez chifres; Chifre pequeno; Cena de juízo; Veredito do juízo. (3) Daniel 7:13 e 14 – Filho do Homem; Filho do Homem Se aproxima do trono; Recebe o domínio.

Daniel 7 exibe claramente o modelo apocalíptico de uma série de eventos ou instituições históricas, culminando com o reino de Deus (Daniel 7:13, 14, 26 e 27). Embora o capítulo não indique explicitamente um ponto de partida para a visão, a forte série de analogias com Daniel 2 sugere um ponto de partida com Babilônia na época do profeta (o tempo de Belsazar, neto de Nabucodonosor). Daniel 7 seria então uma sequência histórica completa cobrindo a grande extensão da história desde o tempo de Daniel até o reino de Deus no final da história.

Marcadores de sequência adicionais ocorrem na explicação da visão em Daniel 7:15 a 27. O poder do chifre pequeno de Daniel 7 surge diretamente dentre os dez chifres que são parte do quarto animal (Daniel 7:7: “E tinha dez chifres”). Mas, embora radicado no quarto animal, o chifre pequeno sobe depois dos dez chifres que, por sua vez, sobem depois que o quarto animal é estabelecido (Daniel 7:24). Assim, ocorre uma sequência dentro da explicação da imagem do quarto animal.

A descrição do chifre pequeno exibe as seguintes características e ações: (1) fala com insolência (Daniel 7:8 e 20); (2) faz guerra contra os santos e os vence (Daniel 7:21); (3) é de caráter diferente dos primeiros reis, que eram de natureza política (Daniel 7:24); (4) o falar insolente é interpretado em Daniel 7:25 como falando “contra o Altíssimo”; (5) a guerra contra os santos é redefinida como “oprimindo os santos” (Daniel 7:25); (6) ele “cuidará em mudar os tempos e a lei”, algo que somente Deus pode fazer (Daniel 2:21); e (7) a respeito do período pelo o qual ele dominaria os santos é dito durar por “um tempo, dois tempos e metade dum tempo” (Daniel 7:25). Tem havido um consenso de longa duração entre os eruditos adventistas de que os quatro grandes reinos de Daniel 2 e 7 representam Babilônia, Média-Pérsia, Grécia e Roma, em analogia com a mais óbvia sequência de Daniel 2. Tem havido um consenso semelhante de que o poder do chifre pequeno de Daniel representa o papado medieval, que era de caráter diferente dos poderes seculares terrestres; perseguiu os santos; fez mudanças nos dez mandamentos, particularmente no sábado, e dominou a Europa Ocidental por mais de mil anos. [Sendo que esse poder ainda pelejará contra os santos no futuro, não se pode dizer que ele está restrito à Idade Média. Não é simplesmente o papado medieval, como afirmam certos autores adventistas. Acrescente-se a isto que Ellen G. White diz que o papado de hoje não mudou, é o mesmo da Idade Média. Veja, por exemplo, O Grande Conflito, p. 571 e 572 – nota do tradutor].

Assim, a visão de Daniel 7 não está tanto adicionando novos elementos à visão anterior quanto está entrando em pormenores sobre os estágios posteriores dela, os tempos depois do quarto reino e antes do estabelecimento do eterno reino de Deus. Portanto, em Daniel 7 temos uma profecia apocalíptica que recapitula a mesma sequência histórica básica de Daniel 2, indo desde o tempo do profeta até o estabelecimento do reino de Deus no final da história. A única razão para questionar este cenário seria se estas profecias não fossem escritas antes dos eventos, mas fossem o resultado de piedosa história depois dos fatos, escritas por volta de 165 a.C. Desse modo, para os eruditos adventistas, o problema decisivo com referência à hermenêutica de Daniel é o tempo em que o livro foi escrito, defendendo-se a data do sexto século a.C.

Apocalipse 12  

A mesma metodologia usada na interpretação de Daniel deve ser aplicada ao livro de Apocalipse. Isto deve incluir a busca de marcadores de sequência, introduções de personagens e alusões ao Antigo Testamento que indiquem sequência histórica. Um exemplo de tal avaliação é dado no seguinte material de Apocalipse 12. Depois da análise desse capítulo é relativamente fácil de compreender dentro do livro de Apocalipse, examinaremos brevemente um texto mais obscuro, o de Apocalipse 17.

Um bom motivo para a escolha de Apocalipse 12 como uma passagem-amostra para estudo é o de que ela é vista amplamente como o centro e a chave de todo o livro. Tradicionalmente, os adventistas têm compreendido Apocalipse 12 como apresentando uma profecia apocalíptica de três estágios sequenciais da história cristã. Primeiro, é o evento do primeiro século centralizado em Cristo (Apocalipse 12:1 a 5). O terceiro é a batalha final entre o dragão e o remanescente (Apocalipse 12:17). O segundo é o vasto período de 1260 anos de supremacia papal na Idade Média e além.

Notamos que Apocalipse 12 inclui dois dos marcadores de sequência que indicam passagem de tempo. Em Apocalipse 12:6, a mulher é alimentada por Deus no deserto por 1260 dias. Em Apocalipse 12:14 ela é sustentada por um tempo, tempos e metade de um tempo, presumivelmente o mesmo período de Apocalipse 12:6. Destarte, Apocalipse 12 não está descrevendo um simples evento, mas um considerável período de tempo.

Esta impressão é realçada quando o leitor percebe que a frase enigmática “um tempo, tempos e metade de um tempo” (Apocalipse 12:14) está inquestionavelmente baseada em duas das profecias apocalípticas de Daniel (Daniel 7:25; Daniel 12:7). Estudo adicional leva descoberta de que Apocalipse 12 se baseia inteiramente em Daniel. O dragão de Apocalipse 12:3 e 4 tem várias das características dos animais de Daniel 7 e do chifre pequeno (Daniel 7:7 e 24; Daniel 8:10). A guerra no Céu de Apocalipse 12:7 a 9 faz várias alusões a Daniel (Daniel 10:13, 20 e 21; Daniel 12:1). A ampla utilização das profecias apocalípticas de Daniel realça a impressão de que Apocalipse 12 deve ser interpretado em sentido semelhante.

Finalmente, Apocalipse 12 contém várias identificações de personagens que são características de típicas sequências de tempo. Primeira, uma mulher aparece no céu, vestida do sol, tendo a lua sob seus pés e uma coroa de doze estrelas em sua cabeça (Apocalipse 12:1). Estes símbolos subentendem que a “árvore genealógica” da mulher baseia-se na imagem de uma mulher virtuosa do Antigo Testamento como símbolo do Israel fiel (Isaías 26:16 e 17; Isaías 54:5; Isaías 66:7 a 14; Oseias 2:14 a 20). Mas no verso 5 ela age no contexto da visão de Apocalipse 12, dando à luz um filho varão, amplamente reconhecido como símbolo de Jesus. Assim, sua personalidade e suas ações, descritas em Apocalipse 12:1 e 2, são claramente anteriores às ações do verso 5. Depois de dar à luz o filho (Apocalipse 12:5), ela é vista fugindo para o deserto por um longo período (12:6). Desse modo, a experiência da mulher em Apocalipse 12:1 a 6 é realmente descrita em três estágios: (1) o tempo do seu aparecimento e gravidez, (2) o tempo de dar à luz, e (3) o tempo de fuga para o deserto.

O segundo personagem introduzido neste capítulo é o dragão (Apocalipse 12:3 e 4), que representa o diabo, ou Satanás (Apocalipse 12:9). A ação inicial do dragão no contexto da visão é descrita em Apocalipse 12:4, em que ele se detém diante da mulher, procurando devorar-lhe o filho logo que nascesse. Os eruditos vastamente reconhecem que o ataque do dragão contra o filho varão em Apocalipse 12:5 representa a tentativa de Herodes para destruir o menino Jesus matando todas as crianças de Belém (Mateus 2:1 a 18). Mas a descrição do dragão, como no caso da mulher, remonta a um tempo anterior aos eventos da visão.

A linhagem do dragão é vista nas cabeças e nos chifres de Daniel 7 (Apocalipse 12:3); está corporificada nos reinos do mundo a serviço de Satanás. Sua linhagem, de fato, retrocede até o Éden (“a antiga serpente” – Apocalipse 12:9 e 15). E antes do seu ataque à mulher, sua cauda arrasta a terça parte das estrelas do Céu e as lança sobre a Terra (Apocalipse 12:4).

Mas o dragão não termina quando o filho varão foge (Apocalipse 12:5). O dragão persegue a mulher no deserto (Apocalipse 12:13 a 16) e finalmente faz guerra ao restante de sua semente. Assim, o dragão de Apocalipse 12 é realmente descrito em quatro estágios sucessivos: (1) seu ataque contra um terço das estrelas (Apocalipse 12:4); seu ataque contra o filho varão (Apocalipse 12:4 e 5); (3) seu ataque contra a própria mulher (Apocalipse 12:13 a 16); e, finalmente, (4) sua guerra contra os remanescentes. O caráter e ações tanto da mulher quanto do dragão sugerem os períodos sucessivos de um apocalipse histórico.

O terceiro personagem introduzido neste capítulo é o filho varão, o filho da mulher. A introdução desse personagem é singular na medida em que não focaliza as ações anteriores desse filho varão, mas concentra-se na ação além do tempo da visão. Usando o tempo futuro, Ele é descrito como aquele “que há de reger todas as nações com cetro de ferro” (Apocalipse 12:5). Esta alusão a Salmos 2:9, descreve a função de Jesus de julgamento no fim do tempo. A frase seguinte retorna ao passado do que teve a visão, “seu filho foi arrebatado para Deus até ao seu trono”. Assim, em Apocalipse 12:5 é feita referência ao nascimento, à ascensão e à vitória final de Jesus Cristo.

Estes marcadores no texto nos dirigem para uma sequência apocalíptica semelhante àquelas de Daniel 2 e 7. A visão começa no tempo do profeta e se move em estágios até à batalha final da história terrestre.

Estágio 1: O tempo de Jesus e de João. O resultado do ataque do dragão em Apocalipse 12:4 e 5 é separar a mulher do filho. Ele é arrebatado para o Céu, e ela foge para o deserto, sob a proteção divina, mas ainda na Terra (Apocalipse 12:6). Quando o filho varão chega ao Céu, a guerra irrompe ali, com o resultado de que o dragão e seus anjos perdem seu lugar no Céu e são atirados para a terra (Apocalipse 12:7 a 9). Quando ocorre essa expulsão? Apocalipse 12:10 claramente se refere ao mesmo ponto no tempo como a guerra dos versos 7 a 9. “Agora veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos” (ênfase suprida).

O tempo da guerra no Céu é o tempo em que o reino de Deus e a autoridade de Cristo são claramente estabelecidos (Apocalipse 12:10). No livro de Apocalipse, isto ocorreu quando o Cordeiro foi entronizado após a sua ascensão ao Céu (Apocalipse  5:5 e 6; Apocalipse 3:21; Atos 1:9 a 11). A linguagem de Apocalipse 12:7 a 9, porém, é também recordativa de Apocalipse 12:4, em que o dragão lançou para a terra um terço das estrelas do céu. Mas esse evento ocorreu antes do nascimento de Cristo, e a guerra de Apocalipse 12:7 a 9 ocorreu depois da ascensão. Assim, em dois eventos separados deste capítulo, a expulsão do Céu ocorre, antes do nascimento de Cristo (Apocalipse 12:4) e após a sua ascensão (Apocalipse 12:7 a 10).

Quanto tempo antes do nascimento de Cristo o dragão arrastou para a Terra um terço das estrelas do Céu? A resposta tradicional adventista é “antes da criação”. O tempo exato desta ação não é considerado neste capítulo, mas uma forte sugestão é encontrada em Apocalipse 13:8, em que o Cordeiro é descrito como “morto desde a fundação do mundo”. Este comentário não acha nenhum contexto em todo o livro a menos que a ação do dragão em Apocalipse 12:4 represente esse ataque primitivo contra o Cordeiro. Assim, embora a guerra no Céu de Apocalipse 12:7 a 9 esteja claramente no contexto da cruz, isto ecoa aquele conflito anterior.

Portanto, em sua vida terrestre Jesus estava participando de uma guerra que havia se iniciado no Céu antes de sua chegada à Terra (Apocalipse 12:3 e 4). Em sua ascensão, Jesus estabelece o seu reino e expulsa do Céu o “acusador de nossos irmãos” (Apocalipse 12:7 a 10). A linguagem de Apocalipse 12:7 a 12 subentende que após o evento-Cristo, Satanás não tem mais influência sobre as deliberações celestiais. É interessante que, embora o dragão apareça em todos os quatro estágios do conflito em Apocalipse 12, as ações de Cristo, expressas nas imagens do filho varão, do Cordeiro, de Cristo e, provavelmente, Miguel, estão confinadas ao segundo estágio, o tempo do nascimento, vida, morte, ressurreição, ascensão e domínio celestial (Apocalipse 12:5 a 10).

Estágio 2: A ampla extensão da história cristã. Apocalipse 12:12 retorna nosso enfoque à mulher na Terra. Seu exílio para o deserto é apresentado em Apocalipse 12:6, e agora ela se torna o foco do dragão-diabo que está enfurecido com a sua expulsão e com o conhecimento de que “pouco tempo lhe resta”. Apocalipse 12:12 a 16 serve como uma ponte entre o tempo de Jesus e de João (Estágio 1) e os eventos finais da história terrestre (Estágio 3). Ele descreve brevemente o que, aos olhos de Deus, são os eventos fundamentais da ampla extensão da história, desde o tempo da cruz aos eventos que precedem a segunda vinda.

Tendo sido expulso do Céu, o dragão persegue a mulher no deserto (Apocalipse 12:13). Na linguagem apocalíptica, aprendemos que, depois da ascensão de Jesus ao Céu, a Igreja suporta o ímpeto da ira de Satanás na Terra (Apocalipse 12:13 a 16).

A linguagem de Apocalipse 12:13 a 16 é recordativa de vários relatos do Antigo Testamento; a visão de Daniel 7, o êxodo do Egito, e a tentação e queda no Jardim do Éden. A linguagem de “um tempo, tempos e metade de um tempo” relembra Daniel 7:25 como fazem as sete cabeças e os dez chifres do dragão que persegue a mulher. Em Daniel 7, a fragmentação de Roma em dez partes foi seguida por um poder-chifre pequeno que devia perseguir e oprimir o povo de Deus “por um tempo, dois tempos e metade dum tempo” (Daniel 7:25). O único tempo na história que chega perto de estar à altura desta descrição é a Idade Média, durante a qual o papado romano dominou o mundo ocidental e levou à obscuridade formas rivais de Cristianismo.

“A boca da serpente” (Apocalipse 12:15) lembra ao leitor as palavras enganadoras da serpente no Jardim do Éden (Gênesis 3). Portanto, as águas como um rio que atacam a mulher no deserto (a igreja fiel), subentendem palavras enganadoras e persuasivas, bem como força perseguidora. Na Idade Média, ensinos antibíblicos estavam alimentando as pessoas em nome de Cristo.

A fuga da mulher para o deserto em duas asas de grande águia (Apocalipse 12:14) relembra ao leitor a experiência do êxodo, na qual que Deus tirou as tribos de Israel do Egito “sobre asas de águia” (Êxodo 19:4). Assim, a experiência da mulher, que representa o povo de Deus, é construída sobre a linguagem do Israel do Antigo Testamento, antes e depois do tempo de Cristo.

Em Apocalipse 12:16, a “terra” ajudou a mulher. Está aqui outra alusão ao êxodo e à experiência de Israel no deserto. O deserto protegeu Israel das “águas inundantes”, tanto do Mar Vermelho quanto do exército egípcio. Se “mar” também representa as estabelecidas populações terrestres, “terra” aqui pode representar lugares mais desolados em que o verdadeiro povo de Deus obteve refúgio de opositores enganosos e perseguidores: os Alpes na Europa durante a Idade Média e, posteriormente, lugares como a América do Norte e a África do Sul. Perto do fim dos 1260 anos (do século dezesseis ao século dezoito), muitas forças se reuniram para elevar a Bíblia e para terminar a perseguição do povo de Deus: a Reforma, o Iluminismo, as Revoluções Francesa e Americana, e o início da grande expansão missionária do século dezenove. Durante este período de relativa calma, o dragão está se preparando para o seu ataque final (Apocalipse 12:17).

Estágio 3: O ataque final contra o remanescente. Apocalipse 12:17 é uma introdução sumária à descrição do Apocalipse de uma grande crise final na conclusão da história terrestre. Indica que há dois lados no conflito final, representado pelo dragão, de um lado, e o remanescente do outro. Mas o dragão não age imediatamente em sua ira. Em vez disso, ele “foi” fazer guerra. Por quê? Porque ele estava frustrado pelos repetidos fracassos no decorrer da história apocalíptica. Ele falhou em destruir o filho varão da mulher (Apocalipse 12:3 a 5); ele não foi forte o suficiente para permanecer no Céu (Apocalipse 12:8); e falhou em destruir a própria mulher (Apocalipse 12:16). Por causa dos seus repetidos fracassos, percebe que lhe falta força para derrotar por si mesmo os propósitos de Deus, de sorte que decide entrar no conflito final com aliados: a besta do mar e a besta da terra (Apocalipse 13:1 a 18). Portanto, o remanescente no final se defronta com três opositores: (1) o dragão, (2) a besta do mar, e (3) a besta da terra.

No livro de Apocalipse, Deus está frequentemente falando de três – representando o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Apocalipse 1:4 e 5). Assim, o dragão, a besta do mar e a besta da terra de Apocalipse 13 pareceriam ser uma contrafação do trio sagrado, uma alternativa à verdadeira Divindade. Apocalipse 13 indica que deve haver um grande engano final e mundial no qual uma “trindade” simulada está no lugar do verdadeiro Deus. O propósito da contrafação é enganar o mundo. Apocalipse 12:17 resume em poucas palavras o estágio final da história terrestre, e o restante do livro de Apocalipse estende-se sobre esta introdução sumária.

Portanto, Apocalipse 12 demonstra claramente os estágios sucessivos da história profética, característica do tipo histórico de apocalíptica encontrado em Daniel 2 e 7. Observando cuidadosamente os marcadores do texto, o uso das introduções de personagens pelo autor e a maneira pela qual é utilizado o Antigo Testamento, temos percebido três estágios da história cristã, indo desde o tempo de Jesus e de João até o fim de todas as coisas. Quando notamos que ao menos dois dos principais personagens do capítulo estavam ativos no tempo antes do nascimento de Jesus (que posteriormente chamaremos de estágio zero), há um total de quatro estágios sucessivos da história apocalíptica. Estes podem ser resumidos como segue.

1º) Estágio zero: antes do tempo da visão (Apocalipse 12:1 a 4) – A guerra original no Céu; O dragão incorpora os reinos da Terra; A mulher representa o Israel do Antigo Testamento.

2º) Estágio um: O tempo de Jesus e de João (Apocalipse 12:5, e 7 a 12) – A mulher dá à luz o filho varão; Ele é arrebatado para o Céu; Guerra no Céu; Entronização e vitória; Transição.

3º) Estágio dois: a serpente ataca a mulher (Apocalipse 12:6, e 13 a 16) – A mulher, daqui por diante, representa a igreja; O dragão persegue a mulher; Ela foge para o deserto e é protegida por 1260 dias; A serpente arroja água da sua boca a fim de arrebatá-la; A terra ajuda a mulher.

4º) Estágio três: o dragão e o remanescente 2:17) – O dragão está irado e vai fazer guerra (Apocalipse 12:17); Ele recorre a aliados para o conflito (Apocalipse 13:1 a 7, e 11); A trindade maligna engana e persegue (Apocalipse 13:8 a 10, e 12 a 18); O remanescente reage (Apocalipse 14:1 a 13); O retorno de Jesus (Apocalipse 14:14 a 20)

Apocalipse 17

Apocalipse 17, como um todo, não é um texto de sequência histórica. O anjo guiador da visão é um dos anjos das sete taças de Apocalipse 16 (Apocalipse 17:1); assim, o capítulo é uma elaboração de aspectos do capítulo anterior, que ocorre depois do final da provação humana (Apocalipse 15:5 a 8). Portanto, os eventos de Apocalipse 17 são futuros a partir de nossa perspectiva; eles têm a ver com os eventos finais da história terrestre. Uma mulher designada como Babilônia-prostituta, cavalga uma besta escarlate com sete cabeças e dez chifres (Apocalipse 17:3). A mulher é também descrita como assentando-se sobre muitas águas (Apocalipse 17:1), cometendo adultério com os reis da Terra, e fazendo com que os habitantes da Terra fiquem intoxicados com o vinho de suas prostituições (Apocalipse 17:2).

Depois de João descrever a aparência e o comportamento da mulher que ele vê em visão (Apocalipse 17:4 a 6), o anjo dirige-se a João mais uma vez a fim de explicar a visão. No processo, o anjo desliza em um interessante detalhe de sequência histórica. Falando das sete cabeças da besta, diz o final de Apocalipse 17:9 e mais o verso 10: “São também sete reis, dos quais caíram cinco, um existe, e o outro ainda não chegou”. O restante do capítulo envolve mais explanação dos personagens e de detalhes da visão (Apocalipse 17:3 a 6) e dos eventos que seguem a visão (Apocalipse 17:11 a 18).

A questão crucial é como interpretar a sequência das sete cabeças da besta (Apocalipse 17:10). Quando é o tempo de “um existe”, a cabeça que vem entre os cinco que já caíram e aquele que “ainda não chegou”? É o tempo de João, que recebeu a visão, ou é o tempo da própria visão, o tempo das pragas durante o qual a mulher cavalga a besta e então encontra sua destruição?

A resposta está no princípio da visão e sua interpretação, enunciados anteriormente. Em uma visão, o profeta pode viajar da Terra para o Céu e se estender do tempo passado para o fim do tempo. A visão não está necessariamente localizada no tempo e lugar do profeta. Quando a visão é posteriormente explicada ao profeta, a explicação quase sempre vem no tempo, lugar e circunstâncias do que teve a visão. No caso de Apocalipse 17, a visão está limitada aos versos 3 a 6a. A seção restante do capítulo, inclusive o verso 10, envolve explicação a João por seu anjo-intérprete, um dos sete anjos que tinham as sete taças (Apocalipse 17:1). Nas Escrituras, tais explicações são sempre dadas no tempo, lugar e língua do que recebeu a visão.

Assim, os cinco que “caíram” já estão no passado quando João escreve o livro de Apocalipse. Esses provavelmente deveriam ser compreendidos como as cinco superpotências do Antigo Testamento que oprimiram o povo de Deus: Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia. Aquele que “existe” seria o império de Roma pagã, que dominava o mundo nos dias de João, o que vimos em ação em Apocalipse 12. O que “ainda não chegou” seria a besta de Apocalipse 13, que surge depois do dragão de Apocalipse 12 (Apocalipse 13:1). Isto deixa o “oitavo” rei (Apocalipse 17:11), que “procede dos sete” e parece representar o estágio final da besta, a mesma descrita em Apocalipse 17. Embora nem todos concordem com tal solução para esta difícil passagem, a solução é ao menos coerente com os sãos princípios de interpretação extraídos da própria evidência bíblica.

Conclusão

Este estudo realça dois pontos importantes. Primeiro, por meio do uso de sãos princípios de interpretação podemos ter mais confiável discernimento sobre o significado de uma profecia apocalíptica do que seria o caso se procedêssemos de outro modo. Podemos identificar fatos que são claros e fatos que são menos claros. Podemos nos unir em fatos que são claros e pacientemente aprender a respeitar as opiniões uns dos outros acerca das áreas que são menos claras. A recuperação do significado que esses textos apocalípticos tinham para seus leitores e ouvintes originais pode prover um quadro mais claro das verdades que Deus gostaria que extraíssemos desses textos para hoje.

Segundo, não importa quão cuidadosamente alguém trabalhe com os textos apocalípticos, algumas perplexidades e dúvidas permanecerão. Estas estimulam a curiosidade e convidam a novo esforço para desvendar as fascinantes revelações divinas. Também nos compelem à humildade na maneira como partilhamos nossas opiniões acerca dos difíceis textos apocalípticos. No que concerne a Daniel e Apocalipse, devemos confessar que não temos alcançado completamente, e que viajamos juntos em uma jornada em direção da verdade que ainda não terminou, e, de fato, somente chegará à sua conclusão com a volta de Cristo.

Terceiro, a opinião historicista permanece a melhor abordagem à profecia apocalíptica. Por exemplo, Apocalipse 12 inicia com a geração de Jesus e de João e se move para os eventos finais da história terrestre. Ao avançar a história e vir o tempo do cumprimento, as sequências e seu cumprimento histórico tornam-se mais evidentes (João 13:19; João 14:29).

Provavelmente é verdade que nenhum dos escritores bíblicos previu a enorme extensão da era cristã. A passagem do tempo tem esclarecido novas perspectivas no que concerne à paciência e propósito do Senhor. Tendo previsto tal demora, não prepararia Deus o seu povo para compreender os grandes eventos pelos quais Ele está levando a história ao seu clímax? O historicismo está fundamentado na convicção de que Deus conhece o fim desde o princípio e se preocupa o suficiente com o seu povo para partilhar um esboço de tais eventos (Isaías 46:9 e 10; João 16:13). Embora seja apenas a partir da perspectiva da segunda vinda que a história falará com perfeita clareza, há uma bênção à disposição de todos os que tentam compreender e seguir as coisas escritas em Daniel e em Apocalipse (Apocalipse 1:1 a 3, Daniel 2:28 e 45).

Referências

  1. As porções apocalípticas de Daniel incluem as visões de Daniel 2, 7 a 9, e 11 e 12. Frequentemente se imagina que Isaías 24 a 27 seja “proto-apocalíptico”, juntamente com Zacarias 9 a 14.
  2. Veja Kai Arasola, The End of Historicism: Millerite Hermeneutic of Time Prophecies in the Old Testament, Faculdade de Teologia da Universidade de Uppsala (Sigtuna, Suécia: Datem Publishing, 1990).
  3. G. K. Beale, The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text (Grands Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Co., 1999), p. 55-58.
  4. William H. Shea, Selected Studies on Prophetic Interpretation, ed. rev. Daniel and Revelation Committee Series, vol. 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), p. 67-110; idem, Daniel 7-12. (Boise, ID: Pacific Press Publishing Association, 1996), p. 40-44.

Bibliografia selecionada

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Stefanovic, Ranko. Revelation of Jesus Christ: Commentary on the Book of Revelation. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2002.

Jon K. Paulien, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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HERMENÊUTICA E CULTURA

Introdução

No passado, os antropólogos definiam cultura como todo comportamento aprendido que é adquirido socialmente. Mais recentemente, a ênfase tem mudado de comportamento aprendido para a comunicação de comportamento aprendido e não aprendido. Lesslie Newbigin definiu cultura como “a soma total de estilos de vida desenvolvidos por um grupo de seres humanos e transmitidos de geração para geração”.1 Sendo que a religião é parte da soma total de estilos de vida, os cristãos têm de perguntar a si mesmos como a mensagem das Escrituras pode ser melhor transmitida para diferentes culturas e diferentes gerações. Este capítulo levará ao conhecimento do leitor algumas abordagens para a interpretação das Escrituras baseadas no gênero e cultura.

Pressuposições na hermenêutica bíblica

Na disciplina de estudos bíblicos, o assunto de predisposições dificilmente pode ser ignorado ou mesmo minimizado, porque pressuposições divergentes consistentemente levam a conclusões radicalmente contrastantes.

Embora as pressuposições pessoais não determinem o que é a realidade, elas definem a maneira como um indivíduo experimenta essa realidade. Neste capítulo consideramos como o problema das predisposições pessoais se relaciona com o princípio bíblico interpretativo de sola scriptura. As predisposições importam muito mais na busca da verdade salvadora e da vida eterna do que o fazem no raciocínio abstrato ou jogos esportivos. As suposições equivocadas de um treinador a respeito das melhores estratégias e pessoal para competir contra a equipe rival podem levar à perda de uma partida ou de um campeonato. Mas nos estudos bíblicos uma disposição mental incorreta pode levar à perda da verdade e da vida. A despeito da urgência deste fato, parece não ter fim a variedade de mentalidades presentes na interpretação bíblica de hoje.

Os líderes que servem a igreja mundial confirmam, por observação pessoal, o que muitos crentes contemporâneos já sabem por experiência. A congregação local, ao menos tanto quanto a sede nacional ou internacional da igreja, é agora o agente definidor da teologia, o modelador das percepções, o educador da consciência e o doador de identidade em suas vidas. Por exemplo, os “conservadores” podem se ajuntar para reforçar sua cultura preferida, “uma cultura de reverência”. Ao mesmo tempo, seus adversários psicológicos e às vezes cronológicos, rotulados talvez como “liberais mais esclarecidos”, podem se reunir em outro lugar para estabelecer e afirmar seu próprio código de adoração. Por meio deste contínuo processo, a fé e a prática de duas congregações adventistas do sétimo dia de composição étnica ou racial semelhante dentro da América do Norte podem diferir tão amplamente como o que poderia ser encontrado entre uma congregação da América do Norte e outra da África Ocidental.

Tais diferenças se destacam em congregações locais em uma variedade de abordagens baseadas em aspectos regionais, nacionais, econômicos, ou genéricos, atualmente empregadas na interpretação da Bíblia. Esta variedade inclui latino-americanos, afro-americanos, sul-coreanos, indianos, feministas e outras predisposições. Todas estas opções não serão aqui exploradas, mas por meio de conversação com algumas das vozes significativas deste concerto de interpretação bíblica multicultural, procuramos enfatizar certos benefícios valiosos da interpretação bíblica baseada na cultura, classe e gênero em relação ao princípio sola scriptura, embora nos precavendo contra possíveis armadilhas.

Conversação significativa

O valor desta exploração pode ser medido em duas avaliações: (1) seu respeito pela sinceridade e pela intensidade de todos os pontos de vista representados; e (2) o grau em que o diálogo de todos os envolvidos produz mais claros discernimentos teológicos que glorificam a Deus, realmente honram sua Palavra e trazem benefício espiritual a todos os seres humanos participantes. Quanto à primeira destas, muitos teólogos que falam dentro do contexto multicultural são vozes que clamam contra a dor da injustiça. Comentando sobre o senso de subjugação que provoca tal protesto, Albert Camus escreveu que “Não há, de fato, nada em comum entre um senhor e um escravo; é impossível falar e comunicar-se com uma pessoa que foi reduzida à servidão”.2 O ouvir simpático não ocorre tipicamente em uma relação senhor-escravo. Para apreciar melhor as perspectivas partilhadas neste diálogo hermenêutico, o leitor deve estar disposto a ouvir seus participantes como colegas em vez de superiores ou inferiores.

O tratamento em nossa conversação não pode ser exaustivo. Podemos omitir certas nuanças de minjung, negro, feminista, ou teologia da libertação. Partindo da intensidade da paixão, fontes mais profundas de sensibilidade e compaixão, ou um senso de negação de ideais acariciados, eles sentem e clamam com maior intensidade. A dor sentida que esses teólogos vivem forma uma verdadeira parte da lógica de seus argumentos.

Definições multiculturais do Deus da Bíblia: exemplos selecionados

Teologia negra [afro-americana]3

James Cone acha apropriado definir teologia negra como a relação entre a história negra e o poder negro. A história negra revive um passado e cria novos símbolos para substituir aqueles destruídos pelos escravagistas. Poder negro significa que as pessoas negras aceitam a ineficácia do culto divino e apelam à consciência humana para pôr um fim à sua condição de oprimidos. Orações, hinos e sermões, resistência passiva e apelos à razão e à filosofia jamais melhorarão realmente a sorte dos explorados. “Em vão esperamos pelo Espírito Santo neste assunto!”4 Por que? “Porque “os opressores não têm nenhuma consciência exceto aquela de defender seus próprios interesses”.5 O poder negro, portanto, deve eliminar o controle opressivo do senhor sobre a vida, história e destino dos negros. A teologia negra simplesmente coloca seus esforços em torno da libertação negra em um contexto teológico.6 E porque a libertação é o tema dominante da teologia negra, o relato do êxodo de Israel serve como a mais poderosa narrativa e expressão simbólica da teologia negra. Para Cone, “falar do Deus do cristianismo é falar daquele que se definiu a si mesmo de acordo com a libertação dos oprimidos”.7 Resumindo, Cone pretende demonstrar que o Deus das Escrituras define-se a si mesmo como salvador.

A introvisão de Cone sobre salvação como a dimensão transcendente do Deus da Bíblia geralmente tipifica uma ampla extensão de interpretações culturais da Escritura. Uma revisão de outras teologias regionais e nativas enfatiza a força unificadora deste conceito. Esta compreensão de um Deus que liberta constrói plataforma da interpretação bíblica em que os sul-africanos, afro-americanos e indianos subcontinentais podem manter-se unidos. É o fio escarlate ao qual se apegam o minjung coreano e o índio mestiço, uma fé que une latinos de Chicago e Nova Iorque com antilhanos de Londres. A âncora de todas essas embarcações teológicas é uma segurança na fidelidade a um Deus que liberta mulheres, escravos e crianças da opressão peculiar de cada um e de sua tirania comum, uma divindade que se preocupa o suficiente com a justiça a fim de defender e vindicar a causa dos desprezados, oprimidos, rejeitados e esquecidos do mundo.

Teologia minjung

A teologia minjung interpreta a Bíblia do ponto de vista dos minjung, identificados como aqueles “politicamente oprimidos, socialmente alienados, economicamente explorados e mantidos incultos em assuntos culturais e intelectuais.”8 Ahn Byung-Mu, pioneiro da teologia minjung, reavalia a multidão [ochlos] do evangelho de Marcos como sinônima dos minjung.9 Byung-Mu conclui que as palavras de Jesus em Marcos 3:34, “Eis minha mãe e meus irmãos”, constituem a multidão como uma nova comunidade ou família, uma substituição para suas ligações familiares originais.10 Mateus 12:49 relata Jesus como apontando para seus discípulos [ma-thetai] em vez de para a multidão [ochlos] ao fazer a declaração. Mas porque ochlos é decisivo para a teologia de Byung-Mu, ele assevera que Mateus substituiu ochlos por mathetai a fim de reduzir a intragabilidade do radicalismo de Jesus. Justamente por isso, diz Byung-Mu, a passagem paralela de Lucas cancelou completamente a declaração “Eis minha mãe e meus irmãos”.11

A compaixão de Byung-Mu pelos minjung é vista como sendo expressiva da compaixão de Jesus pelas multidões que o seguiam. Coerente com esta quase-revisionista interpretação das Escrituras, Byung-Mu é capaz de interpretar a vagueação de Israel, a congregação de Moisés no deserto (Números 27:17) como uma multidão de seguidores necessitados, famintos, e seguindo-o, mas alienados de seus dirigentes.12

Teologia feminista

Em seu artigo “Women’s Rereading the Bible”,13 Elsa Tamez lamenta a santificação dos “costumes antimulheres da cultura hebraica dos velhos tempos”.14 Idealizando esses antigos costumes, como “assim diz o Senhor”, agora torna-se a marginalizada feminilidade uma parte normal da vida diária. Tamez identifica três problemas que resultam da má interpretação da Bíblia: primeiro, o efeito deletério sobre homens e mulheres que têm internalizado interpretações bíblicas antimulheres; segundo, a legitimidade de textos que ordenam a marginalização de mulheres; e terceiro, principalmente entre os protestantes, o princípio da autoridade bíblica como tradicionalmente aceito.

Há interessante congruência entre as opiniões de Tamez sobre o problema protestante da autoridade bíblica e sua solução para os três dilemas já mencionados. Os protestantes tropeçam diante dos clássicos textos paulinos que “demandam a submissão das mulheres aos homens”, porque, por mais inaceitável que esta exigência possa parecer, eles a encontram em um livro que eles definem como sendo sem erros. Mas nem o problema protestante nem qualquer dos outros existiria se todos os leitores tomassem a Bíblia pelo que ela realmente é: “um testemunho de um povo judeu-cristão com uma cultura específica, para quem a relação sagrada opera sempre em favor daqueles que têm o mínimo”.15 Compreendendo isto, as mulheres saberiam que elas são chamadas a “negar a autoridade daquelas interpretações que as prejudicam”.16

Em vez de rejeitar a Bíblia, como é o caso de algumas feministas do primeiro mundo, que Tamez critica como “uma reação exagerada”,17 Ela descobre uma chave interpretativa que cancela e rejeita os textos julgados como sendo hostis às mulheres. Sua chave abre a Bíblia partindo de uma perspectiva da mulher, e é bem-vinda no mundo dos pobres. Ela funciona por meio do tema essencial da libertação, sublinhando o princípio de que “Deus está ao lado dos oprimidos”.18 Porque Tamez não tem dúvida de que Deus “tem uma opção preferencial pelos pobres”, sua perspectiva não faz nenhuma distinção entre as necessidades feministas e a crise da pobreza.

Cada interpretação de libertação partindo da perspectiva das mulheres latino-americanas deve ser compreendida dentro da estrutura que surge da situação dos pobres. Em um contexto de miséria, desnutrição, repressão, tortura, genocídio indígena, e guerra – em outras palavras, em um contexto de morte – não há maior prioridade do que conceber e articular as interpretações de acordo com estas situações.19

Como aquelas de outras hermenêuticas baseadas em gênero e cultura, a voz de Elsa Tamez, em toda a sua moderação, interpreta a mensagem das Escrituras em grande parte do mesmo modo – partindo da perspectiva dos pobres e oprimidos, sejam mulheres, negros ou índios, e por causa de sua liberação.

Interpretações bíblicas multiculturais

Os exemplos precedentes de hermenêuticas afro-americanas, sul-coreanas e feministas podem ser multiplicados dentro de cada um daqueles campos e ao longo do espectro de interpretações bíblicas multiculturais. Elas apresentam vislumbres do mundo conforme vistos por certos intérpretes especializados cuja perspectiva difere e contrasta acentuadamente com as articulações tradicionais que dominavam a teologia cristã antes de meados do século 20. Também sugerem como as Escrituras e o Deus das Escrituras, especificamente Jesus, são vistos como relevantes para aquele grupo social. Em alguns casos, esses leitores expressam preocupação pela influência da Bíblia no avanço do processo de colonialismo. Na grande interrogação de Stanley J. Samartha, a estranheza da interpretação europeia, constituída por aqueles de origens e tradições orais semíticas, salienta a distância hermenêutica: “Como pode a Bíblia, um livro semítico formado por tradições orais e escritas em um contexto geográfico, histórico e cultural inteiramente diferente, apropriado e interpretado por tantos séculos pelo ocidente por meio de ferramentas hermenêuticas destinadas a satisfazer diferentes necessidades e moldadas por diferentes fatores históricos, ser agora interpretada na Ásia por cristãos asiáticos para seu próprio povo?”20

Contudo, o assunto não é simplesmente uma questão de Escrituras asiáticas versus Escrituras ocidentais. Ainda mais do que a própria Bíblia, a língua inglesa é vista como um importante instrumento de um processo de colonização teológica. Embora seja a língua de quase toda a teologia cristã asiática, ela age principalmente como uma segunda língua para cristãos asiáticos que são, portanto, constrangidos à interação teológica em um ambiente afastado de seus instintos e cultura primária. “A descolonização da linguagem é muito mais difícil do que a descolonização da terra”.21

A análise psicossocial de Andréa Ng’weshemi estende ainda mais esta investigação da autoridade das tradições bíblicas ocidentais. Ela acha o próprio processo da conversão cristã seriamente deficiente. Ela observa que as perguntas dirigidas aos candidatos ao batismo exigem deles o negar-se a si mesmos, sua religião e suas práticas culturais, a fim de “apropriar-se da religião, cultura e civilização do missionário”.22 Ng’weshemi afirma que em contraste com esta renúncia, o novo destino do candidato era tornar-se semelhante ao missionário. “Isto significava que ser como o missionário queria dizer tornar-se humano”.23 Ela crê que a teologia da libertação africana seja a reação lógica e natural contra esta desumanização do africano por meio da conversão cristã. É por tal liberação da humanidade e da alma africana que Deus demonstra a presença e a operação do seu reino no mundo. Porque, como mostra o ministério de Jesus, o reino de Deus significa “a inversão completa da alienação, mudança total, vida soberana, a vida ‘plena’ determinada por Deus”.24

A definição imediatamente precedente do reino de Deus, tirada de um influente livro sobre teologia da libertação, é extraída de um capítulo intitulado “From out of the Oppressed: A New Humanity”.25 Expandindo-se sobre o significado da palavra “libertação”, os autores Leonardo e Clodovis Boff observam que ela é uma palavra que abrange simultaneamente a salvação da pessoa como um todo e a de todo o mundo.26 Eles evidentemente sabem de uma velha humanidade e de um mundo perdido. Um tanto surpreendentemente, as teologias baseadas em cultura e gênero não perdem tempo com as origens da velha humanidade e a condição original do mundo agora perdido. Com o devido respeito pela contextualização, parece que no mínimo, os temas de orientação e destino humano deveriam incluir a pergunta: Como chegamos aqui?

Avaliação bíblica

O desconhecimento das raízes frequentemente produz desorientação. Portanto, as conversações evangélicas significativas devem envolver a consciência das raízes. Mesmo com seu ministério mostrando plena sensibilidade aos problemas multiculturais, a obra de Paulo provê sólido apoio para esta posição. Ele era todas as coisas para todas as pessoas: “Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os meios, salvar alguns” (1Coríntios 9:20 a 22). Esta passagem indica que todos os esforços devem ser feitos para proclamar o evangelho de uma maneira apropriada e significativa para os subgrupos de hoje, sejam de gênero, continentais ou étnicos. Todavia, esta contextualização da mensagem do evangelho no Areópago (Atos 17) mostra que Paulo compreendia a importância do apoio ou suporte.

Cinco fatos particularmente se salientam no discurso de Paulo em Atenas, relacionando-se diretamente com a presente discussão. Paulo apresenta seu Deus aos sofisticados, mas espiritualmente ignorantes atenienses, em termos de (1) sua personalidade, (2) seu poder criador e mantenedor, (3) sua inclusividade, (4) sua autoridade judicial, e (5) seu propósito redentor.

Sobre estes cinco pontos podemos apenas comentar brevemente. (1) Paulo tenciona que os atenienses venham a conhecer o seu Deus como um ser pessoal. Seu uso do neutro “que adorais” em referência ao deus da concepção deles contrasta claramente com sua escolha do masculino singular para descrever a divindade que ele quer apresentar-lhes (Atos 17:24). (2) A criação é o carimbo oficial de Deus. Em virtude do seu poder criador sabemos que Ele é Deus. Sua provisão diária para toda a criação é apenas uma constante reiteração daquela divindade que é exclusivamente sua. Não necessitando de nada, Ele não é servido por mãos humanas, mas tudo depende dele. Ele mesmo [enfático no grego] dá a toda a criação sua vida, sua respiração, seu tudo. (3) Deus é inclusivo. Paulo deve saber que esta afirmação faz tremer até os ossos a exclusividade grega. Mas nem sua erudição, sensibilidade, nem flexibilidade lhe permite modificar a plena força deste fato. Ele o afirma claramente, sem rodeios: Deus “de um só fez toda a raça humana” (Atos 17:26).

“Era uma crença que provavelmente nenhum grego, e especialmente nenhum ateniense, aceitaria. Para eles, a distinção entre grego e bárbaro era radical e essencial. Por natureza, um devia ser escravo do outro (Aristóteles, Politics i. 6). Mas não havia na teologia de Paulo nenhum lugar para uma raça “superior”. Ele acreditava no relato de Gênesis da criação do homem. Via a singularidade da estrutura física, do potencial ou verdadeiro desenvolvimento, que proíbe qualquer raça ou nação – hebraica, helênica, latina, ou teutônica – presumir que é a nata e flor da humanidade”.27

É lógico que tão certamente como gregos e bárbaros são unidos em origens, assim são todos os povos do mundo de hoje. Qualquer desconsideração por este fato, ou diminuição do mesmo, em favor de diferença econômica, étnica ou de gênero, milita contra a resolução do dilema comum da humanidade. (4) Porque Ele é Senhor de todos, porque Ele sustém a todos por suas contínuas providências, Deus pode chamar todos a prestar contas. Ele é o juiz de todo o mundo. (5) A autoridade judicial divina é confirmada por seu milagre redentor, um milagre disponível a cada um que está disposto a buscar a Deus (Atos 17:27). Ele garante que o acharemos se o buscarmos de todo o coração (Jeremias 29:13). Jesus, Filho de Deus e salvador pela ressurreição dos mortos, é o ponto culminante do evangelho. Sua obra salvífica, sua criação de uma nova humanidade – estas possibilidades ascendentes emanam do que Ele é.

Uma comparação

Paulo, o grande pregador do evangelho, estava sempre comprometido com a contextualização. Como tal, sua metodologia legitima as atuais tentativas para construir teologias de relevância específica para pessoas específicas. Sua abordagem é exemplar e o seu ponto de partida significativo. Ele difere sob este aspecto das vozes nativas de hoje, que falariam de libertação baseados em categorias bíblicas. Uma comparação entre o ponto de partida de Paulo e o das correntes teológicas revela o seguinte contraste: (a) O ponto de partida para a contextualização de James Cone é sua negritude. O ponto de partida para a contextualização de Paulo, em Atos 17:24, é Deus. (b) O ponto de partida para a teologização de Cone é a libertação. O ponto de partida para a teologização de Paulo é a criação.

Multiculturalismo e autoridade bíblica

A experiência pessoal é o ponto de partida para a prática da teologia, seja asiática, africana, latina, ou feminista. Embora não seja universalmente o caso, predominantemente assim. Argumentos para sul-asiáticos versus semíticos e europeus, feministas latinas versus Escrituras anti-mulher, ou afro-americanos versus caucasianos, provocam interrogações: Se o feminismo, por exemplo, está certo em opor-se ao patriarcado, ou o africanismo está certo em sua oposição ao eurocentrismo, deve então o feminismo ou africanismo substituir as forças às quais eles se opõem? A extinção do patriarcado não tornaria o feminismo culpado da mesma violência pela qual a dominação masculina é criticada?

Uma questão suprema sobrepuja todas as outras: dada a hostilidade retórica que uma demonstra contra as outras, qual destas perspectivas competidoras deve ser admitida como a correta para a interpretação da Bíblia? Não podemos negar que essas hermenêuticas têm um ponto importante em comum. É o tema do privilégio versus não-privilégio. É digna de nota, ainda, a forma como relações consistentemente adversárias das Escrituras Sagradas me favorecem, o exegeta específico, embora condenando qualquer que eu julgue ser meu rival ou inimigo político-econômico ou sócio-cultural. Numa louvável extensão, os exegetas bíblicos que se baseiam na cultura e no gênero descobrem uma mensagem de Deus para si mesmos e seu povo por meio do estudo da Bíblia. Ao mesmo tempo, é difícil admitir o valor da interpretação bíblica que consistentemente opera para minha vindicação pessoal ou de grupo e para denúncia do meu próximo. Tais resultados, por seu evidente caráter egoísta, podem servir para invalidar o estudo que os produz. Além disso, eles sugerem que a interpretação e aplicação podem estar ligadas, em tais exemplos, a elementos externos e visíveis que distinguem cultura de cultura em vez de aspectos da natureza humana que todos partilhamos.

Visto que as exterioridades têm importância e os artefatos materiais também são expressões de nossa cultura, e porque as pessoas e sociedades são reconhecíveis “pelos seus frutos” (Mateus 7:16), a exegese não deve ignorá-los. Contudo, a erudição idônea não abalará a autoridade moral da Bíblia designando categorias “nós e eles” em que somos vindicados em virtude do nosso gênero, raça, ou prosperidade, enquanto que eles estão condenados pelos seus.

Além disso, os compromissos a priori conscientes, subconscientes ou inconscientes de autovindicação e contra os outros na interpretação da Bíblia desafiam a autoridade das Escrituras Sagradas e comprometem a transcendência do princípio sola scriptura. É tanto previsível quanto adequado que a interpretação da Bíblia seja fundamentada na experiência própria de alguém. É tanto perigoso quanto distorcido que a experiência própria de alguém se torne a base ou prova de tornassol para as vindicações das Escrituras. As interpretações multiculturais frequentemente são compreendidas deste modo, mesmo que não seja necessariamente o seu intento. Com bastante frequência eles estão reagindo aos percebidos desequilíbrios em teologia. Quer censurem a Igreja ou a Bíblia por essas falhas, eles desejam retificar os erros existentes e corrigir os desequilíbrios existentes adicionando o peso de perspectivas longamente ignoradas.

Mas se o ponto de partida é a experiência pessoal em vez da revelação divina, suas conclusões dificilmente podem ser equilibradas e essencialmente benéficas para si mesmos ou qualquer outra pessoa. A ironia de tais hermenêuticas culturalmente comprometidas é a de que sua desordenada ênfase sobre Jesus como salvador, em vez de criador, emerge como a mais significativa fraqueza teológica de interpretações bíblicas multiculturais. Faltando o fundamento da confiança na autoridade reveladora de Gênesis 1 a 11, eles são forçados a estender a mão para amarras.

O tema da sétima assembleia do Concílio Mundial de Igrejas pode ser tomado por alguns como afirmando uma clara teologia criacionista.28 “Vem, Santo Espírito”, ele convidava, “renova toda a criação”. Além disto, havia uma oração que desafiava os delegados, de vez em quando, com o rogo: “Doador da vida, sustém tua criação!” No entanto, a teóloga presbiteriana e feminista Chung Hyun Kyung punha em dúvida o verdadeiro significado desta linguagem. Encarregada de falar na sessão plenária sobre o tema da assembleia, a professora Chung começou o seu discurso invocando uma variedade de espíritos – de mártires, estudantes de Tiananmen Square, espíritos da terra, ar e água, e “o espírito do libertador, nosso irmão Jesus, torturado e morto na cruz”.29 Pode haver aqueles do Concílio Mundial de Igrejas que exaltem a autoridade infalível da Bíblia, mas dada a notável função de Chung e sua exposição do tema da assembleia, parece razoável indagar até que ponto o Deus criador de Gênesis 1 a 11 é o Senhor de tal teologia. Na explanação da professora Chung, aqueles que a acusam de sincretismo são parte do intelectualismo masculino ocidental e detentores do poder, indivíduos que limitaram a obra do Espírito por dois mil anos. Mas “as teologias do terceiro mundo”, ela argumenta, “são o novo paradigma”.30 Qualquer que seja a sua novidade, o paradigma de Chung com sua pluralidade de espíritos convergentes nem se baseava na Bíblia nem pretendia afirmar a transcendência e supremacia das Escrituras.

Volvendo-nos às opiniões de Tamez e Samantha, deve-se insistir que a confiança protestante na autoridade bíblica não é uma reação contra a autoridade papal nem a fonte de problemas interpretativos. Os protestantes não são reacionários porque sabem que o Espírito Santo, não a Igreja, é o pai sobrenatural das Escrituras. A opinião de Tamez de que os textos anti-mulher da Bíblia devem ser desconsiderados ou reinterpretados;31 a reverência de Samantha pelas escrituras hindu e budista, sua citação das tradições orais semíticas como uma dificuldade para a interpretação da Bíblia; o ponto de vista de Ahn de que a teologia de Lucas exigia a obliteração de uma declaração de Jesus – todas estas expressões revelam uma limitada e inadequada visão da autoridade da Bíblia. Suas declarações não são totalmente surpreendentes, sendo que o editor Sugirtharajah explica que seus autores usam os métodos crítico-históricos de interpretação.32 Esses métodos reduzem a Bíblia à condição de um documento que, embora venerado, foi produzido por mortais, e sobre o qual nós, seus semelhantes mortais, podemos posicionar-nos como juízes. Mas o envolvimento humano na composição da Bíblia não nos autoriza a vê-la como condicionada por todos os sentimentos de nossas debilidades.

Embora Deus falasse a gerações específicas… Ele providenciou para que as futuras gerações que lessem a Palavra de Deus a compreendessem como uma coleção de pensamento, ensino e doutrina que vai além das circunstâncias locais e limitadas durante as quais ela foi produzida.33

Além disso, a Palavra de Deus é infalível e dura para sempre. Cristo declara: “Em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra” (Mateus 5:18). A Palavra de Deus durará pelas eras incessantes da eternidade (UL 96).

Conclusão

Muito resta a ser dito sobre o assunto das pressuposições pessoais e/ou baseadas em grupo num contexto de etnia, gênero e outras interpretações das Escrituras. Nossa conversação não tem sido exaustiva, quer para o alcance da hermenêutica, quer para a erudição de qualquer hermenêutica específica entre eles. Décadas atrás, falando da teologia negra, Mark Chapman comentou que “em nenhum ponto em seu desenvolvimento tem [ela] sido um empreendimento monolítico”.34 O mesmo sem dúvida é verdade acerca de cada uma das hermenêuticas baseadas em cultura e gênero aqui revistas. Os assuntos podem ter sido simplificados demais. Além disso, as teologias produzidas por essas hermenêuticas não são teologias estáticas. Como observa Tinyiko Sam Maluleke, “os pobres africanos estão desdenhando a ‘retórica da liberação’ independentemente das regiões de onde ela procede porque… eles continuam pobres…”35 Nem floreados oratórios político-econômicos ou teológicos lhes têm trazido o que eles esperavam. Necessariamente, portanto, os teólogos continuam em busca de algo que funcione. Os novos paradigmas emergentes podem logo datar esta crítica. As perspectivas holísticas no espírito da sétima assembleia do Concílio Mundial de Igrejas dão muito mais atenção a assuntos ecológicos, ligando-os a problemas tais como feminismo e direitos nativos. A teologia gaia e a teologia homossexual também se reúnem sob esse abrigo holístico.

Apesar disso, somos capazes de apresentar comentários resumidos de relevância para o campo. Geralmente, o ponto de partida para a contextualização dos eruditos é o ego e o grupo de egos. Mesmo na visão de Maluleke do seu futuro, a teologia africana continua fundamentada no ego coletivo, por mais discrepante e variado que o ego possa ser. Mas Paulo mostra que nosso ponto de partida deve ser Deus conforme Ele se fez conhecido a nós. A Bíblia é a nossa fonte autorizada de informação, a revelação singular que Deus fez de si mesmo a nós. Outrossim, o ponto de partida já discutido para os eruditos é o aqui e agora. Paulo mostra que o nosso ponto de partida deve ser o princípio de que Deus fez todas as coisas superlativamente boas. Embora o pecado tenha desfigurado sua perfeita criação, Ele está comprometido com sua restauração.

No programa divino de restauração, a função designada à Igreja Adventista do Sétimo Dia continua sendo reparar a brecha na lei de Deus e em sua Palavra. É finalizar a obra da Reforma de nos desviarmos dos meios humanos de salvação para o meio de Deus e para sua Palavra somente. Edifica sobre conhecimento biblicamente derivado. A humanidade desorientada deve recuperar a verdade indispensável de sua origem das mãos de um amorável Deus criador. Somente quando vista a partir desta perspectiva pode a salvação por Cristo aparecer em sua verdadeira majestade. Para alcançar estes objetivos é necessária a mais firme adesão ao princípio de sola scriptura.

Referências

  1. Leslie Newbigin, Foolishness to the Greeks; The Gospel and Western Culture (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1986), p. 3.
  2. Albert Camus, The Rebel: An Essay on Man in Revolt. Com um prefácio de Sir Herbert Read; L’Homme Revolte, rev. & trad., Anthony Bower (New York, NY: Vintage Books, 1956), p. 283.
  3. Reconhecemos a distinção entre teologia afro-americana e teologia africana discutida por John Mbiti e Desmond Tutu. Veja J. Mbiti, “An African Views American Black Theology”, em James H.Cone e Gayraud S. Wilmore, eds., Black Theology: A Documentary History, 2 vols. (Maryknoll, NY: Orbis, 1993); 1:379-384. Mbiti afirma que “a teologia negra não pode e não se tornará teologia africana” (p. 382). Por contraste, Desmond Tutu vê a teologia negra (afro-americana) como o círculo interior de algo mais amplo, abrangido pela teologia africana. Veja Desmond M. Tutu, “Black Theology/African Theology – Soul Mates or Antagonists?”, em Cone e Wilmore, 1:385-392.
  4. Cone e Wilmore, 1:108.
  5. Ibid.
  6. Ibid., 1:109.
  7. Ibid.
  8. Da introdução editorial ao ensaio de Ahn Byung-Mu, “Jesus and the Minjung in the Gospel of Mark”, Voices from the Margin: Interpreting the Bible in the Third World, ed. R. S. Sugirtharajah (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1995), p. 85.
  9. Ibid., p. 84-104.
  10. Ibid., p. 90.
  11. Ibid.
  12. Ibid., p. 88.
  13. Elsa Tamez, “Women’s Rereading of the Bible”, em Sugirtharajah, p. 48-57.
  14. Ibid., p. 50.
  15. Ibid., p. 51.
  16. Ibid., p. 52.
  17. Ibid.
  18. Ibid., p. 55-56.
  19. Ibid., p. 55.
  20. Stanley J. Smartha, “Scripture and Scriptures”, em Sugitharajah, p. 21.
  21. Ibid., p. 23.
  22. Andrea Ng’weshemi, “‘Who Am I? Who Are We?’ Religious Conversion and Identity Crisis: Case of Africa”, em Africa Theological Journal, 24, no. 2 (2001): 25.
  23. Ibid., 30.
  24. Leonardo Boff e Clodovis Boff, Introducing Liberation Theology (Maryknoll, NY: Orbis Books, 1987), p. 90.
  25. Ibid., p. 90 – 95.
  26. Ibid., p. 91.
  27. F. D. Nichol, ed., Seventh-day Adventist Bible Commentary, ed. rev., 7 vols. (Washington, D.C. Review and Herald, 1980), 6:352-353.
  28. Veja Michael Kinnamon, ed., Signs of the Spirit: Official Report of the Seventh Assembly of the World Council of Churches, Canberra, Australia 7-20 February 1991 (Geneva: WCC,1991), p. 54-59.
  29. Chung Hyun Kyung, “Come Holy Spirit – Renew the Whole Creation”, em Kinnamon, p. 39.
  30. Kinnamon, p. 16. 283
  31. Para discussão adequada dos chamados “textos anti-mulher”, veja Richard M. Davidson, “Headship, Submission, and Equality in Scripture”, em Nancy Vyhmeister, ed., Women in Ministry: Biblical and Historical Perspectives (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1998), p. 259-295.
  32. R. S. Sugirtharajah, “Introduction: The Margin as a Site of Creative Revisioning”, em Sugirtharajah, p. 4.
  33. Gerhard F. Hasel, Understanding the Living Word of God (Mountain View, CA: Pacific Press, 1980), p. 72.
  34. Mark Chapman, “Annotated Bibliography of Black Theology: 1966-1979”, em Cone & Wilmore, 1:441.
  35. Tinyiko Sam Maluleke, “The Rediscorey of the Agency of Africans: An Emerging Paradigm of Post-Cold War and Post-Apartheid Black and African Theology”, Journal of Theology for Southern Africa 108.1 (2000): 26.

Bibliografia selecionada

Boff, Leonardo e Boff, Clodovis. Introducing Liberation Theology. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1987.

Cone, James H., e Wilmore, Gayraud S. eds. Black Theology: A Documentary History. 2 vols. Maryknoll, NY: Orbis, 1993.

Kim, Kirsten, “Post-Modern Mission: A Paradigm Shift in David Bosch’s Theology of Mission?” International Review of Mission 89, no. 353 (abril 2000) 172-179.

Maluleke, Tinyiko Sam. “The Rediscovery of the Agency of Africans: An Emerging Paradigm of Post-Cold War and Post-Apartheid Black and African Theology.” Journal of Theology for Southern Africa 108.1 (2000) 19-37.

Sugirtharajah, R. S., ed., Voices From the Margin: Interpreting the Bible in the Third World. Maryknoll, NY: Orbis Books, 1995.

Lael O. Caesar, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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INTERPRETANDO E APLICANDO A ÉTICA BÍBLICA

Introdução

A tarefa da ética é examinar os aspectos morais da natureza e do comportamento humanos a fim de esclarecer problemas na tomada de decisão moral e facilitar a formação do caráter moral. Resumindo, ética é o estudo ou ciência da moralidade.1 Entretanto, de acordo com o uso contemporâneo, os termos gerais “ética” e “moralidade” bem como outras palavras relacionadas, serão usados intercambiavelmente neste capítulo.

A ética cristã, primariamente por meio de um exame da Bíblia, explora o tipo de caráter moral que o cristão precisa desenvolver, a natureza dos agentes morais, o comportamento moral esperado, os propósitos para os quais a ação ética é exigida e os meios disponíveis para o seu desempenho.

Nas Escrituras encontramos uma abundância de material ético. Conquanto uma leitura superficial mostre a preocupação bíblica com a ética, infelizmente alguns têm ignorado a variedade de literatura bíblica que se relaciona com assuntos éticos. Estes incluem mandamentos, leis, advertências, exortações, proibições, listas de vícios e virtudes, adágios de sabedoria, provérbios, etc.

Embora a tradição, a experiência e a razão possam todas ser tomadas em consideração para a reflexão ética, a Palavra de Deus é “a norma para avaliar todas as outras fontes”.2

Às vezes crentes sinceros têm se tornado confusos quando leem mandamentos específicos das Escrituras. Por exemplo, lendo sua Bíblia, um novo crente deparou com o tema da circuncisão (veja Gênesis 17:10; Êxodo 12:48; Levítico 12:3; e outros) e ficou indagando se esta prática era ainda obrigatória. Em certo local a comissão da igreja votou a compra de chapéus para mulheres que se apresentavam na igreja sem coberturas na cabeça (veja 1Coríntios 11:5 a 7). E o que dizer do regulamento que declara: “Nem usarás roupa de dois estofos misturados” (Levítico 19:19)?

Vários eruditos têm comentado sobre o desafio da mudança de palavras específicas das Escrituras para fazer sobreviver o texto na vida diária.3 A despeito destes problemas notados, é claro que os ensinos éticos globais da Escritura têm relevância duradoura pelas quatro razões seguintes, no mínimo: (1) Ao longo dos séculos, desde o tempo dos escritores da Bíblia, a natureza humana ainda está sujeita às mesmas tentações básicas de orgulho, luxúria, ambição, etc. (2) Embora os cristãos contemporâneos possam enfrentar novas dificuldades, tais como AIDS e terrorismo, a Bíblia ainda oferece orientação e esperança em meio a estes problemas. (3) As leis bíblicas podem ser guardadas pelo poder de Deus (Filipenses 1:6; Filipenses 2:12 e 13), porque “tudo que deve ser feito a seu mando pode ser cumprido por seu poder” (Parábolas de Jesus, p. 333). (4) O chamado ao cristão para formar um caráter semelhante ao de Cristo (veja 1Coríntios 11:1; 1Pedro 2:21; etc.), é precisamente tão válido hoje como era dois milênios atrás.4

A quíntupla tarefa de interpretar a ética bíblica

Para explorar e compreender os temas morais da Bíblia, o intérprete deve empenhar-se em várias operações críticas sobrepostas e integradas. Estes empreendimentos podem ser identificados por meio de um exame da vida e ensinamentos de Jesus. Além do seu exemplo pessoal e suas exortações explícitas concernentes à oração, a orientação prática para extrair ética da Escritura pode ser achada em dois encontros que Jesus teve, um dos quais tratava especificamente de assuntos de moralidade (veja Lucas 10:25 a 28; Lucas 24:27 e 24:44). Uma análise dos métodos essenciais usados por Jesus nessas ocasiões traz à luz uma quíntupla tarefa vital, a qual é obrigação de cada intérprete da Palavra.

Súplica – a tarefa submissa. As palavras e obras de Jesus mostram a indispensabilidade da oração (veja Marcos 6:46; Marcos 14:38; Lucas 5:16; Lucas 6:12; Lucas 9:28; Lucas 18:1). Adverte Ellen G. White: “Jamais a Bíblia deve ser estudada sem oração”, porque “sem a direção do Espírito Santo estaremos continuamente propensos a torcer as Escrituras ou mal interpretá-las” (Serviço Cristão, p. 91 e 110). Os intérpretes devem ser submissos à direção do Espírito Santo a fim de ter seus pensamentos e suas vidas moldados pela Palavra. Esta tarefa submissa responde à pergunta vital: “O que o Espírito deseja ensinar-nos?”

Observação – a tarefa descritiva. Quando Jesus foi abordado por um “intérprete da lei” com uma pergunta, Ele respondeu com uma contra-interrogação, “Que está escrito na lei?” (Lucas 10:25 e 26). Sua repetida referência à Palavra escrita de Deus como a base para a vida e como o fundamento de sua obra é uma característica significativa do ministério de Jesus (Mateus 4:4, 7 e 10; Mateus 12:1 a 7; Lucas 24:44). Portanto, a fase da observação requer a leitura cuidadosa do texto. Esta tarefa descritiva responde à interrogação: “O que diz a passagem específica?”

Sintetização – a tarefa integrativa. Mas a leitura não deve ser feita isolada do restante da Escritura Sagrada. De fato, a importância de ver os textos dentro do contexto canônico mais amplo foi enfatizada por Jesus em sua viagem para Emaús. Ali, Jesus “lhes expôs o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lucas 24:27 e 44). Esta dilatada reflexão sobre as Escrituras representa a fase da sintetização. Colocando os textos individuais dentro do seu contexto canônico mais amplo, o intérprete pode encontrar coerência na visão moral da Escritura. Esta tarefa integrativa responde à indagação mais ampla: “O que dizem as Escrituras como um todo?”

Interpretação – a tarefa hermenêutica. Retornando ao encontro de Jesus com o intérprete da lei, Ele pergunta: “Como interpretas [isto é, a Lei]?” (Lucas 10:26). A segunda interrogação de Jesus não era meramente uma reafirmação da primeira pergunta, “Que está escrito na lei?” No uso imediato e mais amplo da frase, “Não lestes?” (Mateus 12:3 e 5; Mateus 19:4; Mateus 21:16 e 42), esta pergunta é mais do que simplesmente palavras enunciadoras – ela lida com significado. A fase da interpretação tem a ver com a compreensão da passagem para reflexão ética. Esta tarefa hermenêutica responde à pergunta básica: “O que significa este texto para nós?”

Aplicação – a tarefa pragmática. Depois de o intérprete da lei ter respondido apropriadamente citando duas passagens essenciais, Jesus o desafiou: “Faze isto e viverás” (Lucas 10:28). Depois de contar a parábola do bom samaritano, Jesus repetiu essencialmente essa exortação, dizendo: “Vai e procede tu de igual modo” (Lucas 10:37). Este estágio é a fase da aplicação. Esta tarefa pragmática, que tem a ver com o viver a Palavra na vida diária, responde à pergunta essencial: “O que faremos então?”

Desenvolvimento do caráter como o alvo da ética cristã

Como uma “luz para os meus caminhos” (Salmos 119:105), a Palavra de Deus provê orientação para as decisões da vida. De uma maneira detalhada, 2Timóteo 3:16 e 17 indica que “toda Escritura é dada por Deus e é útil” para “mostrar às pessoas o que está errado em suas vidas”, e “para ensinar como viver direito”. E é para essas Escrituras que agora nos volvemos, a fim de compreender por que e como Deus quer restaurar sua imagem moral na humanidade.

Restauração da imagem de Deus. Salomão observa que a maneira de pensar influencia a ação: “Porque, como imagina em sua alma, assim ele é” (Provérbios 23:7). Esta relação de causa e efeito torna este chamado urgente: “Nem mesmo pense em fazer mal a alguém” (Zacarias 7:10, NCV).

Uma similar ligação de pensamento e de ação ética aparece no conselho de Pedro em que ele diz: “Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios” (1Pedro 1:13) e “como filhos da obediência, não vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância; pelo contrário, segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento; porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo” (versos 14 a 16). Aqui encontramos o chamado básico da ética bíblica, o chamado para ser santo, ser semelhante a Deus, ter a imagem de Deus restaurada em nós.

“O objetivo da ética cristã é ajudar a restaurar a imagem de Deus no estilo de vida humano”.5 Este chamado ao viver santo começa na mente. Por isso a exortação: “Transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Romanos 12:2). Com o pensar correto como a base para a ação correta, a adesão às normas enunciadas em Filipenses 4:8 promoverão a restauração da imagem de Deus.

Conformados a Cristo. A ética cristã concentra-se na imitação de Cristo, a quem conhecemos somente por meio do relato bíblico. O propósito central das Escrituras é nos apontar para Jesus (João 5:39; 2Timóteo 3:15 a 17), o salvador do mundo e Senhor de toda a vida; aquele que reforma e transforma o pecador (2Coríntios 5:17). Assim, “a pessoa de Jesus Cristo torna-se normativa para a ética cristã”. Sendo que a imitação pode aparecer como uma mera conformidade externa, tem-se sugerido que a frase “sendo conformados a Cristo” seja usada, visto que ela fala de um processo interno de transformação em que a real presença de Cristo gradualmente transforma o indivíduo.

O que significa ser “conformados a Cristo”? Enfatiza a humildade (Mateus 11:29), o amor (João 13:34), e o perdão (Colossenses 3:13). Inclui fazer “sempre o que lhe agrada [isto é, a Deus]” (João 8:29) e ser “obediente até à morte”, como Jesus foi (Filipenses 2:8). De fato, o crente deve “pensar e agir como Cristo Jesus” (Filipenses 2:5), destemido quanto ao futuro, fiel. Em todo sentido, Jesus é o modelo de comportamento moral para os cristãos.

Neste enfoque sobre Jesus como a essência da ética cristã, diz R. E. O. White: “Esta é a contribuição singular do cristianismo para a ética: a identificação do ideal moral com uma pessoa histórica; a tradução da teoria ética para termos concretos em uma vida humana real; a expressão da obrigação moral na linguagem da lealdade pessoal; e a ligação da mais alta aspiração moral com os mais poderosos motivos de admiração pessoal, devoção, gratidão e amor”.6

O fruto do Espírito Santo. O Novo Testamento dá uma grande ênfase à dupla função do Espírito Santo na ética cristã. Primeira, Ele produz uma transformação de caráter nos crentes para que eles espontaneamente manifestem as virtudes éticas, tais como amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, gentileza e domínio próprio (Gálatas 5:22). Segunda, o Espírito Santo guia os crentes na tomada de decisão ética: “Ele vos guiará a toda a verdade” (João 16:13), promete Jesus. Pelo poder vivificante do Espírito Santo, o crente é transformado, sustido e guiado no caminho cristão (Gálatas 5:25).

Uma resposta relacional de amor. Um estudo das Escrituras revela o vínculo íntimo entre fazer e ser. Tiago admoesta os crentes: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes” (Tiago 1:22). Segundo Jesus, esse “fazer” da Palavra será uma reação automática – uma resposta de amor (João 14:15). Este tipo de “resposta de amor” já pode ser visto no Antigo Testamento em que Deus promete misericórdia àqueles “que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êxodo 20:6). Além disso, esta resposta relacional de amor está implícita na própria maneira pela qual o decálogo é introduzido. Deus lembrou o seu povo de que Ele o havia tirado “da casa da servidão” (Êxodo 20:2); e só então Ele declarou seus requisitos morais. Desse modo, a moralidade da aliança reflete profunda gratidão por livramento não merecido. Do mesmo modo, os cristãos reagem à iniciativa divina de salvação com uma resposta de amor baseada em sua conformidade com a vontade de Deus no viver diário (Mateus 7:15 a 23; Romanos 6:1 a 4; Tiago 2:14 a 16; 1João 2:3 a 6). Em outras palavras, a evidência da fé genuína é obediência motivada pela gratidão e pelo amor.

Diretrizes intra-escriturísticas para distinguir normas absolutas de normas culturais

Há uma forte tendência entre muitos eticistas de argumentar contra a ideia de que a Bíblia prescreve absolutos morais. Poderia haver muitas razões para isto além do fato de que muitos não aceitam a Bíblia como autorizada para suas vidas. Por exemplo, o ser humano não gosta de que alguém, inclusive Deus, lhe diga o que fazer. Além disso, alguns evitam os absolutos por temor de “legalismo”, ou pelo alegado conflito entre o “espírito” e a “letra” da lei.7 Alguns teólogos não acham que seja possível ou mesmo legítimo identificar absolutos morais universais nas Escrituras.

Para o crente na Bíblia, porém, há motivos suficientes para crer em absolutos morais universais. Para começar, a moralidade cristã baseia-se na natureza imutável de Deus (por exemplo, Malaquias 3:6; 1Pedro 1:15 e 16). Além do mais, sendo que os seres humanos são pecaminosos por natureza, há uma necessidade de absolutos a fim de que possam viver juntos em alguma espécie de harmonia. Sem absolutos, eventualmente haveria anarquia.

O leitor perspicaz da Bíblia logo verá que há muitos regulamentos bíblicos que diferentes comunidades cristãs, em graus variados, não mais observam. Surge assim a pergunta: há quaisquer diretrizes intra-escriturísticas para ajudar o intérprete a discernir quais regulamentos são práticas culturais – portanto não mais em vigor – e quais são normas absolutas transculturais ainda exigidas de todos os crentes? Várias propostas podem ajudar a facilitar este processo de interpretação.

Discernindo absolutos morais transculturais

O intérprete que procura encontrar os limites às vezes importunos entre ordens divinas e práticas culturais encontrará várias abordagens e conceitos úteis.

Reflexão sobre a natureza moral de Deus. Absolutos morais universais podem ser identificados por sua base na natureza moral do Criador. Por exemplo, os dez mandamentos têm uma conexão óbvia com a própria natureza de Deus. Sendo que Ele é o único Deus verdadeiro e vivo, que criou a humanidade, somente Ele deve ser adorado, seu nome reverenciado e o seu dia de repouso santificado (Êxodo 20:1 a 11). Por ser Ele o doador da vida humana, ao ser humano é proibido tirá-la (verso 13).8 Deus é a verdade; portanto, os que têm a sua imagem devem imitar este traço de caráter (verso 16); e assim por diante. Sendo que o decálogo reflete tão fundamentalmente uma parte da natureza de Deus, não é surpreendente encontrá-lo repetido com tanta frequência ao longo das Escrituras. Sendo que Deus não muda, as normas morais universais, fundamentadas em sua natureza, transcenderão o tempo e a cultura.

Uma abrangente teologia bíblica. O intérprete deve observar a moralidade e a teologia que envolve cada lei como um meio de determinar sua permanência. Isto incluiria notar os contextos imediatos e mais amplos, as razões implícitas dadas para a legislação, as referências diretas ou indiretas a ensino anterior, comparações com legislação semelhante, e o princípio de legítima inferência. Tome, por exemplo, o problema do aborto intencional de um feto humano, que nunca é tratado explicitamente na Escritura. As perspectivas morais, porém, podem ser extraídas do estudo das leis civis dadas à teocracia israelita em que ao que se encontra em gestação é conferida condição de uma pessoa viva (Êxodo 21:22 a 25).9 Inferências legítimas também podem ser extraídas dos termos intercambiáveis usados para a vida humana pré e pós-natal (por exemplo, Lucas 1:41; Lucas 2:12), da preocupação mostrada para com os vulneráveis (por exemplo, Deuteronômio 24:17; Salmos 10:14 a 18; Isaías 1:17), e de um estudo comparativo do tema global: santidade de vida nas Escrituras (por exemplo, Gênesis 9:6; Deuteronômio 19:4 a 13; Apocalipse 21:8).10

Os exemplos éticos da ordem da criação. Normas morais universais são identificáveis por sua base na ordem da criação. Conquanto algumas práticas no Éden fossem obviamente culturalmente relativas, tais como cultivo ou o vestuário da primeira família, as práticas morais ali estabelecidas têm uma clara aplicação transcultural. Por exemplo, no que concerne ao casamento encontramos Jesus levando seus questionadores de volta à ordem criada (Marcos 10:6 e 9). Semelhantemente, conforme confirmado no decálogo, o sábado do sétimo dia está fundamentado na ordem da criação, e, portanto, tem significado moral duradouro.

Oposição às práticas imorais de culturas adjacentes.11 Quando práticas inerentes à cultura pagã são proibidas nas Escrituras, elas são também proibidas para todos os crentes. Por exemplo, a Bíblia abertamente condena a bestialidade, que em graus variados era parte de algumas culturas pagãs antigas (veja Levítico 18:3, e 23 a 28). Deste modo, quando a Escritura fala diretamente contra uma antiga prática cultural, isto indica uma norma transcendente.

Expectativas de conduta para estrangeiros que viviam em Israel. Quando atividades específicas são mencionadas como sendo exigidas dos israelitas e do estrangeiro que peregrina entre eles, tais leis têm uma implicação universal.12 Por exemplo, Levítico 17 e 18 proíbe certas práticas a israelitas e a estrangeiros: comer alimento oferecido a ídolos, comer sangue ou animais estrangulados, e atividades sexualmente imorais (inclusive incesto, adultério, poligamia, homossexualismo e bestialidade).13 A igreja apostólica via estas mesmas práticas como normas absolutas e assim as proscreveu (Atos 15:29).

Severidade do código penal para violações de certas leis. A comparação de várias leis das Escrituras demonstra que quanto mais severa a penalidade para a violação de um regulamento, mais provável que o mesmo seja transcultural. Em Israel, mais ou menos vinte e cinco casos demandavam a pena de morte. Por exemplo, ferir (Êxodo 21:15) ou amaldiçoar (Levítico 20:9) ou desobedecer a um pai (Deuteronômio 21:18 a 21), o sacrifício de crianças (Levítico 20:1 a 5), rapto (Êxodo 21:16), feitiçaria (Levítico 20:27), e estupro (Deuteronômio 22:25), todos exigiam pena capital. Além disso, todos estes regulamentos estão relacionados de alguma forma com o decálogo, que é universal em aplicação.

Comparação de disposições transculturais imediatas. Um texto ou algo dentro dele pode ser transcultural à medida que outros elementos em um contexto especializado sejam transculturais. Por exemplo, as Escrituras têm muitas “listas de vício e virtude” que geralmente representam uma lista de valores essenciais, práticas, atitudes e traços de caráter que o autor quer que o leitor ou evite ou aceite (por exemplo, Provérbios 6:16 a 19; Jeremias 7:9; Marcos 7:21; 1Timóteo 1:9 a 10).14 Das centenas de itens dessas listas de vício e virtude, basicamente todas refletem valores transculturais.

Fundamento em cuidadosa análise teológica. Um aspecto de um texto será transcultural se a sua base está enraizada no caráter da divindade por meio da analogia teológica. Por exemplo, a Bíblia instrui os crentes a amar os outros como Deus os tem amado (1João 4:11), a ser santos como Deus é santo (1Pedro 1:16), a perdoar “como também Deus, em Cristo, vos perdoou” (Efésios 4:32). Sendo que estes atributos do caráter de Deus são transculturais, eles devem ser exibidos na vida dos crentes.

Expectativas de uma comunidade da nova criação. Uma passagem pode ser transcultural se está enraizada em um material da nova criação. Por exemplo, as várias declarações relacionadas com “judeu e grego/gentio” (1Coríntios 12:13; Gálatas 3:28; Colossenses 3:11), proveram certas implicações sociológicas profundas de igualdade para a igreja apostólica – implicações que devem continuar afetando a conduta dos crentes. Contudo, tais textos como o da Grande Comissão de Mateus 28:18 a 20 são igualmente transculturais.15

Coerência pela revelação das Escrituras. Normas universais podem também ser identificadas por sua consistência ao longo da revelação progressiva da vontade divina. Essa consistência baseia-se no fato de que essas leis são um transcrito do caráter coerente e impecável de Deus.16 Se encontramos um aparente conflito é porque não temos compreendido as normas devidamente.

Além disso, essas leis universais não somente serão coerentes umas com as outras, mas também ao longo de todos os períodos da história humana.17

Determinando culturalmente regulamentos relativos

Declarações das próprias Escrituras diretamente expressas ou claramente subentendidas. As mais óbvias práticas culturalmente restritas são identificadas pelo contexto. Relatando a queixa dos fariseus e dos escribas concernente à maneira pela qual os discípulos de Jesus comiam pão (Marcos 7:1 a 23), o autor inclui uma declaração parentética (versos 3 e 4) para indicar que tais coisas eram segundo a “tradição dos anciãos”. Semelhantemente, no que concerne ao comprimento do cabelo, Paulo fala acerca da “prática” nas igrejas daquele tempo (1Coríntios 11:16), que poderia ser interpretada como um problema que é culturalmente relativo.

Reconhecimento da natureza temporal dos regulamentos cerimoniais. Muito do livro de Levítico e consideráveis porções de alguns outros livros do Antigo Testamento tratam dos regulamentos do culto dados por Deus a Israel. A própria ordem e o contexto em que as leis moral, civil e cerimonial foram a princípio dadas em Êxodo 20 a 40 subentende que somente as leis morais são absolutos transculturais. Além disso, as próprias Escrituras indicam que as práticas cerimoniais prefiguravam os grandes atos da história da salvação, culminando na morte sacrifical de Jesus Cristo. Muitas passagens do Novo Testamento reconhecem isto, indicando que estas estipulações referentes ao culto eram de natureza temporal (por exemplo, João 1:29; 1Coríntios 5:7; Colossenses 2:14 a 17; Hebreus 10:1 a 10).

Modificação da norma cultural original pelas Escrituras. Um texto pode estar limitado à cultura se a Bíblia modifica as normas culturais. Considere, por exemplo, os direitos de herança. Somente os do sexo masculino tinham esse direito até que as filhas de Zelofeade corajosamente solicitaram a herança da terra de sua família em vista de seu pai ter morrido sem filhos (Números 27:1 a11; Números 36:1 a 13).

Incorporação de uma “sementeira” redentora no texto. Uma prática pode ser vista como cultural se “ideias-sementes” estão presentes no restante da Bíblia para encorajar outro movimento sobre um determinado problema. A ideia-semente descreve algo em um primeiro estágio, embora não plenamente desenvolvido, mas meramente sugestivo do que poderia ser. Por exemplo, superficialmente, certos textos das Escrituras parecem apoiar a escravidão. Todavia, textos como o seguinte realmente incorporam uma “sementeira” que solapa a prática, sugerindo assim seu relativismo cultural: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres” (1Coríntios 12:13).

Uma fuga de outros regulamentos bíblicos. As Escrituras podem, às vezes, relevar alguma divergência no tratamento de um assunto, que superficialmente pode parecer até mesmo uma contradição. Entretanto, esta fuga radical mostra que a prática é meramente cultural. Por exemplo, os privilégios e os direitos do primogênito são teologizados tão frequentemente nos modelos redentivos do Antigo Testamento (por exemplo, Êxodo 13:1 a 10; Números 3:11 a 13) e na cristologia do Novo Testamento (por exemplo, Romanos 8:29; Colossenses 1:15) que alguém pode pensar que isto é um valor transcultural. Contudo, várias passagens relacionadas com a ordem do nascimento, que conscienciosamente abandonam a norma, sugere a probabilidade de que a preeminência do primogênito é um costume ligado à cultura (por exemplo, Gênesis 25:23; Gênesis 48:12 a 20; 1Samuel 16:6 a 17:14).18

Reconhecimento de declarações de propósito/intento na legislação. Às vezes o propósito ou intento original da legislação está relacionado com uma prática cultural. Então, mesmo podendo o intento continuar e o propósito ser cumprido em um contexto diferente, a prática cultural original parece estar ligada ao tempo. Considere, por exemplo, a declaração do Novo Testamento de que os cristãos devem “submeter-se” ao rei (1Pedro 2:13). Significa isto que a Bíblia requer um sistema monárquico de governo? Esta passagem imediatamente apresenta o propósito para a admoestação “que, pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos” (1Pedro 2:15). Em outras palavras, conquanto o princípio subjacente de respeito para com os líderes políticos e submissão à lei ainda se aplique, o aspecto da própria submissão do tipo monarquia deve ser classificado como um elemento do texto ligado à cultura.19

Especificidade de um recipiente limitado ou situação cultural. Ordens específicas a indivíduos nas Escrituras estão mais culturalmente confinadas do que declarações gerais. Por exemplo, Jesus ordenou ao jovem rico: “Vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres” (Marcos 10:21). Semelhantemente, as leis da “respigadura” de uma sociedade agrícola (por exemplo, Levíticos 19:9 e 10) estão ligadas ao tempo, embora o princípio de preocupação com o pobre, conforme visto em ambos os exemplos anotados, seja uma obrigação transcultural.20

Resumindo, quando se leva em conta todas as diretrizes para determinar se uma ordem tem significado cultural ou transcultural, as normas absolutas da Bíblia podem ser identificadas apropriadamente. Sendo que os mandamentos divinos “não são penosos” (1João 5:3), e sendo que sabemos que “podemos todas as coisas por meio de Cristo” (Filipenses 4:13), o desafio é o de que “vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente” (Tito 2:12). E quando as leis divinas são escritas no mais íntimo do nosso ser (Salmos 119:11), somos capazes de dizer, com o salmista: “Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu” (Salmos 40:8).

Descobrindo normas morais nas narrativas bíblicas

Sendo que muito do material bíblico toma a forma de narrativas e histórias, elas merecem atenção específica, começando com várias sugestões precautórias. O que faremos, por exemplo, com as narrativas bíblicas em que os crentes quebram a lei de Deus? Alguns têm se referido a 1Coríntios 10:11: “Estas cousas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa”. Baseados nisto, eles têm afirmado que a maneira como viviam as pessoas do Antigo Testamento nos fornecem “exemplos aprovados por Deus de como Ele quer que nos comportemos em conflitos morais semelhantes”.21 Este verso, porém, é um sumário da passagem precedente, onde Paulo relembra aos cristãos coríntios: “Ora, estas cousas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as cousas más, como eles cobiçaram” (1Coríntios 10:6). Paulo então enumera algumas dessas coisas más, tais como idolatria e imoralidade sexual (1Coríntios 7 e 8), juntamente com alguns dos juízos de Deus (1Coríntios 8 a 10). Em vez de imitar as narrativas bíblicas, os contextos imediatos e mais amplos devem ser considerados a fim de distinguir entre o que a Bíblia realmente ensina e o que ela simplesmente relata a fim de mostrar quão longe os crentes se desviaram de Deus e de sua santa lei.

Em outras palavras, há exemplos na Bíblia que não devemos seguir. Portanto, 1Coríntios 10:11 é um convite a todos os crentes, como observou Ellen G. White, para “evitar os males relatados e imitar somente a justiça daqueles que serviam ao Senhor” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 4, p. 12).

Quando importa em usar as narrativas bíblicas para instruir a outros, enfrentamos o perigo de distorcer uma “linha do seu contexto escriturístico como um ‘texto-prova’ para uma postura moral que realmente foi formada em diferentes terrenos”.22 Esta propensão à moralização pode transformar as narrativas bíblicas em instrumentos de condenação que causem desespero sem esperança, degradando assim as Escrituras a um nível de controle social.23 A moralização também pode nos impedir de compreender tudo o que a passagem bíblica teria a nos dizer.

Um perigo igualmente grave enfrentam os intérpretes quando selecionam para uso pessoal apenas “relatos seguros que não fazem nenhuma exigência e não esperam nada em retorno, e que se ajustam confortavelmente às narrativas que já escolhemos para nós mesmos”.24 Além disso, há o evidente perigo “de que possamos usar as narrativas e incidentes das Escrituras para justificar quase qualquer ação”.25 Por exemplo, alguns podem argumentar que visto que Davi que era um “homem segundo o coração de Deus”, e tinha muitas mulheres, então a prática da poligamia não deve ser condenada.26

Reconhecendo os perigos de imitar simplisticamente as narrativas das Escrituras, duas precauções biblicamente sadias têm sido sugeridas: (1) O elogio a uma pessoa ou ação notável não necessariamente implica inferir elogio a cada elemento dos homens e das mulheres citados. (2) O relato ou narrativa de um evento das Escrituras não precisa ser igualado com aprovação, elogio, ou tornar tal ação ou característica normativa para emulação de todos os leitores subsequentes.27

Portanto, cada narrativa deve ser analisada por progressão literária, estrutura dramática e feições estilísticas.

Propostas para interpretar confiavelmente as narrativas escriturísticas

As narrativas bíblicas são decisivas pois nos levam a refletir sobre nós mesmos e a fazer indagações mais profundas acerca de nós mesmos. Realmente, elas proveem um interessante veículo para a mensagem das Escrituras. Como notou Frank Holbrook: “Nenhum intérprete sincero da Bíblia pode deixar de reconhecer o significado dos princípios pelos quais os escritores do Novo Testamento interpretaram o Antigo Testamento. Embora os princípios sejam raramente declarados de forma explícita, eles podem ser deduzidos por análise cuidadosa”.28

Consideração da narrativa completa. Tome-se, por exemplo, a história de José. Com base na narrativa bíblica, ela pode ser interpretada como uma história de inflexível fidelidade ao Deus vivo.

Mas é possível que José sofresse do pecado do orgulho, conforme indicado por jactar-se do seu segundo sonho diante de sua família ou sua posterior declaração acerca de “toda a minha glória no Egito” (Gênesis 45:13)? Além disso, o que dizer das várias ações artificiosas de José para com seus irmãos sobre um prolongado período de tempo?

É verdade que não há na narrativa nenhuma declaração direta condenando especificamente a José por essas ações enganosas. Todavia, o exame cuidadoso das Escrituras revela que a ausência de uma condenação direta da conduta em uma crônica não é indicação da equidade dos feitos realizados. Antes, a aceitação moral das ações dos personagens bíblicos deve ser avaliada sob o seguinte fundamento: se sua conduta viola ou não “um claro mandamento de Deus”.

Portanto, no caso de José, a narrativa completa, conforme registrada na Bíblia, leva no mínimo às seguintes conclusões: que José é um exemplo de alguém que permaneceu firme contra as tentações por causa do relacionamento que ele tinha com Deus (Gênesis 39:8 a 10); que ele demonstrou um espírito perdoador para com seus irmãos (Gênesis 50:15 a 21); e que, a despeito das evidências dos lapsos morais de José no orgulho, um casamento contra a fé e engano repetido – um Deus gracioso ainda estava disposto a trabalhar nele e por intermédio dele a fim realizar sua vontade para com o seu povo. Visto deste modo, Deus é o herói da narrativa, e nenhum ser humano é colocado em um pedestal como o padrão de perfeição. Como declara as Escrituras, somente Jesus é o nosso perfeito exemplo ético, o modelo impecável de moralidade (1Pedro 2:21 e 22; Hebreus 4:15; 2Coríntios 5:21).

Conformidade com informação disponível. Tentando provar que é correto ignorar uma lei moral contanto que, em assim fazendo, alguém guarde a “lei mais elevada”, afirma um eticista: “Davi e seus homens, que entraram no templo e furtaram o pão consagrado, foram declarados sem culpa por Cristo” (Mateus 12:3 e 4).30 Então, baseado nesta asserção, a seguinte ideia é promulgada: “Talvez ‘furtar’ pão do templo (que é tirá-lo sem permissão da autoridade apropriada) não seja moralmente errado quando a fome do servo de Deus é a outra opção”.31 Uma leitura meticulosa da narrativa original conforme se encontra em 1Samuel 21 lança valiosa luz sobre o breve comentário de Jesus em Mateus 12:3 e 4. Fugindo de Saul, Davi e seus homens chegaram a Nobe onde ele solicitou alimento ao sacerdote Aimeleque. Sendo que o único alimento disponível era o pão consagrado reservado exclusivamente aos sacerdotes, Aimeleque, depois de receber orientação de Deus (1Samuel 22:10), deu-lhes o pão.32 Assim, quando a crônica do pão consagrado é interpretada de uma maneira consistente com o relato escriturístico, torna-se claro que “este incidente não pode ser usado para mostrar que Cristo aprovou a violação das leis [morais] do Antigo Testamento por causa de conveniência”.33

Claras implicações contextuais. Ocasionalmente, quando os relatos bíblicos omitem alguns detalhes, alguém poderia ser seduzido pela interpretação conjectural. Por exemplo, tem-se afirmado: “Sem dúvida o profeta Obadias se empenhou em alguma atividade enganadora para salvar a vida de uma centena de profetas de Deus (1Reis 18:13)”.34 Completa investigação do relato bíblico indica que não há nenhuma evidência de que Obadias se empenhou em “atividade enganadora”. A passagem simplesmente relata que, enquanto Jezabel estava assassinando os profetas do Senhor, Obadias escondeu uma centena deles, e os sustentou “com pão e água” (1Reis 18:13).35 Se alguém deve conjecturar, conforme alegado, que Obadias se empenhou em algum tipo de engano a fim de proteger a vida desses homens, então alguém poderia especular que ele provavelmente furtou o pão e a água para eles, sendo que os gêneros de primeira necessidade estavam certamente em escasso suprimento durante uma fome. Mas a especulação além do contexto é inaceitável; é muito mais sábio aceitar o texto como se lê – como a narrativa de um crente destemido, cheio de fé.36

Interpretações cronológicas do texto. Na Bíblia, obviamente não temos narrativas completas que relatam cada detalhe. Antes, encontramos relatos interpretados de eventos históricos. Por exemplo, João admite explicitamente que o seu evangelho não inclui “muitas outras cousas que Jesus fez” (João 21:25). Contudo, a natureza seletiva do seu relato não infringe sua fidedignidade.

Infelizmente, alguns têm combinado várias narrativas das Escrituras para que a informação decisiva seja distorcida. Considere os antecedentes de Davi. Frequentemente, na discussão sobre poligamia alguém ouve o argumento: “Davi tinha muitas mulheres; todavia, a Bíblia relata que ele era ‘um homem segundo o coração de Deus’”.

Uma interpretação cronológica da crônica de Davi revela o seguinte: vindo imediatamente depois que Saul presunçosamente oficiou como sacerdote, Samuel lhe informou que ele perderia o seu reino (1Samuel 13:8 a 14). Nesse contexto, Samuel declarou: “O Senhor buscou para si um homem segundo o seu próprio coração” (verso 14). O jovem Davi, escolhido por Deus para substituir Saul, era formoso, saudável, e vivia segundo a vontade de Deus (1Samuel 16:7 e 12). Quando lida cronologicamente, a narrativa mostra que foi enquanto Davi era solteiro e antes de tornar-se enredado na poligamia que Deus o chamou como “um homem segundo o seu coração”. Concordando, Ellen G. White observa:

“Cépticos têm vituperado o cristianismo […], e ridicularizado a Bíblia, porque Davi deu-lhes motivo. Levam aos cristãos o caso de Davi, seu pecado no caso de Urias e Bate-Seba, sua poligamia, e então afirmam que Davi é chamado um homem segundo o coração de Deus, e se o relato bíblico está correto, Deus justificou Davi em seus crimes. Foi-me mostrado que foi quando Davi era puro, e estava andando no conselho de Deus, que Deus o chamou um homem segundo o seu coração. Quando Davi se afastou de Deus e manchou seu virtuoso caráter por seus crimes, ele não foi mais um homem segundo o coração de Deus (Spiritual Gifts, vol. 4, p. 87).37

Compatibilidade com o decálogo. Quando se discute assuntos morais, o problema das consequências surge com frequência. Por exemplo, frequentemente se afirma que caso Raabe não tivesse mentido quando escondeu os espias israelitas, eles teriam sido capturados e executados. Assim, arrazoando-se que os resultados negativos devem ser evitados rigorosamente, Raabe tem sido aplaudida por seu engano. Este “silêncio” da condenação direta de Raabe nas Escrituras significa que tal ação é moralmente aceitável? Em outro exemplo, em parte alguma há qualquer condenação do incesto das filhas de Ló com seu pai (Gênesis 19). Sendo que a filha mais velha teve um filho chamado Moabe, ancestral de Rute, e finalmente de Jesus, dever-se-ia concluir que esse caso de incesto era moralmente correto por causa de sua consequência final – o nascimento de Jesus séculos mais tarde por meio dessa linhagem? Obviamente, tanto nesse caso como no de Raabe, deve-se determinar que tal comportamento é compatível com a eterna lei moral de Deus, a norma do juízo (Tiago 2:12; Eclesiastes 12:13 e 14). Como diz Jesus: “Não temas as coisas que tens de sofrer… Sê fiel até à morte” (Apocalipse 2:10). Simplificando: “Ao decidirmos sobre qualquer procedimento não devemos perguntar se podemos ver que dano disto resultará, mas se está em harmonia com a vontade de Deus” (O Grande Conflito, p. 609 e 610).

Comparação com o caráter de Deus. Uma narrativa desconcertante ocorre em 1Samuel 16:1 a 4. Superficialmente, parece que Deus ordena a Samuel que engane a Saul. Isto é rotulado “na melhor das hipóteses como uma meia-verdade” que teve “autorização divina”.38 O que devemos fazer desta narrativa?

A passagem que precede imediatamente 1Samuel 16 traz o relato da rejeição de Saul por Deus, seguida pela remoção do reino dele (1Samuel 15:26 a 28). Descrevendo a Deus como coerente e fidedigno, Samuel então diz: “Também a Glória de Israel não mente” (1Samuel 15:29). Parece significativo que esta afirmação da veracidade de Deus venha apenas sete versos antes da problemática passagem aqui sob consideração. Como tal, ela forma o antecedente correto e contextual para a compreensão desta narração embaraçosa. Além disso, o testemunho mais amplo do cânon bíblico é que Deus não pode mentir (Tito 1:2; Hebreus 6:18) e não engana (Números 23:19). Isto deve ser levado em conta quando se trata do caráter imutável de Deus, cujas “palavras são verdade” (Malaquias 3:6; 2Samuel 7:28). Sendo que a interpretação da “divindade enganosa” de 1Samuel 16:1 a 4 contradiz as claras afirmações de que é impossível que Deus engane, torna-se claro que compreendemos incorretamente a narrativa.

Surge uma solução satisfatória se a primeira parte de 1Samuel 16:2 for vista como uma interrupção de Samuel no meio das instruções de Deus. Evidentemente, Samuel não era relutante para interromper alguém (veja 1Samuel 15:15 e 17). Deste modo, quando se remove este parêntese as instruções formam uma unidade coerente. Ellen G. White parece apoiar isto.39

Quando se leva em conta o caráter de Deus conforme indicado no contexto imediato e nos contextos mais amplos, então é possível compreender esta narrativa contextualmente como confirmando a norma de verdade de um Deus “que não pode mentir” (Tito 1:2) e de alguém que requer do seu povo a semelhança de seu caráter de veracidade, conduzindo-se verazmente (veja Êxodo 20:16; Levítico 19:11; Provérbios 12:22; Efésios 4:15; Colossenses 3:10, etc.).

Conformidade com o exemplo de Cristo. Alguns têm justificado o uso do engano raciocinando no seguinte sentido: “Mas Abraão e Davi usaram o engano, e eles foram homens tementes a Deus”. Todavia, isto ignora o fato de que o chamado em 1Pedro 2:21 e 22 para “seguirdes os seus passos” identifica Jesus como o único padrão moral para todos. Em Colossenses 2:8, Paulo adverte: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo”.

A poligamia de Gideão e Joás, a prostituição na qual se engajaram Sansão e Judá, a prevaricação de Abraão e Raabe, os homicídios de Moisés e Davi, os enganos de Jacó e José não constituem modelos a serem imitados, embora esses relatos tenham sido preservados para nossa instrução. Além disso, as narrativas bíblicas também nos mostram honestamente como as pessoas fiéis de fato viviam.

Aplicação das Escrituras a problemas não tratados na Bíblia

Um pastor certa vez partilhou a seguinte preocupação: uma das mulheres não-casadas de sua congregação veio a ele para aconselhamento. Ela sentia um forte desejo de cumprir os seus instintos maternais, mas ainda era solteira e seus saudáveis anos de gravidez estavam passando. Não havia nenhum homem adventista não-casado disponível. Sendo que ela não queria adotar ou cometer adultério para ter um filho, seria eticamente apropriado conceber uma criança por meio de inseminação artificial?

Embora não sejam “do mundo” (João 17:16), os cristãos ainda vivem no mundo (João 17:18). Como resultado, muitos são defrontados por uma espantosa lista de dilemas éticos relativamente novos que vão desde drogas abortivas a manipulação zigótica – inclusive engenharia genética, clonagem, abortos que selecionam o gênero, substituição, transplante de órgãos, circuncisão feminina, pornografia infantil, casamento homossexual, suicídio assistido por médico, terrorismo suicida, terrorismo urbano, limpeza étnica (genocídio), superpopulação, fome mundial e inanição generalizada, armas nucleares, guerra química e biológica, a redução dos recursos naturais, extinção das espécies e direitos dos animais. Como deve o cristão reagir a tais dilemas éticos não tratados diretamente nas Escrituras? Várias abordagens têm sido sugeridas, duas das quais exploraremos brevemente.

Desígnio divino para dilemas humanos: uma abordagem corporativa.40 Quando os primeiros cristãos a princípio se defrontaram com um importante problema ético, foi reunido um concílio eclesiástico especial (veja Atos 15). Ideias dessa sessão fornecem métodos que a igreja pode usar ao ajudar os crentes a lidar com as sempre crescentes preocupações morais da vida contemporânea. Reconhecendo a seriedade do problema, esses cristãos do primeiro século basearam suas deliberações em princípios escriturísticos, sob a orientação do Espírito Santo.

Em questão na igreja apostólica estava o assunto da identidade própria dos cristãos, especialmente significativo à luz do acelerado crescimento de conversos de formação pagã. Embora honrando as Escrituras judaicas como procedentes de Deus, como devem os cristãos considerar especificamente as práticas judaicas, tais como circuncisão?

Atos 15 provê um exemplo de como lidar com questões não explicitamente tratadas nas Escrituras. Vários princípios podem ser identificados. Notamos que toda a liderança da igreja estava envolvida em vez de simplesmente permitir que cada crente seguisse sua preferência pessoal. A unidade da Igreja é importante. Foi encorajada a discussão livre em vez da imposição de um decreto monolítico. Observamos que o concílio procurou orientação bíblica. Seguindo uma discussão de vasto alcance, baseado na consideração de passagens bíblicas auxiliares (por exemplo, Atos 15:15 e Amós 9:11 e 12) e as experiências dos apóstolos, o Espírito Santo guiou o concílio a uma conformidade claramente baseada em providências encontradas em Levítico 17 e 18. De fato, eles seguiram a mesma ordem (Atos 15:29). E como eles lidaram com o problema? Conquanto todos os cristãos partilhem das mesmas normas de conduta moral, pela brilhante omissão da circuncisão o concílio inferiu que ela não era mais exigida.

A fim de partilhar a decisão com a igreja de Antioquia, onde o problema havia se tornado divisório, o concílio enviou vários delegados, entre eles Paulo e Barnabé, que, depois de passar considerável tempo com os crentes, prosseguiram levando a decisão a crentes gentios na Síria e na Cilícia (Atos 15:23). Embora referências posteriores deixem claro que o problema da circuncisão permaneceu por algum tempo entre certos cristãos de herança judaica, com a sólida expansão da obra cristã no mundo greco-romano e além, a igreja veio a concordar que a circuncisão não era mais um problema.

Embora o Concílio de Jerusalém tenha ocorrido há quase dois mil anos essa abordagem corporativa para resolver um importante problema moral é relevante ainda hoje. Seu paradigma baseado na Bíblia e guiado pelo Espírito é digno de imitação para “os problemas potencialmente divisórios do nosso tempo”.41

Tomando decisões quando a Bíblia silencia: uma abordagem individual. Obviamente, no ritmo em que estão surgindo novos problemas éticos, não é praticável que a igreja corporativa gaste a maior parte do seu tempo desenvolvendo normas de comportamento à custa de sua função primária de propagar o evangelho da salvação. Tendo em mente a matéria precedente deste capítulo, especialmente a quíntupla tarefa de interpretar a ética bíblica, e as seções que tratam da formação do caráter, absolutos morais transculturais e narrativas bíblicas, o seguinte procedimento passo-a-passo é recomendado como um meio de ler, refletir, arrazoar e reagir a essas preocupações contemporâneas.42

Analise o problema. Para começar, é vital definir claramente a preocupação básica. Por exemplo, no caso já citado concernente à inseminação artificial para mulheres adventistas solteiras, é preciso fazer perguntas, tais como: É este método de concepção uma forma de “adultério”? Que valores e relacionamentos devem ser considerados aqui? Quem são os devidos agentes morais a tomar decisões? A mulher? A igreja? O médico? A comunidade? O governo?

Ideia brilhante para opções. Deus concedeu aos seres humanos a capacidade de raciocinar cuidadosamente, de considerar, imaginar e avaliar procedimentos alternativos, bem como os possíveis efeitos de tais ações. Considere, por exemplo, que melhores procedimentos ou modos de ação poderiam existir para a mulher adventista solteira cumprir seus instintos maternais. Poderia ela tomar um filho adotivo ou adotar uma criança já em necessidade de um lar? Que ação poderia ser um melhor testemunho para a comunidade não-crente: engravidar fora do casamento apenas para cumprir um instinto maternal, ou talvez, altruisticamente prover significativa assistência a uma criança necessitada?

Considere os princípios bíblicos. Quando o cristão consagrado, humilde e devoto busca as Escrituras à procura de orientação, o Espírito Santo provê o discernimento para descobrir princípios relevantes. No que concerne à inseminação artificial, perguntas como as seguintes poderiam ser feitas: Que situação familiar é retratada na Bíblia como o ideal de Deus? É correto ou justo trazer intencionalmente uma criança a este mundo para uma família de um só pai? Seria o custo financeiro deste procedimento um uso adequado da mordomia? Além disso, seria imprudente que o crente individual fizesse esta reflexão isoladamente. A comunidade da fé, operando em uma atmosfera de respeito mútuo e confiança, pode ser útil. Isto incluiria o exame dos resultados da pesquisa de outros cristãos crentes na Bíblia, atuais e ao longo da história.

Decida o que fazer. A esta altura uma decisão com oração precisa ser tomada. Faça perguntas como: Que decisão está mais de acordo com os relevantes princípios bíblicos? Que obstáculos precisam ser vencidos para implementar a decisão? Quando e como seria melhor levar a efeito a ação? Devido às complexidades da vida, o cristão pode às vezes sentir-se ambivalente acerca de certos modos de ação. Todavia, se a decisão claramente está de acordo com a cosmovisão básica global da Escritura, bem como com os princípios bíblicos fundamentais, então o crente pode prosseguir corajosamente, sabendo que Deus proverá para cada necessidade.

Avalie os efeitos. Nenhum ser humano é infalível. Portanto, todos precisam avaliar cuidadosa e honestamente os efeitos da decisão tomada e a ação praticada. Além disso, este processo não deve ser feito em isolamento; a comunidade de crentes pode ser de grande benefício, sendo que eles podem prover uma avaliação muito mais objetiva. A humildade cristã requer que aprendamos das decisões passadas, reconheçamos quaisquer erros, tanto quanto possível retifiquemos quaisquer efeitos negativos, e refinemos, ajustemos, descartemos, ou mesmo invertamos as decisões anteriores se a evidência disponível necessita disto. Sendo que Deus graciosamente continua operando conosco e por meio de nós, até mesmo quando erramos, ninguém precisa desesperar. Para o cristão que está seguro na salvação provida em Cristo, a tomada de decisão ética contemporânea concernente a esses problemas em que a Bíblia silencia é parte de uma experiência frequentemente dolorosa e, contudo, vital na transformação do caráter.

Conclusão

As palavras do profeta Miqueias resumem adequadamente muito do que foi tratado neste capítulo: “O que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Miqueias 6:8). Ou, como Paulo aconselha os crentes a imitar o amoroso e humilde Salvador: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Filipenses 2:5). Finalmente, o desafio ético a cada cristão é: “Ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Coríntios 10:31).

Referências

  1. Miroslav M. Kiš, “Authority, Bible, and Christian Ethics”, Christ in the Classroom: Adventist Approaches to the Integration of Faith and Learning, vol. 26-B (Silver Spring, MD: Institute for Christian Teaching, Department of Education, General Conference of Seventh-day Adventists, 2000), p. 428. Veja também Miroslav M. Kiš, “Teaching Ethics: Why Is It Important? How Should It Be Done?”, Christ in the Classroom (1993), vol.8, p. 150; Christopher Marshall, “The Use of Scripture in Ethics”, Evangelical Review of Theology, 18.3 (julho, 1994): 222.
  2. John Brunt, Decisions: How to Use Biblical Guidelines When Making Decisions (Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1979), p. 83. Veja também, Richard B. Hays, The Moral Vision of the New Testament: Community, Cross, New Creation (New York: Harper Collins Publishers, 1996), p. 296-297.
  3. Veja Larry L. Lichtenwalter, “Living Under the Word: The Pragmatic Task of Moral Vision, Formation, and Action”, Journal of the Adventist Theological Society 9/1-2 (1998): 98.
  4. As três primeiras são um breve sumário e nova declaração feita por Kiš, “Authority, Bible, and Christian Ethics”, p. 446 a 448.
  5. Miroslav M. Kiš, “Christian Lifestyle and Behavior”, Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen, Commentary Reference Series, vol. 12 (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), p. 675.
  6. R. E. O. White, Biblical Ethics, vol. 1 (Exeter, NY: Paternoster Press, 1979), p. 231. Para um tratamento mais elaborado veja seu capítulo 6, “The Son of God and the Life of Imitation” (ênfase do autor).
  7. Esta falsa dicotomia baseia-se em uma interpretação equivocada de Romanos 7:6. O contexto mais amplo mostra que embora Paulo esteja rejeitando a mera obediência externa, ele está pedindo uma submissão à eterna lei de Deus habilitada pelo Espírito. Paulo afirma que “a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Romanos 7:12), e requer “a fé que atua pelo amor” (Gálatas 5:6).
  8. Alguns têm invertido as proscrições do decálogo para ordens positivas; por exemplo, o “Não matarás” tem sido assim reafirmado: “Protegerás a vida humana a qualquer preço”. Esta inversão especulativa do sexto mandamento eleva falsamente a preservação da vida física e pode resultar nos chamados conflitos morais. Todavia, quando lida conforme declarada no decálogo, tal “conflito” não pode surgir. Como desafia Ellen G. White: “Antes a morte que a desonra ou a transgressão da lei de Deus deve ser o lema de todo cristão” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 147). De fato, Ellen G. White escreve que “mesmo a própria vida não deve ser comprada com o preço da falsidade” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 4, p. 336).
  9. Muitas Bíblias inglesas traduzem isto por “miscarriage” [aborto, esp. acidental], que exige apenas uma multa se o feto morre, ao passo que a vida é exigida se a mãe morre (exemplos, NAB, RSV, NEB, JB). Contudo, o texto hebraico mostra que um “nascimento prematuro está em vista aqui em Êxodo 21:22 (pelo qual a multa é cobrada) enquanto que a morte ou do feto ou da mãe exige a morte do ofensor, colocando assim o feto em igualdade com a mãe (por exemplo, veja a nova NASB, NIV, ESV, NET).
  10. De acordo com o seu uso bíblico contextual, o termo grego brephos é definido como “recém-nascido, ou por nascer”, ou mesmo “bebê” (veja At 7:19), por Robert Young, Young’s Analytical Concordance to the Bible, novamente revisada e corrigida (Nashville, TN: Thomas Nelson, 1982). Uma permutabilidade semelhante é óbvia do uso da palavra hebraica yeled (traduzida por “criança” ou “garoto, menino”) em muitos textos do Antigo Testamento (exemplo, Êxodo 21:22; Exôdo 2:6).
  11. Embora muitos vejam as joias como meramente culturais, o estudo de Ángel M. Rodriguez sobre os materiais bíblicos em joalheria e suas implicações morais mostra de outra forma; veja Ángel M. Rodriguez, Jewelry in the Bible: What You Always Wanted to Know but Were Afraid to Ask (Silver Spring, MD: Ministerial Association, General Conference of Seventh-day Adventists, 1999).
  12. Veja Gerhard F. Hasel, “The Distinction Between Clean and Unclean Animals in Lev. 11: Is It Still Relevant?” Journal of the Adventist Theological Society 2/2 (1991): 103-104.
  13. Veja Ron du Preez, Polygamy in the Bible, Adventist Theological Society Dissertation Series, vol. 3 (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society Publications, 1993), 70-81, em que depois de um exame detalhado das interpretações tanto literais quanto idiomáticas da passagem, é tirada a seguinte conclusão: “Levítico 18:18 proíbe distintamente a poligamia”; p. 80.
  14. Veja também, Ezequiel 18:5 a 9; Ezequiel 18:10 a 13; Ezequiel 18:15 a 17; Ezequiel 22:6 a 12; Oseias 4:2; Mateus 5:3 a 10; Romanos 1:24 a 32; Romanos 13:13 e 14; 1Coríntios 5:9 a 11;1Coríntios 6:9 e 10; 1Coríntios 12:20 e 21; Gálatas 5:19 e 20; Gálatas 5:22 e 23; Efésios 4:31 e 32; Efésios 5:3 e 4; Filipenses 4:8; Colossenses 3:5 a 9; Colossenses 3:12 a 14; 2Timóteo 3:2 a 5; Tiago 3:17; 1Pedro 4:3; Apocalipse 9:20 e 21; Apocalipse 21:8; Apocalipse 21:15.
  15. A prática do lava-pés pode ser incluída aqui como uma norma transcultural. Webb observa que, embora o lava-pés fosse uma prática da cultura, “era inconcebível que um senhor lavasse os pés de um escravo. Assim, a inversão de papéis, modelando para líderes um espírito de servo, é um importante componente transcultural do texto. O que nos dá uma acreditável interpretação sobre a aplicação transcultural da passagem não é onde ela tem o apoio de tradição anterior, mas onde ela rompe com o Antigo Testamento e com as culturas adjacentes”. William J. Webb Slaves, Women & Homosexuals: Exploring the Hermeneutics of Cultural Analyses (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2001), p. 204.
  16. Compare, por exemplo, textos que tratam do caráter de Deus (por exemplo, Levítico 19:9; Deuteronômio 32:4), e aqueles que tratam do caráter da lei moral (Romanos 7:12; Salmos 19:7).
  17. Veja Ron du Preez, “A Holocaust of Deception: Lying to Save Life and Biblical Morality”, Journal of the Adventist Theological Society 9/1-2 (1998): 210-216.
  18. Webb, p. 94. Semelhantemente, embora o cabelo comprido servisse como parte do voto de nazireu, mostrando consagração a Deus (Números 6:1 a 21), Paulo fala do cabelo comprido como uma desonra para o homem (1Coríntios 11:14).
  19. Ibid., 105-107.
  20. Veja Ron du Preez, “Epics & Ethics: Vital Biblical Principles for Interpreting Scripture Stories”, Journal of the Adventist Teological Society (10/1-2 (1999): 121-122.
  21. Norman L. Geisler & Paul D. Feinberg, Introduction to Philosophy: A Christian Perspective (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1980), p. 417.
  22. William C. Spohn, What Are They Saying About Scripture and Ethics? (New York: Paulist Press, 1984), p. 5.
  23. Brunt, Decisions, p. 72.
  24. Bruce C. Birch, Let Justice Roll Down: The Old Testament Ethics and the Christian Life (Louisville, KY: Westminster Press, 1991), p. 63.
  25. Brunt, Decisions, p. 67.
  26. Veja, por exemplo, A. O. Nkwoka, “The Church and Polygamy in Africa: The 1988 Lambeth Conference Resolution”, Africa Theological Journal 19 (1990): 147; Douglas E. Welch, “A Biblical Perspective on Polygamy” (dissertação de mestrado, Fuller Theological Seminary, 1970), p. 60.
  27. Walter C. Kaiser, Jr., Toward Old Testament Ethics (Grand Rapids, MI: Zoncervan, 1983), p. 283.
  28. Frank B. Holbrook, “Inspired Writer’s Interpretation of Inspired Writings” em A Symposium on Biblical Hermeneutics, ed. Gordon M. Hyde (Washington, D.C. Biblical Researsch Committee, 1974), p. 127. Várias vezes no Novo Testamento são contadas narrativas do Antigo Testamento; exemplos: Atos 7; Atos 13; Hebreus 11 a 13; 2Pedro 2; Judas. A maneira adequada de interpretar narrativas inspiradas já era evidente nos tempos do Antigo Testamento; veja por exemplo, Deuteronômio 10; Neemias 9; Isaías 7; Oseias 12.
  29. Veja, por exemplo, Gênesis 42:7, 9, 12, 14, 16, 20 e 23; Gênesis 43:29; Gênesis 44:4, 5, 15, 17 e 19.
  30. Norman L. Geisler, Christian Ethics: Options and Issues (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1989), p. 120. Para uma resposta compreensiva a essas teorias éticas hierárquicas, veja Ronald A. G. du Preez, “A Critical study of Norman L Geisler’s Ethical Hierarchicalism” (Th.D. dissertation, University of South Africa, 1997), disponível em James White Library, Andrews University, Berrien Springs, Michigan, USA.
  31. Geisler, Christian Ethics, p. 107.
  32. Além disso, a restrição do pão do templo era uma lei cerimonial e não moral; veja O. Palmer Robertson, “Reflections, on the New Testament Testimony Concerning Civil Disobedience”, Journal of the Evangelical Theological Society 33 (setembro 1940): 334.
  33. Erwin W. Lutzer, The Morality Gap: An Evangelical Response to Situation Ethics (Chicago, IL: Moody Bible House, 1972), p. 77.
  34. N. L. Geisler, The Christian Ethic of Love (Grand Rapids, MI: Zoncervan 1973), p. 79.
  35. Além disso, não há nenhuma evidência de que Obadias fosse um “profeta”, conforme também alegado. Embora o problema acima considerado seja a dúvida se é correto ou não usar o engano, deve-se notar que a ação de Obadias pode ser vista como um corajoso e altruísta ato de desobediência civil, biblicamente justificável (veja, por exemplo, Daniel 1; Daniel 3; Daniel 6; Atos 5:29).
  36. Incidentalmente, não há nada inerentemente imoral no simples ato de ocultar. Isto pode ser observado comparando-se a veracidade de Deus (exemplo, Números 23:19), escondendo Deus as pessoas (exemplo, Jeremias 36:26), bem como uma consideração dos tempos em que Jesus Cristo, nosso impecável salvador, e alguém em que não há “dolo” (1Pedro 2:22), ocultando-se a si mesmo (Marcos 6:30 a 7:24; João 8:59).
  37. Reconhecidamente, alguns textos são difíceis. Por exemplo, 1Reis 11:4 a 6 e 1Reis 15:5 parecem afirmar que Davi foi “sempre” um homem segundo o coração de Deus (exceto quanto ao seu adultério). Contudo, além de não tomar conhecimento do ambiente cronológico daquele primeiro elogio a Davi, tal conclusão ignora o contexto imediato e os contextos mais amplos da comparação frequentemente feita entre os reis de Israel ou Judá e Davi ou Jeroboão. Resumindo, parece que o único problema foi que Davi não adorou ídolos ou promoveu a idolatria, enquanto que Jeroboão o fez (veja, por exemplo, 1Reis 11:2 a 8, e 33; 1Reis 12:25 a 33; 1Reis 14:7 a 16; 1Reis 15:11 a 13; 1Reis 16:25 e 26, e 31).
  38. Richard Higginson, Dilemmas: A Christian Approach to Moral Decision Making (Louisville, KY: Westminster/John Knox, 1988), p. 64.
  39. “Disse o Senhor a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei… Toma contigo um novilho e dize: Vim para sacrificar ao Senhor. Convidarás Jessé para o sacrifício; eu te mostrarei o que hás de fazer, e ungir-me-ás a quem eu te designar. Fez, pois, Samuel o que dissera o Senhor” (Patriarcas e Profetas, p. 637).
  40. Para um estudo mais compreensivo, veja Ron du Preez, “Divine Design for Dealing with Ethical Issues”, Ministry, setembro 1996, 18-20.
  41. Gerald R. Winslow, “Christian and Bioethics: Can the Bible Help?” Christ in the Classroom: Adventist Approaches to the Integration of Faith and Learning, vol. 18 (Silver Spring, MD: Institute of Christian Teaching, Department of Education, General Conference of Seventh-day Adventists, 1997), p. 408.
  42. O processo de cinco passos seguido aqui tem sido um tanto modificado do “Christian Framework for Bioethical Decisions” proposto por Winslaow, p. 407.

Bibliografia selecionada            

Clark, David K. e Robert V. Rakestraw. Reading in Christian Ethics, vol. 1: Theory and Method. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1994.

Preez, Ron du. “Divine Designs for Dealing with Ethic Issues”. Ministry, setembro 1996, 18-20.

Preez, Ron du. “Epics & Ethics: Vital Biblical Principles for Interpreting Scripture Stories”. Jounal of the Adventist Theological Society 10/1-2 (1999): 107-140.

Kainer, Gordon Faith. Hope and Clarity: A Look at Situation Ethics and Biblical Ethics. Mountain View, CA: Pacific Press, 1977.

Kaiser Jr., Walter C. Toward Old Testament Ethics. Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House, 1983.

Kiš, Miroslav M. “Authoriry, Bible, and Christian Ethics.” Christ in the Classroom: Adventist Approaches to the Integration of Faith and Learning. Vol. 26-B. Silver Spring, MD: Institute for Christian Teaching, Department of Education, General Conference of Seventh-day Adventists, 2000, 427-456.

Kiš, Miroslav M. “Christian Lifestyle and Behavior”. Handbook of Seventh-day Adventist Theology. Editado por Raoul Dederen. Commentary Reference Series. Vol. 12. Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000. 675-723.

Lichtenwalter, Larry L. “Living Under the Word: The Pragmatic Task of Moral Vision, Formation and Action”. Journal of the Adventist Theological Society 9/1-2 (1998): 96-113.

Lutzer, Erwin. The Necessity of Ethical Absolutes. Christian Free University Curriculum Series. Grand Rsapids, MI: Zondervan Publishing House, 1981.

McQuilkin, Robertson. An Intoduction to Biblical Ethics. Wheaton, IL: Tyndale House Publishers, 1989.

Tiessen, Terrance. “Toward a Hermeneutic for Discerning Universal Moral Absolutes”. Journal of the Evangelical Theological Society 36/2 (june 1993): 189-207.

Webb, William J. Slaves, Women & Homosexuals: Exploring the Hermeneutics of Cultural Analysis. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2001.

Wilkens, Steve. Beyond Bumper Sticker Ethics: An Introduction to Theories of Right & Wrong. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1995.

Ron du Preez, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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ELLEN G. WHITE E A HERMENÊUTICA

Introdução

Os adventistas do sétimo dia creem que Deus chamou esta Igreja à existência para uma finalidade especial: a proclamação das mensagens dos três anjos de Apocalipse. Os adventistas também creem que a Igreja Adventista do Sétimo Dia é a igreja remanescente de Apocalipse 12:17 a qual Deus graciosamente a supriu com o dom de profecia conforme manifestado na vida e na obra de Ellen G. White.

Ellen G. White compreendeu sua função como a de uma mensageira especial de Deus para a Igreja Adventista do Sétimo Dia,1 conduzindo homens e mulheres à Bíblia como a inspirada e autorizada Palavra de Deus (FLB 293). Por meio dos seus escritos, ela enfatizou que a Bíblia é “a voz de Deus nos falando, tão certamente como se pudéssemos ouvi-la com nossos ouvidos” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 6, p. 393). É “a única regra de fé e doutrina” para a igreja (Fundamentos da Educação Cristã, p. 126).

Sendo que a Igreja não aceita graus de inspiração, deve-se reconhecer que sua inspiração, embora não sua autoridade, é do mesmo tipo de inspiração dos profetas do Antigo e do Novo Testamento. Portanto, quando estamos usando o que ela escreveu, devemos aplicar aos seus escritos os mesmos princípios hermenêuticos utilizados com as Escrituras. Ambos são literatura inspirada e, portanto, devem ser interpretados pelos mesmos princípios. Este capítulo trata não somente da questão de como Ellen G. White usou as Escrituras, mas também provê diretrizes para a interpretação dos escritos de Ellen G. White.

Ellen G. White e a interpretação das Escrituras

Em 1906, Ellen G. White escreveu uma série de vinte breves artigos para The Signs of the Times, intitulados “Nosso Grande Tesouro”, em alguns dos quais ela se refere à maneira como a Bíblia deve ser estudada.2 Vários pensamentos ocorrem repetidamente nesses artigos: (1) A Bíblia deve ser estudada com oração e com reverência (The Signs of the Times, 21/03/1906; 06/06/1906; 19/09/1906; 03/10/1906); (2) a Bíblia é o seu próprio intérprete e, portanto, passagem deve ser comparada com passagem (The Signs of the Times, 21/03/1906; 05/09/1906; 19/09/1906; 03/10/1906). O último ponto é de importância especial na área dos computadores e CD-Rooms, por meio dos quais qualquer um pode tornar-se um perito no estudo de palavras das Escrituras e dos escritos de Ellen G. White sem realmente compreender o que um ou outro está ensinando.

Diretrizes gerais de interpretação

À parte dos artigos mencionados, entremeadas ao longo dos escritos de Ellen G. White estão muitas declarações práticas e criteriosas sobre o estudo da Bíblia. Quando tomadas em conjunto, torna-se evidente que ela possuía uma visão equilibrada concernente à interpretação das Escrituras.3 Conquanto ela rejeitasse os métodos dos eruditos da alta crítica (Atos dos Apóstolos, p. 474; The Review and Herald, 16/03/1897), ela também rejeitava interpretações literais extremadas das Escrituras, bem como de seus próprios escritos.4 Vários princípios gerais para a interpretação das Escrituras aparecem em seus escritos:

Convide o Espírito Santo para guiá-lo no estudo. Ellen G. White era uma crente inabalável na inspiração das Escrituras. Portanto, para compreendê-la corretamente, acreditava ela, precisamos do mesmo Espírito que a inspirou. “Um verdadeiro conhecimento da Bíblia só se pode obter pelo auxílio daquele Espírito pelo qual a Palavra foi dada” (Educação, p. 189).

Esteja disposto a obedecer à verdade. Quem estuda as Escrituras deve estar disposto a obedecer às verdades nelas encontradas. “Sempre que os homens não estão procurando, em palavras e ações, estar em harmonia com Deus, então, por mais instruídos que possam ser, estão sujeitos a errar em sua compreensão das Escrituras, e não é seguro confiar em suas explanações” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 705).

Seja receptivo. O estudante da Bíblia deve ser receptivo, disposto a renunciar a pontos de vista previamente mantidos. “Se examinais as Escrituras para justificar opiniões próprias, nunca alcançareis a verdade. Pesquisai para aprender o que o Senhor diz” (Parábolas de Jesus, p. 112). Embora Ellen G. White fosse muito clara sobre a correção das colunas ou marcos do adventismo, ela era receptiva a novas verdades encontradas nas Escrituras, e repreendia aqueles que se recusavam a considerar que algumas interpretações das Escrituras mantidas pelos adventistas do sétimo dia podiam estar em erro.

“Não há desculpa para ninguém que assuma a posição de que não há mais verdade a ser revelada, e que todas as nossas interpretações das Escrituras estão isentas de erro. O fato de que certas doutrinas têm sido mantidas como verdade por muitos anos por nosso povo não é uma prova de que nossas ideias são infalíveis. O tempo não transformará o erro em verdade, e a verdade tem condições de ser íntegra. Nenhuma doutrina verdadeira perderá nada por minuciosa investigação” (Counsels to Writers and Editors, p. 35).

Acautele-se contra interpretações extremadas. Nos primeiros anos de nossa denominação, Ellen G. White com frequência teve de enfrentar o fanatismo na igreja. Posteriormente, quando a mensagem de saúde foi introduzida na Igreja, certas pessoas adotaram extremos em sua compreensão do que a mensagem da saúde estava tentando realizar.5 Ellen G. White foi alertada e escreveu: “Se os que advogam a reforma de saúde levam a questão a extremos, não será de admirar que o povo se aborreça… Esses extremistas causam, em poucos meses, mais dano do que podem desfazer em toda uma vida. Empenham-se em uma obra que Satanás se apraz em ver prosseguir” (Conselhos Sobre Saúde, p. 153 e 154). Com respeito à reforma da saúde, “é preferível andar um passo aquém do limite, do que ir um passo além dele. E se houver algum erro, deve este estar do lado das pessoas” (Conselhos Sobre Saúde, p. 438).

Trabalhe junto com pessoas de experiência. Ao longo de sua vida, Ellen G. White defendeu o princípio bíblico do aconselhamento (Provérbios 11:14). Tratando do assunto da nova luz, disse ela: “Que ninguém seja confiante em si mesmo, como se Deus lhe tivesse dado luz especial acima de seus irmãos… a única segurança para qualquer um de nós está em não receber nenhuma nova doutrina, nenhuma nova interpretação das Escrituras sem primeiro submetê-la a irmãos de experiência. Ponha-a diante deles em espírito humilde e dócil, com fervorosa oração; e se eles não virem nela nenhuma luz, renda-se ao seu julgamento, porque ‘na multidão de conselheiros há segurança’” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 291 e 293).

Use o bom senso. Em todos os caminhos da vida, Ellen G. White enfatizou a importância do bom senso. “Precisamos ser guiados pela genuína teologia e o bom senso”, escreveu ela (Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes, p. 257). Isto também é verdade na interpretação das Escrituras. Por exemplo, quando lemos “não furtarás” em Êxodo 20:15, muitos de nós tomam isto literalmente. Significa precisamente o que diz: “Não furtarás”. Não dizemos: “Mas às vezes é correto furtar”. Sabemos que isto significa: “Não furtarás em nenhuma ocasião”. Todavia, quando lemos Mateus 5:29 – “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno”, o bom senso nos diz que isto não deve ser tomado literalmente. Compreendemos que Jesus não está realmente falando acerca do arrancar dos olhos. Ele está se referindo aos nossos pensamentos pecaminosos. Não está pedindo que mutilemos nosso corpo, mas que controlemos nossos pensamentos. O bom senso muitas vezes nos ajudará a evitar interpretações extremadas. Tomados em conjunto, estes princípios proveem um excelente fundamento para uma interpretação cheia do Espírito das mensagens de Deus nas Escrituras e nos escritos de Ellen G. White. Contudo, estas são apenas diretrizes gerais para o intérprete. Princípios mais específicos são necessários para lidar com o texto bíblico.

Princípios específicos de interpretação

Os processos hermenêuticos seguidos hoje por exegetas não eram comumente seguidos no tempo de Ellen G. White. Todavia, em seus escritos ela recomendou vários princípios específicos para a interpretação da Escritura.

As Escrituras interpretam-se a si mesmas. A auto interpretação das Escrituras era um dos marcos da Reforma. Quando a Igreja Católica Romana insistiu que somente ela podia interpretar corretamente as Escrituras, os Reformadores argumentaram que as Escrituras são o seu próprio intérprete. Isto significa que a Bíblia, como um todo, governa a interpretação de qualquer parte de si mesma; portanto, nenhuma parte das Escrituras pode ensinar algo que seja contrário ao ensino de toda a Bíblia. Ellen G. White afirmou repetidamente este princípio. As Escrituras são o seu próprio intérprete.

“A Bíblia é seu próprio expositor. Uma passagem será a chave que descerrará outras passagens, e deste modo haverá luz sobre o significado oculto da Palavra. Comparando diversos textos que tratam do mesmo assunto e examinando sua relação em todo o sentido, tornar-se-á evidente o verdadeiro significado das Escrituras” (Fundamentos da Educação Cristã, p. 187).

Embora reconhecesse as diferenças no tempo, no ambiente e nas características individuais entre os autores bíblicos, Ellen G. White percebeu uma unidade global nas Escrituras. Portanto, ela aconselhou que os textos ou passagens diferentes que falam do mesmo tema devem ser reunidos para prover um quadro completo do que a Bíblia tem a dizer sobre um determinado assunto.

O contexto histórico. Ellen G. White reconheceu a importância do ambiente histórico e cultural de uma passagem. “Compreender os costumes dos que viveram nos tempos bíblicos, das localidades, dos tempos e ocorrências, é conhecimento prático”, disse ela; “pois isso ajuda a tornar claras as imagens da Bíblia, e a fazer sentir a força das lições de Cristo” (Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes, p. 518). Ela também entendia que o significado que o texto tinha para os receptores originais era um pré-requisito para uma compreensão mais profunda do texto hoje. “Compreendendo o que significavam as palavras de Jesus para os que as ouviam, nelas podemos distinguir uma nova vida e beleza, recolhendo para nós mesmos suas mais profundas lições” (O Maior Discurso de Cristo, p. 1). O fato de que diferentes escritores escreveram em diferentes estilos foi visto como algo positivo (Publishing Ministry, p. 100).

Por causa de sua compreensão de inspiração como inspiração do pensamento em vez de inspiração verbal, Ellen G. White viu a diversidade e as diferenças entre os escritores bíblicos como algo bom e útil, em contraste com outros que as consideravam como uma fonte de problemas e de dificuldades.

O contexto literário. O contexto literário se refere ao texto imediatamente precedente e, em seguida, a um texto ou passagem sob investigação. A interpretação de um texto sem atenção ao contexto imediato com frequência leva a conclusões errôneas. Ellen G. White estava bem ciente da importância de prestar atenção ao contexto. Portanto, escreveu ela: “Com o intuito de sustentar doutrinas errôneas ou práticas anticristãs, alguns apanham passagens das Escrituras separadas do contexto, citando talvez a metade de um simples versículo como prova de seu ponto de vista, quando a parte restante mostraria ser bem contrário o sentido” (O Grande Conflito, p. 521). Os intérpretes das Escrituras devem sempre acautelar-se para não torcer um texto ou passagem fora do seu contexto literal. Muitas heresias ou falsos pontos de vista têm surgido nas igrejas cristãs porque pouca atenção tem sido dada ao contexto imediato.

O significado das palavras. As Escrituras são dadas na linguagem da raça humana, que é imperfeita. As palavras assumem vários significados, dependendo do contexto. Ellen G. White reconheceu isto e aconselhou os estudantes da Bíblia a prestar cuidadosa atenção ao significado das palavras e dos símbolos, a fim de compreender seus “profundos significados espirituais” (SSW, 1º de janeiro, 1891). Ela enfatizou que “a linguagem da Bíblia deve ser explicada de acordo com o seu óbvio sentido, a menos que seja empregado um símbolo ou figura” (O Grande Conflito, p. 599). O “óbvio sentido” se refere ao significado claro de uma palavra em seu contexto. Em Filipenses 1:22 a 24, por exemplo, a palavra “carne” se refere ao corpo físico; em Romanos 8:12 e 13, porém, onde “carne” está em contraste com “Espírito”, ela tem o significado de desejos carnais. Se forem usados símbolos, ela aconselhou que eles sejam explicados a partir da própria Bíblia. Falando de alguns cristãos que interpretam figuras e símbolos para convir à sua fantasia, diz ela que eles fazem isto “com pouca consideração para com o testemunho das Escrituras como seu próprio intérprete, e então apresentam suas fantasias como o ensino da Palavra de Deus” (Spirit of Prophecy , vol. 4, p. 344).

As interpretações de textos bíblicos

Os textos bíblicos podem ser usados de maneiras diferentes. O intérprete deve usar o texto exegeticamente, teologicamente, ou homileticamente.6 O uso exegético das Escrituras concentra-se no que o texto significa para o leitor original. Desse modo, quando fizer exegese de um texto, o intérprete deve investigar as circunstâncias históricas que levaram à escrita do texto, a quem ele foi dirigido e o que o autor realmente queria dizer.

Interpretar teologicamente um texto significa procurar as implicações que o texto tem para com o mais amplo esquema teológico contido nas Escrituras. O texto é visto não apenas em seu contexto literário e histórico, mas também no contexto da revelação divina, como um todo. Por exemplo, as palavras “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, em Salmos 22:1, foram originalmente faladas por Davi algum tempo durante o período de sua vida quando, em desespero, ele estava fugindo de Saul (1Samuel 23:25). Exegeticamente, portanto, estas palavras se referem à experiência de Davi; mas sendo que Davi era um tipo de Cristo, Jesus cita estas palavras em sua experiência na cruz (Mateus 27:46).

Usar um texto homileticamente, ou pastoralmente, significa aplicar a linguagem de um texto a uma situação moderna, dos dias atuais. Os pregadores frequentemente usam textos de uma maneira pastoral para mover pessoas ação em um ambiente de adoração. Eles aplicam a mensagem de um texto bíblico a um problema ou situação atual embora a mensagem do texto em seu contexto histórico fosse dirigida a uma situação diferente.

Por exemplo, em Marcos 1:17, Jesus diz a Simão e a André: “Vinde após Mim, e Eu vos farei pescadores de homens”. Exegeticamente, o texto se aplica a Simão e a André, sendo que as palavras foram dirigidas a eles, mas homileticamente pode ser aplicada a todo cristão. Jesus quer que todos sejam “pescadores de homens”. Ambos os empregos são legítimos, mas devemos distinguir entre eles; qualquer ensino ou doutrina das Escrituras deve se basear em uma cuidadosa exegese do texto, não em uma aplicação homilética do mesmo.

O uso das Escrituras por Ellen G. White

Com frequência Ellen G. White usou homileticamente as Escrituras.7 Ela era aprofundada na linguagem da Bíblia, e sempre que falava ou escrevia sobre um assunto, usava a linguagem e os textos bíblicos para transmitir a mensagem que havia recebido.

Alguns eruditos adventistas acham que temos uma situação semelhante no Novo Testamento, em que os escritores do evangelho usam textos do Antigo Testamento aparentemente fora do contexto. Por exemplo, Raymond F. Cottrell cita o uso que Mateus faz de Isaías 7:14 – “eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel”, em Mateus 1:23, e a sua aplicação de Oseias 11:1 – “do Egito chamei o meu filho”, em Mateus 2:15, e acrescenta o uso de Paulo de Deuteronômio 25:4, “não atarás a boca ao boi quando debulha”, em 1Coríntios 9:9 e 10, como evidência de que os escritores bíblicos usavam textos da Bíblia “de uma maneira que pode parecer estar fora de harmonia com o seu contexto”.9 Richard M. Davidson, porém, argumentou que estes textos, que parecem ser usados fora do contexto, estão realmente apontando para o contexto mais amplo dos textos do Antigo Testamento, e esse contexto mais amplo está em harmonia com a aplicação neotestamentária destes textos.10

Um caso que estabelece precedente

Escreve Paulo em 1Coríntios 2:9: “Mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam”. Escreveu Ellen G. White: “Os que aceitam os ensinos da Palavra de Deus não serão totalmente ignorantes com respeito à morada celestial. E, contudo, “as coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que O amam” (1Coríntios 2:9). A linguagem humana não é adequada para descrever a recompensa dos justos. Será conhecida apenas dos que a contemplarem. Nenhum espírito finito pode compreender a glória do Paraíso de Deus” (O Grande Conflito, p. 675).

Nesta passagem, ela claramente aplica 1Coríntios 2:9 à Nova Terra. Quando, porém, estudamos o texto em seu contexto, descobrimos que Paulo não está falando sobre a Nova Terra, mas acerca da salvação (1Coríntios 2:1 a 18). Nos versos 1 a 5 Paulo fala a respeito da sabedoria do homem. Ele chama a isto de sabedoria humana no verso 4. Então, nos versos 6 e 7, ele fala acerca da sabedoria de Deus “em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória”. A sabedoria oculta, “o mistério” que Deus ordenou antes dos séculos, é Jesus e o plano da salvação (Colossenses 2:2; 1Timóteo 3:16). E este maravilhoso mistério nenhum dos poderosos deste século conheceu, diz Paulo, “porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Coríntios 2:8). Então segue-se a passagem sob consideração. Diz Paulo no verso 10: “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus”. O que Deus revelou aos apóstolos por meio do Seu Espírito? O Céu? Não. Do contexto aprendemos que o que nenhum olho tinha visto nem ouvido era o maravilhoso plano da salvação, que, é claro, inclui o Céu; mas o enfoque em 1Coríntios 2:9 é sobre a cruz, não sobre o Céu. Para sermos fiéis às Escrituras, devemos primeiramente permitir que o texto diga o que o escritor pretendia que ele dissesse.

Por que, então, Ellen G. White aplicou a linguagem do texto à Nova Terra? Porque o fraseado dele também se ajusta à Nova Terra. O uso homilético do texto permitiu-lhe aplicar a passagem com referência à Terra feita nova. A mensagem que ela deveria comunicar à Igreja de Deus era que Deus tem algo maravilhoso preparado para seu povo, algo além da nossa imaginação. Para fazer isto, sob inspiração, ela preferiu usar o fraseado de 1Coríntios 2:9.

É importante notar que embora Ellen G. White muitas vezes usasse homileticamente 1Coríntios 2:9, ela também explicou exegeticamente o texto. No livro O Desejado de Todas as Nações, Ellen G. White fala sobre a confissão de Pedro em Mateus 16:16 de que Jesus é o Messias.

“A verdade confessada por Pedro é o fundamento da fé do crente. É aquilo que o próprio Cristo declarou ser a vida eterna. A posse desse conhecimento, no entanto, não oferece motivo para nos gloriarmos a nós mesmos. Não fora por meio de sabedoria ou bondade do próprio Pedro que ele lhe havia sido revelado… Unicamente o Espírito de adoção nos pode revelar as coisas profundas de Deus, as quais “o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem”. Deus no-las revelou pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus” (1Coríntios 2:9 e 10). “O segredo do Senhor é para os que o temem” (Salmos 25:14); e o fato de Pedro ter discernido a glória de Cristo era uma prova de que fora ensinado ‘por Deus’” (O Desejado de Todas as Nações, p. 412).

Aqui, ela aplica 1Coríntios 2:9 a Jesus como o salvador do mundo, que é o fundamento da fé de todo crente. Em outras palavras, ela reflete corretamente o significado original que o texto possuía quando Paulo o escreveu.

Interpretações homiléticas

Quando lemos os livros de Ellen G. White, deparamos com muitos outros exemplos em que ela usa a linguagem de um texto ou passagem bíblica para expressar a mensagem que Deus lhe deu para a Igreja. O fato de usar ela esses textos não significa que desse modo ela os está interpretando exegeticamente, isto é, explicando o que o autor queria dizer. O significado que o autor original pretendia que o texto tivesse pode ser muito diferente da mensagem que Ellen G. White está transmitindo por meio do uso que faz de sua linguagem. A compreensão desta diferença torna-se importante quando algumas pessoas tentam usar seus escritos como a última palavra sobre o significado de um texto específico.

Alguns adventistas do sétimo dia pensam nos escritos de Ellen G. White como um comentário inspirado sobre a Bíblia. Se for assim, é vital reconhecer que em seus escritos encontramos aplicações homiléticas de passagens bíblicas, além de comentários exegéticos. Conquanto haja muitas joias exegéticas em seus livros, principalmente na série Conflito dos Séculos, a parte principal de seus escritos contém a mensagem de Deus para a igreja remanescente, não discursos exegéticos sobre o significado de textos bíblicos. Isto torna-se muito evidente nestes exemplos:

João 5:39. Na versão King James o texto bíblico diz: “Examinai as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam”. Na NKJV e em todas as traduções modernas, a primeira parte do texto diz: “Vós examinais as Escrituras”. Embora o grego ereunate possa ser um indicativo presente ou um imperativo presente, o contexto claramente favorece o significado indicativo: “Vós estudais as escrituras diligentemente, supondo que nelas tendes vida eterna; seu testemunho aponta para mim”. Muitos judeus acreditavam que o conhecimento da lei lhes asseguraria vida eterna. Mas Jesus lembra-lhes que as Escrituras em que eles pensavam encontrar vida eterna eram os próprios escritos que testificavam dele.

Ellen G. White frequentemente usou a frase “examinai as Escrituras” como uma admoestação ao estudo da Bíblia. “Pela pesquisa cuidadosa e precisa de sua palavra obedeceremos à injunção de Cristo: ‘Examinai[s] as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim’. Este exame habilita o estudante a observar atentamente o divino modelo, porque elas testificam de Cristo” (CSW 17, também p. 21 e 29).

Em O Desejado de Todas as Nações, porém, narrando a situação conforme a encontramos em João 5, Ellen G. White usa uma tradução diferente e confere ao texto o seu significado exegético.

Em lugar de se desculpar do ato de que se queixavam, ou explicar o próprio desígnio em assim fazer, Jesus se voltou contra os líderes, e o acusado tornou-se acusador. Repreendeu-os pela sua dureza de coração e ignorância das Escrituras. Declarou que tinham rejeitado a Palavra de Deus, da mesma maneira que o haviam feito àquele a quem Deus enviara. “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de Mim testificam’ (João 5:39)” (O Desejado de Todas as Nações, p. 211).

Este é o significado que o texto tinha em seu contexto original. Um provérbio rabínico declarava que “Se um homem . . . ganhou para si mesmo as palavras da Lei, ele ganhou para si mesmo a vida no mundo vindouro”.11 Jesus estava reagindo a esta espécie de superstição. Ao mesmo tempo, Ele estava corrigindo os fariseus por sua obstinada rejeição dele.

Colossenses 2:20 a 22. “Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem”.

Aqui, Paulo fala de um ascetismo insalubre que desvia a atenção de Cristo. Nos versos 21 e 22 ele dá um exemplo dessas doutrinas de homens: “Não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro”. A referência é a vários requisitos humanos que esses ensinadores recomendavam com insistência aos cristãos de Colossos. Ellen G. White usa as palavras de Colossenses 2 e as coloca em um contexto completamente diferente, aplicando a linguagem do texto de uma maneira positiva.

“Quanto ao chá, ao café, fumo e bebidas alcoólicas, a única atitude segura é não tocar, não provar, não manusear. A tendência do chá, café e bebidas semelhantes é no mesmo sentido que as bebidas alcoólicas e o fumo, em alguns casos o hábito é tão difícil de vencer como é para um bêbado o abandonar os intoxicantes” (A Ciência do Bom Viver, p. 335).

O que ela diz é uma parte importante de nossa reforma da saúde, mas ela não está explicando o que Paulo estava dizendo aos colossenses.

A lição que precisamos aprender destes exemplos é a de que, quando citamos Ellen G. White em apoio de uma interpretação específica de um texto, devemos ter certeza de que ela está de fato usando o texto exegeticamente e não de alguma outra maneira. Escreveu Raoul Dederen: “Como intérprete da Bíblia, a função mais característica de Ellen G. White era a de um evangelista – não um exegeta, nem um teólogo, como tal, mas um pregador e um evangelista… O modo profético e exortativo era mais característico dela do que o exegético… O povo a quem ela pregava – ou escrevia – era mais o objeto de sua atenção do que o povo específico a quem os escritores bíblicos individuais se dirigiam”.12

Talvez, a esta altura seja apropriada uma nota de precaução. O fato de que Ellen G. White usou a linguagem da Bíblia para transmitir a mensagem de Deus à igreja remanescente não dá aos modernos pregadores adventistas licença para usar os textos bíblicos fora do contexto em qualquer ocasião que eles acharem que o fraseado de um texto bíblico se ajustaria satisfatoriamente ao seu ponto particular. Como profetisa, Ellen G. White escreveu sob inspiração divina, mas, tanto quanto sabemos, não temos no tempo presente um profeta dos dias modernos. O uso homilético ou pastoral de um texto deve ser tratado cuidadosamente. Antes de usar um texto deste modo, o pregador deve certificar-se de que ele, juntamente com a congregação, primeiro tem compreendido o significado do texto. Só então deve ser feita uma aplicação homilética ou pastoral. E esta aplicação deve basear-se na exegese e na mensagem original da passagem.

Interpretação dos escritos de Ellen G. White

Tendo considerado a maneira como Ellen G. White usava as Escrituras, nos voltamos agora para o uso de seus escritos em nossa Igreja. Na interpretação das Escrituras, o primeiro problema com o qual o exegeta deve lutar são as línguas antigas. Com os escritos de Ellen G. White não há necessidade de vencer tais obstáculos. Exceto quanto a palavras arcaicas ocasionais aqui e ali, todos os seus escritos podem ser compreendidos prontamente por aqueles que têm um inglês fluente. Os que leem seus livros traduzidos em outras línguas geralmente leem o que ela escreveu em uma linguagem corrente e atualizada.

Muita controvérsia e equívocos na Igreja concernentes às suas obras literárias podem ser evitados se, na interpretação de seus escritos, seguirmos sempre as diretrizes mencionadas a seguir.

Considere o contexto histórico

Na Conferência Geral de 1901, em Battle Creek, Ellen G. White, em seu discurso de abertura em 2 de abril, falou da necessidade de reorganizar a Associação Geral. “Tem de haver mais do que um ou dois ou três homens para considerar todo o vasto campo”, disse ela. “Deus não pôs nenhum poder real em nossas fileiras para controlar este ou aquele ramo da obra. A obra tem sido grandemente restringida pelos esforços para controlá-la em cada ramo”. Ela exigiu uma completa reorganização: “poder e força devem ser trazidos para as comissões que são necessárias” (LDE 53).

O que havia acontecido? Olhando para o desenvolvimento de nossa Igreja durante as últimas poucas décadas do século dezenove, observamos que a Comissão Executiva da Associação Geral, começando com três membros em 1863, tinha aumentado para treze em 1899; mas muitos desses homens estavam vastamente espalhados e não se encontravam frequentemente para uma reunião completa. Seis dos treze homens estavam dispersos pela América do Norte, e dois residiam no estrangeiro. Isto deixava cinco membros da Comissão Executiva da Associação Geral residentes em Battle Creek. Esses, com o secretário e o tesoureiro da Associação Geral, que não eram membros da Comissão, “conduziam as responsabilidades do dia-a-dia do funcionamento da Igreja”.13

Para piorar as coisas, O. A. Olsen, eleito presidente na Conferência Geral de 1888 em Mineápolis, havia escolhido A. R. Henry e Harmon Lindsay como seus principais consultores. Ellen G. White o advertiu repetidamente contra o conselho desses homens (Ellen G. White – 1888 General Conference Materials, p. 1421; Manuscript Releases, vol. 17, p. 181). “Por causa de suas fortes personalidades, eles eram capazes de influenciar as várias juntas e comissões para seguir sua opinião”.14 Em 1891, Ellen G. White escreveu: “Muitas das posições tomadas, divulgadas como a voz da Associação Geral, têm sido a voz de um, dois, ou três homens que estavam desencaminhando a Conferência” (Manuscript Releases, vol. 17, p. 167). Dez anos depois, em seu discurso de abertura na Conferência Geral de 1901, disse ela aos delegados: “Que esses homens devem estar em um lugar sagrado, para serem como a voz de Deus ao povo – como uma vez acreditamos ser a Associação Geral –, isto é passado. O que queremos agora é uma reorganização” (General Conference Bulletin, 03/04/1901, par. 25).

Seu apelo não passou despercebido. Na sessão da Associação Geral de 1901, foi efetuada uma reorganização que corrigiu grandemente o problema do “poder real”.

Naquele mesmo ano, seu filho Edson, que havia incorrido em dificuldades com a casa publicadora Review and Herald antes da Conferência Geral de Mineápolis em 1888, procurou compensação por parte da liderança da Igreja. Ao apresentar o seu caso, ele citou dos escritos de sua mãe anteriores a 1901. Ao ouvir sobre isto, ela escreveu a Edson:

“Estou outra vez muito oprimida ao vê-lo selecionando palavras dos escritos que lhe enviei, e usando-as para forçar decisões que os irmãos não consideram com clareza. Recebi cartas do Pastor Daniells e do Pastor Kilgore pedindo-me que lhes envie esclarecimento imediatamente, se eu tenho alguma luz com referência aos pontos que você citou de minhas cartas. Seu procedimento teria sido o procedimento a ser seguido se nenhuma mudança tivesse sido feita na Associação Geral. Mas foi feita uma mudança, e muito mais mudanças serão feitas e grandes progressos serão vistos. Nenhuma decisão deve ser forçada” (Manuscript Releases, vol. 19, p. 146).

A situação havia mudado, e ela não mais queria que suas declarações anteriores a 1901 se aplicassem à nova situação na Associação Geral. A lição de tudo isto é que precisamos olhar para o contexto histórico, o tempo e o lugar em que uma determinada declaração foi escrita. O que ela escreveu tratando de uma situação específica do seu tempo não pode ser transformada em uma declaração universal aplicável hoje, a menos que haja motivos válidos para isto.

Estude o contexto imediato

O contexto imediato se refere ao que vem antes e ao que vem depois de uma determinada declaração. Ao que está ela se referindo no parágrafo ou capítulo do qual uma declaração é tirada?

No livro Parábolas de Jesus, Ellen G. White declara que “nunca se deve ensinar aos que aceitam o salvador, conquanto sincera sua conversão, que digam ou sintam que estão salvos” (Parábolas de Jesus, p. 155). Muitos cristãos então e agora creem na doutrina biblicamente insustentável de que “uma vez salvo, salvo para sempre”. Ellen G. White se opôs claramente a este ensino. Diz ela, no contexto:

“Nada é tão ofensivo a Deus nem tão perigoso para o espírito humano como o orgulho e a presunção. De todos os pecados é o que menos esperança incute, e o mais irremediável. A queda de Pedro não foi repentina, mas gradual. A confiança em si mesmo induziu-o à crença de que estava salvo, e desceu passo a passo o caminho descendente até negar a seu Mestre. Jamais podemos confiar seguramente em nós mesmos ou sentir, aquém do Céu, que estamos livres da tentação. Nunca se deve ensinar aos que aceitam o Salvador, conquanto sincera sua conversão, que digam ou sintam que estão salvos. Isso é enganoso. Deve-se ensinar cada pessoa a acariciar esperança e fé; mas, mesmo quando nos entregamos a Cristo e sabemos que Ele nos aceita não estamos fora do alcance da tentação” (Parábolas de Jesus, p. 154 e 155).

O contexto deixa claro que ela está tratando do problema da confiança em si mesmo e das tentações após a conversão. Sendo que nunca estamos seguros contra as tentações, jamais devemos afirmar que não podemos cair, que estamos salvos e, portanto, livres da tentação; mas isto não significa que não podemos ter certeza da salvação; dia após dia, podemos ter a confiança de que em Jesus estamos salvos (1João 5:12 e 13).

Estude o contexto mais amplo

O grande contexto se refere a outras declarações que Ellen G. White escreveu sobre um assunto específico. Para ilustrar este princípio, examinaremos a mensagem adventista de saúde, que, em grande parte, baseia-se nas visões de Ellen G. White sobre saúde. Ela escreveu profusamente sobre o assunto, e, frequentemente, algumas de suas declarações são separadas do contexto e mal aplicadas. Por causa da vasta quantidade de material sobre este tema em seus escritos, precisamos considerar tudo o que ela escreveu sobre um problema específico. Sobre o problema do consumo de carne, por exemplo, ela tem declarações ressonantes muito absolutas, mas também declarações moderadas que precisam ser consideradas antes de se tirar conclusões.

Em 1903, Ellen G. White fez o que parecem ser declarações muito absolutas. Escreveu ela concernentemente à nossa dieta: “Verduras, frutas e cereais, devem constituir nosso regime. Nem um grama de carne deve entrar em nosso estômago. O comer carne não é natural. Devemos voltar ao desígnio original de Deus ao criar o homem” (Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 380). Lendo esta declaração por si mesma, alguém chegaria à conclusão de que sob nenhuma circunstância devemos comer carne. Todavia, algumas páginas mais adiante no livro, encontramos uma declaração moderada do ano de 1890 sobre o mesmo assunto.

“Onde é possível obter bastante leite bom e frutas, raro há uma desculpa para comer alimento animal; não é necessário tirar a vida de qualquer das criaturas de Deus para suprir nossas necessidades comuns. Em certos casos de doença ou exaustão, poderá ser considerado melhor usar alguma carne, mas grande cuidado deve ser tomado para adquirir carne de animais sadios. Tem chegado a ser questão muito séria se é seguro usar de algum modo alimento cárneo nesta época do mundo. Melhor nunca usar carne, do que usar a carne de animais que não sejam sadios. Quando não me foi possível obter o alimento de que necessitava, comi um pouco de carne algumas vezes; mas estou ficando cada vez mais atemorizada de fazê-lo” (Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 394).

As circunstâncias moderadas a que se referia são casos de enfermidade ou quando outro alimento não estava prontamente disponível. Ela mesma, conforme observou, tinha, algumas vezes, comido carne. Portanto, em uma declaração muito equilibrada feita perante os delegados na Conferência Geral, em 1909, ela disse:

“Não demarcamos alguma linha precisa a ser seguida na dieta; mas afirmamos que em países onde há frutas, cereais e nozes em abundância, o alimento cárneo não é o alimento correto para o povo de Deus. Tenho sido instruída de que o alimento cárneo tem a tendência de animalizar a natureza, roubar homens e mulheres do amor e simpatia que eles devem sentir por todos, e dar às paixões inferiores o controle sobre as faculdades mais elevadas do ser. Se o comer carne já foi saudável, não é seguro agora. Cânceres, tumores e doenças pulmonares são grandemente causados pelo consumo da carne. Não devemos fazer da carne uma prova de comunhão, mas devemos considerar a influência que crentes professos que usam carne têm sobre outros” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 9, p. 159).

Certamente nosso alvo deve ser uma dieta vegetariana, mas nunca devemos fazer disto uma prova de comunhão. Em algumas circunstâncias, uma dieta que inclua alguma carne pode até mesmo ser a melhor, mas isto nunca deve servir como uma desculpa para continuar comendo carne quando não há real necessidade. “O regime cárneo não é o mais saudável, e todavia eu não tomaria a atitude de que ele deva ser rejeitado por toda pessoa. Os que têm órgãos digestivos fracos, podem muitas vezes comer carne, quando não lhes é possível ingerir verduras, frutas e mingaus” (Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 394 e 395).

Quando olhamos para a coleção total do que ela escreveu sobre um dado assunto, surge uma descrição equilibrada que é inestimável para todo cristão que leva a sério sua religião, mas principalmente para os adventistas do sétimo dia a quem Deus chamou para ser suas testemunhas nestes últimos dias.

Procure princípios

Os profetas transmitem a verdade divina em princípios ou aplicações. Os princípios são universais e se aplicam a todas as pessoas, em todos os lugares e em todos os tempos. As aplicações de princípios se referem a situações específicas. Elas podem mudar com as diferentes circunstâncias e parecer diferentes em variadas culturas e locais. “O que pode ser dito dos homens sob certas circunstâncias, não pode ser dito deles sob outras circunstâncias” (Testemunhos Para a Igreja, vol. 3, p. 470). Vários exemplos dos escritos de Ellen G. White vem prontamente à memória.

Ensinando as moças a cavalgar. Em 1903, em um tempo em que a disponibilidade geral de carros era ainda uma coisa do futuro, escreveu Ellen G. White: “E se, do outro lado, as moças pudessem aprender a arrear, cavalgar, usar a serra e o martelo, assim como o ancinho e a enxada, estariam melhor adaptadas a enfrentar as emergências da vida” (Educação, p. 216 e 217). O princípio nesta declaração é que as moças estariam “melhor adaptadas a enfrentar as emergências da vida”. Aplicado ao nosso tempo ele poderia significar que as moças deveriam aprender a dirigir e a cuidar de um carro.

A mania das bicicletas. Em 1895, Ellen G. White estava na Austrália. Em uma visão, foi-lhe dado um panorama dos eventos em Battle Creek. Entre as cenas que lhe foram mostradas havia uma que envolvia bicicletas usadas para corridas. Pelo final do século dezenove, a bicicleta estava suficientemente desenvolvida para sustentar uma moda que fazia dela o brinquedo de um homem rico. O custo de uma bicicleta era de U$ 150, um investimento comparável hoje a um automóvel. As pessoas estavam hipotecando sua renda por meses adiantados para comprar o que era na época um dispendioso artigo de luxo.

Em 6 de fevereiro de 1896, ela escreveu da Austrália aos irmãos de Battle Creek dizendo, entre muitas outras coisas: “Do dinheiro despendido em bicicletas e roupas, e outras coisas desnecessárias, deve-se dar contas. Como povo de Deus, deveis representar a Jesus, mas Cristo se envergonha dos que condescendem consigo mesmos. Meu coração está penalizado, dificilmente posso conter meus sentimentos quando penso em quão facilmente é nosso povo desviado dos práticos princípios cristãos para agradar a si mesmos” (Testemunhos Para Ministros e Obreiros Evangélicos, p. 398).

No prazo de alguns anos, a bicicleta tornou-se um útil e pouco dispendioso meio de transporte, e Ellen G. White jamais comentou sobre ela outra vez. Sua orientação sobre bicicletas baseava-se no princípio bíblico da boa mordomia. Se ela hoje estivesse viva, sem dúvida, ela aplicaria este princípio à maneira como as pessoas gastam dinheiro em carros dispendiosos, barcos, ou engenhocas eletrônicas.

Resumindo, o contexto é extremamente importante. O contexto histórico e o contexto literário nos ajudarão em nossa interpretação do Espírito de Profecia a fim de navegarmos com segurança ente os perigosos rochedos da interpretação demasiado literal e daquela que se distancia tanto do intento da autora que se torna inexpressiva.

Procure crescimento em sua compreensão

Além dos princípios de interpretação já enumerados, precisamos nos lembrar de que os profetas não recebiam toda a luz de uma só vez. Eles também experimentavam um crescimento em sua compreensão das coisas celestiais. Em Daniel 8:27, diz o profeta: “Eu fiquei assustado pela visão, e não a compreendi”. Cerca de dez anos mais tarde, o anjo Gabriel vem e lhe explica todo o significado da visão. Semelhantemente, Ellen G. White experimentou crescimento em sua compreensão do que Deus lhe revelou. Escreveu ela em 1904: “Com frequência me são dadas representações que a princípio eu não compreendo, mas depois de algum tempo elas se tornam claras pela reiterada apresentação dessas coisas que a princípio eu não entendi, e de certas maneiras que fazem com que o seu significado seja claro e inconfundível” (Mensagens Escolhidas, vol. 3, p. 56). Dois anos depois, ela fez um comentário similar: “Por sessenta anos tenho estado em comunicação com mensageiros celestiais, aprendendo constantemente algo a respeito das coisas divinas” (Mensagens Escolhidas, vol. 3, p. 71).

Quando comparamos os mais antigos escritos de Ellen G. White com suas obras posteriores, descobrimos que ela, às vezes, modificava, expandia, ou abreviava seus escritos anteriores, refletindo um discernimento mais profundo nas mensagens de Deus. Isto pode ser melhor ilustrado por seu tratamento do tema do grande conflito no decorrer do seu ministério. Sua visão de duas horas em Lovett’s Grove, Ohio, em 1858, tornou-se conhecida como a “Visão do Grande Conflito”. O primeiro relato do que ela viu nessa visão apareceu em 1858, ocupando cerca de 200 páginas em Spiritual Gifts, volume 1. As 420 páginas do Spiritual Gifts, volumes 3 e 4, publicados em 1864, estenderam-se sobre o tema do grande conflito no Antigo Testamento. Isto foi seguido pela série de quatro volumes Spirit of Prophecy, publicada entre 1870 e 1884, que apresentava um relato muito mais detalhado da história do grande conflito, em quase 700 páginas de texto. Com o tempo, os quatro volumes do Spirit of Prophecy foi substituído pelos cinco volumes da série Conflito dos Séculos, que, em mais de 3.500 páginas, relata ainda mais detalhadamente a história do grande conflito. Ao desenvolver este tema no transcorrer de sua existência, ela cresceu em compreensão e expandiu o mesmo sob a direção do Espírito Santo.15 Sua compreensão deste assunto veio a permear quase todos os seus livros, mesmo aqueles que tratam superficialmente de outros assuntos, tais como os livros Educação e A Ciência do Bom Viver.

Reconheça as limitações

Os profetas são porta-vozes de Deus, não cientistas ou historiadores. Assim, acontecia ocasionalmente que, ao usar livros de história, Ellen G. White inadvertidamente incorporava em seus próprios escritos alguns dos seus erros históricos, e Deus não achou conveniente dar-lhe uma visão para corrigir o erro. Isto, porém, não tira parte de sua inspiração ou autoridade.

Por exemplo, em Atos 7:16, Estêvão diz que Abraão comprou a caverna de Macpela de Hamor, pai de Siquém. Quando, porém, lemos o relato dessa compra em Gênesis 23:7 a 17, descobrimos que Abraão comprou a caverna não de Hamor, mas de Efrom o heteu. Além disso, de Gênesis 33:18 e 19 aprendemos que Jacó comprou seu pedaço de terra dos filhos de Hamor, pai de Siquém. Entretanto, Deus não achou apropriado corrigir Lucas, nem corrigiu Mateus quando ele escreveu que as palavras “tomaram as trinta moedas de prata…” (Mateus 27:9) são de Jeremias, quando, de fato, a fonte principal é Zacarias 11:13. Deus obviamente não considerou estes detalhes históricos suficientemente importantes para dar uma visão para sua correção.

Quando, na Conferência Bíblica de 1919, W. W. Prescott perguntou a A. G. Daniells como Ellen G. White deveria ser usada para “resolver questões históricas”, respondeu Daniells: “A irmã White jamais pretendeu ser autoridade em história, e jamais pretendeu ser um professor dogmático em teologia. Ela nunca esboçou um curso de teologia como o livro da sra. Eddy sobre ensino. Ela apenas emitiu declarações fragmentárias, mas deixou ao pastor, ao evangelista e aos pregadores a resolução desses problemas de escritura, de teologia e de história”.

Em 1912, W. C. White escreveu uma carta a N. S. Haskell em que declarava que Ellen G. White “nunca desejou que nossos irmãos os tratassem [seus escritos] como autoridade em história. Quando O Grande Conflito foi escrito, ela muitas vezes dava uma descrição parcial de alguma cena que lhe era apresentada, e quando a Imã Davis fazia indagação concernente a tempo e local, mamãe a encaminhava ao que já estava escrito no livro do pastor Smith e em histórias seculares. Quando o Conflito foi escrito, mamãe nunca imaginou que os leitores o considerassem como autoridade em datas históricas e o usassem para dirimir controvérsias, e ela agora não acha que ele deve ser usado neste sentido”.17

No final dessa carta, Ellen G. White escreveu: “Eu aprovo as observações feitas nesta carta” e assinou o seu nome.18 Em vista de sua própria compreensão deste assunto, devemos ser cuidadosos ao usar as narrativas históricas de seus livros para resolver detalhes de história.19 Isto não significa, é claro, que podemos fazer recuar a criação dezenas de milhares ou milhões de anos ou que as datas proféticas como 1798 ou 1844 podem ser mudadas. Com relação à idade da Terra, ela escreveu: “Geólogos descrentes afirmam que o mundo é muito mais velho do que o relato bíblico o apresenta. Eles rejeitam o relato bíblico por causa daquelas coisas que são para eles evidências da própria Terra, de que o mundo tem existido dezenas de milhares de anos” (Spiritual Gifts, vol. 3, p. 91 e 92). Ela mesma sempre se referiu à idade da Terra em cerca de seis mil anos (Spiritual Gifts, vol. 3, p. 92; Patriarcas e Profetas, p. 51; O Desejado de Todas as Nações, p. 413; etc).

Conclusão

Na interpretação de Ellen G. White precisamos aplicar aos seus escritos os mesmos princípios hermenêuticos que usamos para as Escrituras. Particularmente, precisamos tomar em consideração o tempo e o lugar em que uma declaração foi escrita, e olhar para o contexto imediato e o contexto mais amplo da passagem. O contexto imediato nos ajuda a ver o que ela realmente está tratando, e o contexto mais amplo nos torna cientes do que mais ela escreveu sobre um determinado assunto.

Os escritos de Ellen G. White são muitas vezes usados incorretamente porque estes princípios de hermenêutica são frequentemente esquecidos ou não aplicados. Sentenças são tiradas do contexto e pessoas sustentam que ela ensina algo quando, na verdade, ela não o faz. Por não serem usados os adequados princípios hermenêuticos, o que foi destinado a ser uma bênção para a Igreja pode tornar-se um pomo de discórdia e uma fonte de divisão.

Certamente isto não é o que ela teria desejado. Ela cumpriu sua missão de exaltar a Cristo e as Escrituras diante do povo. Em cada oportunidade ela chamava a atenção de seus ouvintes e leitores para a Palavra de Deus. “Irmãos, apegai-vos Bíblia, tal como ela reza”, escreveu ela em 1888, “obedecei à Palavra, e nenhum de vós se perderá” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 18). Num tempo em que todo vento de doutrina vem soprando na Igreja, e o pensamento pós-moderno ameaça os próprios fundamentos do cristianismo, fazemos bem dando ouvidos ao seu conselho tanto como Igreja quanto como indivíduos.

Referências

  1. Arthur L. White, Ellen G. White: The Early Elmshaven Years (Washington, D.C.: Review and Herald, 1981), p. 354.
  2. O primeiro apareceu na edição de 21 de março; o último, em 17 de outubro de 1906.
  3. Ela reconhecia que as Escrituras usam símbolos e figuras que não devem ser interpretados literalmente. Veja O Grande Conflito, p. 599.
  4. Em uma visão sobre o fim dos 2300 dias (Primeiros Escritos, p. 54 a 56) ela viu Satanás e um grupo de pessoas diante do trono de Deus. Tendo alguns compreendido que isto descrevia a realidade, ela escreveu: “Eu jamais tive a ideia de que esses indivíduos estivessem realmente na Nova Jerusalém. Nem nunca imaginei que qualquer mortal pudesse supor que eu acreditava que Satanás estava realmente na Nova Jerusalém. Mas não viu João o grande dragão vermelho no Céu?” (Primeiros Escritos, p. 92). No panfleto de 1847, A Word to the Little Flock [Uma Palavra ao Pequeno Rebanho] (reimpresso, Washington, D.C.: Review and Herald, p. 16) ela descreve o que viu no Céu e diz: “Vi duas longas varas de ouro, das quais pendiam fios de prata, e nos fios achavam-se uvas gloriosas”. Tendo seus oponentes a ridicularizado por isto, ela respondeu, dizendo: “Eu não declaro que uvas estavam saindo de fios de prata. O que contemplei é descrito segundo me parecia. Não é de pensar-se que uvas estivessem presas a fios de prata ou varas de ouro, mas que essa era a aparência que davam” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 65 e 66).
  5. Um exemplo clássico é a história do Dr. Kress, que nos primeiros anos do século vinte, trabalhava em nosso sanatório em Sydney, Austrália. Quando ele leu em Testemunhos Para a Igreja, vol. 2, p. 400, que “ovos não devem ser postos em vossa mesa”, resolveu suprimir todos os produtos de laticínio. Como resultado, ele ficou doente, desenvolvendo um grave caso de anemia. Em visão Ellen White viu suas mãos – tão brancas como se ele fosse um cadáver (A. L. White, The Early Elmshaven Years [Washington, D.C.: Review and Herald, 1981], p. 120). Em uma carta, ela o aconselhou: “Não vades a extremos com respeito à reforma de saúde… Obtende ovos, de galinhas sadias. Usai esses ovos cozidos ou crus. Ponde-os crus no melhor vinho sem fermento que possais obter. Isto vos suprirá ao organismo o que lhe é necessário… E os ovos contêm propriedades que são agentes medicinais para combater venenos” (Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 204).
  6. Veja Jon Paulien, “The Interpreter’s Use of the Writings of Ellen G. White”, em Symposium on Revelation, ed. por Frank B. Holbrook, DARCOM Series, vol. 6 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), p. 163-174.
  7. Isto tem sido há muito tempo reconhecido. Robert W. Olson, ex-diretor do Ellen G. White Estate, escreveu em 1981: “Os escritos de Ellen White são geralmente de natureza homilética ou evangelística e não estritamente exegéticos” (Robert W. Olson, One Hundred and One Questions on the Sanctuary and Ellen White [Washington, D.C.: Ellen G. White Estate, 1981], p. 41). Herbert Douglass, comentando sobre a utilização de Ellen G. White de João 5:39, diz: “Em uma carta de 1900 ela fez uma sugestão homilética usando esse texto para encorajar o estudo diligente da Bíblia” (Herbert E. Douglass, Messenger of the Lord [Nampa, ID: Pacific Press Publishing Assoc., 1998], p. 420). Veja também Paulien, p. 166-167.
  8. R. F. Cottrell, “Ellen G. White’s Use of the Bible”, A Symposium on Biblical Hermeneutics, ed. Gordon M.Hyde (Washington, DC: Biblical Research Committee, 1974), p. 160.
  9. Douglass, p. 424, n. 37.
  10. Richard M. Davidson, “New Testament use of the Old Testament”, Journal of the Adventist Theological Society 5.1 (1994): 14-39.
  11. Pirke ’Aboth, 27, citado em George R. Beasley-Murray, John, Word Biblical Commentary (Nashville, TN: Thomas Nelson Publishers, 1999), p. 78.
  12. Raoul Dederen, “Ellen White’s Doctrine of Scripture”, em “Are There Prophets in the Modern Church?” Suplemento de Ministry (julho, 1977): 24 H.
  13. A. L. White, The Early Elmshaven Years, p. 72.
  14. George E. Rice, “The church: voice of God?” Ministry (dezembro, 1987): 5.
  15. O tema do grande conflito no Antigo Testamento, que abrangia somente três capítulos em Spiritual Gifts, volume 1, foi ampliado para 36 capítulos em Spirit of Prophecy, volume 1.
  16. “The Use of the Spirit of Prophecy in Our Teaching of Bible and History, July 30, 1919”, Spectrum 10.1 (1979): 34. Semelhantemente, em 1911, diante de assembleia da Associação Geral, disse W. C. White: “Mamãe nunca pretendeu ser autoridade em história” (A. L. White, The Ellen G. White Writings [Washington, D.C.: Review and Herald, 1973], p. 188).
  17. W. C. White to S. N. Haskell, October 31, 1912. E. G. White Estate Correpondence File.
  18. A. L. White, Ellen G. White: The Later Elmshaven Years (Washington, D.C.: Review and Herald, 1982), p. 365.
  19. Aqui estão em debate os detalhes, não acontecimentos importantes da história. Por exemplo, na edição de 1888 de O Grande Conflito, descrevendo o Massacre de S. Bartolomeu, ela diz: “O rei da França, com quem sacerdotes e prelados romanos insistiram, sancionou a hedionda obra. O grande sino do palácio, badalando à noite dobres fúnebres, foi o sinal para o morticínio”. Quando lhe foi chamada a atenção para o fato de que não havia nenhum grande sino do palácio que deu o sinal, ela ordenou que isto fosse mudado para “um sino, badalando à noite dobres fúnebres, foi o sinal para o morticínio” (O Grande Conflito, p. 272).

Bibliografia selecionada

Brand, Leonard e Don S. McMahon. The Prophet and Her Critics. Nampa, ID: Pacific Press, 2005.

Douglass, Herbert E. Messenger of the Lord. Nampa, ID: Pacific Press, 1998.

Knight, George R. Reading Ellen White. Hagerstown, MD: Review and Herald, 1988. Paulien, Jon. “The Interpreter’s Use of the Writings of Ellen G. White”, em Symposium on Revelation, ed. Frank B. Holbrook. DARCOM Series, vol. 6. Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992, pp. 163-174.

Olson, Robert W. One Hundred and One Questions on the Sanctuary and on Ellen White.

Washington, D.C.: Ellen G. White Estate, 1981.

Gerhard Pfandl, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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MÉTODOS DE ESTUDO DA BÍBLIA

Introdução

O seguinte documento foi escrito pela “Comissão de Métodos de Estudo da Bíblia” da Associação Geral com a participação das várias divisões mundiais. As preocupações que deram origem a este documento são principalmente as incursões que o método crítico-histórico de estudo da Bíblia têm feito na área da pesquisa bíblica.

Na reunião do Concílio Anual de 1988 no Rio de Janeiro, este relatório, submetido pela “Comissão de Métodos de Estudo da Bíblia”, foi aprovado. O documento foi posteriormente impresso na The Adventist Review, 22/01/1987, p. 18 a 20. O texto completo do documento é publicado a seguir.

Estudo bíblico: pressuposições, princípios e métodos

Preâmbulo

Esta declaração é dirigida a todos os membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, tanto eruditos bíblicos quanto não-especialistas, com o objetivo de prover orientação sobre como estudar a Bíblia.

Os adventistas reconhecem e apreciam as contribuições dos eruditos das Escrituras que, ao longo dos anos, desenvolveram métodos proveitosos e fidedignos de estudo da Bíblia, coerentes com os seus ensinos e reivindicações. Os adventistas estão prontos a aceitar e seguir as verdades bíblicas, valendo-se de todos os métodos de interpretação que se coadunem com o que as Escrituras dizem de si mesmas. Esses métodos encontram-se nas pressuposições detalhadas a seguir.

Nas últimas décadas, o método mais destacado no estudo da Bíblia é conhecido como o “método crítico-histórico”. Os eruditos que usam esse método, como formulado classicamente, trabalham com base em pressuposições que, sem estudar primeiramente o texto bíblico, rejeitam os relatos dos milagres e outros eventos sobrenaturais narrados na Bíblia. Mesmo um uso modificado desse método, o qual retenha o princípio crítico, subordinando a Bíblia à razão humana, é inaceitável para os adventistas.

O método crítico-histórico minimiza a necessidade de fé em Deus e a obediência aos seus mandamentos. Além disso, uma vez que esse tipo de método oblitera o elemento divino da Bíblia como um livro inspirado (incluindo sua resultante unidade) e deprecia ou discorda da profecia apocalíptica e das porções escatológicas da Bíblia, instamos com os estudiosos adventistas da Bíblia a evitarem o uso de pressuposições e deduções associadas ao método crítico-histórico.

Em contraste com o método crítico-histórico e suas pressuposições, cremos que proveitoso apresentar os princípios de estudo da Bíblia que sejam coerentes com os ensinos das próprias Escrituras, que preservem sua unidade e se fundamentem na premissa de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Tal abordagem nos levará a uma experiência satisfatória e compensadora com Deus.

Pressuposições originadas de afirmações das Escrituras

a. Origem

(1) A Bíblia é a Palavra de Deus e o meio primário e autorizado pelo qual Ele se revela aos seres humanos.

(2) O Espírito Santo inspirou os escritores bíblicos com pensamentos, ideias e informações objetivas; por sua vez, eles os expressaram em suas próprias palavras. Portanto, as Escrituras são uma indivisível união de elementos divinos e humanos, nenhum dos quais devendo ser salientado em detrimento do outro (1Pedro 1:2; O Grande Conflito, p. 5 e 6).

(3) Toda a Escritura é inspirada por Deus e surgiu por meio da obra do Espírito Santo. Entretanto, isso não aconteceu numa cadeia contínua de revelações ininterruptas. À medida que o Espírito Santo comunicava a verdade ao escritor bíblico, cada um escrevia segundo era movido pelo Espírito, enfatizando o aspecto da verdade que era levado a realçar. Por este motivo, o estudioso da Bíblia obterá uma compreensão adequada de qualquer tema por meio do reconhecimento de que ela é o seu melhor intérprete e, quando estudada como um todo, retrata uma verdade coerente e harmoniosa (2Timóteo 3:16; Hebreus 1:1 e 2; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 19 e 20; O Grande Conflito, p. 5 e 6).

(4) Embora tivesse sido dada àqueles que viviam no contexto do antigo Oriente Próximo e do Mediterrâneo, a Bíblia transcende a cultura da época para servir como a Palavra de Deus a todos os contextos culturais, raciais e situacionais de todos os tempos.

b. Autoridade

(1) Os 66 livros do Antigo e do Novo Testamento são a revelação clara e infalível da vontade de Deus e de sua salvação. A Bíblia é a Palavra de Deus e o único padrão pelo qual todos os ensinos e experiências devem ser provados (2Timóteo 3:15 e 17; Salmos 119:105; Provérbios 30:5 e 6; Isaías 8:20; João 17:17; 2Tessalonicenses 3:14; Hebreus 4:12).

(2) As Escrituras são um registro autêntico e confiável da história e dos atos de Deus na mesma. Ela provê a interpretação teológica normativa desses atos. Os atos sobrenaturais revelados nas Escrituras são historicamente verdadeiros. Por exemplo, Gênesis 1 e 11 são um relato autêntico de eventos históricos.

(3) A Bíblia não é um livro como os outros. Ela é uma combinação indivisível do divino e do humano. Seu registro de vários detalhes da história secular é essencial ao seu propósito geral de comunicar a história da salvação. Embora, por vezes, possa haver procedimentos paralelos empregados pelos estudiosos da Bíblia para determinar fatos históricos, as técnicas comuns de investigação histórica baseadas em pressuposições humanas e focalizadas no elemento humano são inadequadas para interpretar as Escrituras, que são uma combinação do divino com o humano. Somente um método que reconheça plenamente a natureza indivisível das Escrituras pode evitar a distorção de sua mensagem.

(4) O intelecto humano está sujeito à Bíblia, não igual ou acima dela. As pressuposições relacionadas com as Escrituras devem estar em harmonia com os seus reclamos e sujeitas à sua correção (1Coríntios 2:1 a 6). O propósito de Deus é que a razão humana seja usada em toda a sua extensão, porém dentro do contexto e sob a autoridade de sua Palavra e não independente dela.

(5) A revelação de Deus em toda a natureza, quando devidamente entendida, está em harmonia com a Palavra escrita e deve ser interpretada à luz das Escrituras.

Princípios para abordar a interpretação das Escrituras

a. O Espírito habilita o crente a aceitar, compreender e aplicar a Bíblia à sua própria vida, ao buscar o poder divino para obedecer a todos os requisitos escriturísticos e apropriar-se pessoalmente de todas as suas promessas. Somente aqueles que seguem a luz que já receberam podem esperar receber mais iluminação do Espírito (João 16:13 e 14; 1Coríntios 2:10 a 14).

b. As Escrituras não podem ser corretamente interpretadas sem o auxílio do Espírito Santo, pois é Ele quem capacita o crente a entender e aplicar as Escrituras. Portanto, todo estudo da Palavra deve ser iniciado com um pedido de orientação e iluminação do Espírito.

c. Todos quantos se aproximam da Palavra devem fazê-lo com fé, com o espírito humilde do aprendiz que busca ouvir o que ela diz. Devem estar dispostos a submeter todas as pressuposições, opiniões e conclusões do intelecto ao julgamento e correção da própria Palavra. Com esta atitude o estudante da Bíblia pode ir diretamente à Palavra, e com cuidadoso estudo chegar a uma compreensão dos componentes essenciais da salvação, independente de qualquer explicação humana, por mais útil que seja. A mensagem bíblica torna-se então significativa para tal pessoa.

d. A investigação das Escrituras deve ser caracterizada por um sincero desejo de descobrir e obedecer à vontade e à Palavra de Deus em vez de buscar apoio ou evidência para ideias preconcebidas.

Métodos de estudo da Bíblia

a. Selecione uma versão bíblica que seja fiel ao significado contido nos idiomas em que a Bíblia foi originalmente escrita, dando preferência a traduções feitas por um amplo grupo de eruditos e publicadas por uma editora geral, e não traduções patrocinadas por uma denominação particular ou um grupo de enfoque limitado.

Tenha cuidado para não construir pontos doutrinários importantes sobre uma versão ou tradução da Bíblia. Os mais eruditos usarão os textos gregos e hebraicos, que os habilitam a examinar também as variantes dos antigos manuscritos bíblicos.

b. Escolha um plano definido de estudo, evitando abordagens casuais e destituídas de propósito. Sugerimos planos que possam abranger: (1) Análise da mensagem de um livro; (2) Método de estudo verso por verso; (3) Estudo que busca uma solução bíblica para um problema existencial específico, satisfação bíblica para uma necessidade específica ou resposta bíblica para uma questão específica; (4) Estudo de temas (fé, amor, segunda vinda e outros); (5) Estudo de palavras; (6) Estudo biográfico.

c. Procure compreender o significado simples e mais óbvio da passagem bíblica estudada.

d. Busque descobrir os grandes temas fundamentais das Escrituras, tais como se encontram em textos individuais, passagens e livros. Dois temas básicos afins estão presentes ao longo das Escrituras: (1) a pessoa e a obra de Jesus Cristo; e (2) a perspectiva do grande conflito envolvendo a autoridade da Palavra de Deus, a queda da humanidade, o primeiro e o segundo adventos de Cristo, a vindicação de Deus e sua lei e a restauração do plano divino para o universo. Esses temas devem ser extraídos da totalidade das Escrituras e não impostos sobre ela.

e. Reconheça que a Bíblia é o seu próprio intérprete e que o significado das palavras, textos e passagens é melhor determinado pela comparação diligente de passagem com passagem.

f. Estude o contexto da passagem sob consideração, relacionando-a com as sentenças e parágrafos que a precedem e os que a seguem. Busque relacionar as ideias das passagens com a linha de raciocínio do livro bíblico em sua totalidade.

g. Verifique, tanto quanto possível, as circunstâncias históricas de quando a passagem foi escrita pelos autores bíblicos sob a orientação do Espírito Santo.

h. Determine o tipo de literatura que o autor está usando. Alguns materiais bíblicos são formados por parábolas, provérbios, alegorias, salmos e profecias apocalípticas. Sendo que muitos dos escritores bíblicos escreveram a maior parte do seu material na forma de poesia, será proveitoso o uso de uma versão bíblica que apresente esse material em estilo poético, pois passagens que usam figura de linguagem não devem ser interpretadas da mesma forma que a prosa.

i. Reconheça que um dado texto bíblico pode não se harmonizar em cada detalhe com as categorias literárias atuais. Tenha cuidado para não forçar essas categorias na interpretação do significado do texto bíblico. É uma tendência humana encontrar o que está buscando, mesmo que a intenção do autor tenha sido outra.

j. Observe a gramática e a construção da sentença a fim de descobrir a finalidade do autor. Estude as palavras-chave da passagem, comparando sua utilização com a encontrada em outras partes da Bíblia, valendo-se de uma concordância e da ajuda de léxicos e dicionários bíblicos.

k. Em conexão com o estudo do texto bíblico, explore os fatores históricos e culturais. A arqueologia, a antropologia e a história podem contribuir para a compreensão do significado do texto.

l. Os adventistas do sétimo dia acreditam que Deus inspirou Ellen G. White. Portanto, suas exposições sobre qualquer passagem bíblica oferecem um guia inspirado para a compreensão dos textos sem esgotar seu significado ou tornar desnecessária a tarefa da exegese (veja, por exemplo, Evangelismo, p. 256; O Grande Conflito, p. 193 e 595; Testemunhos Para a Igreja, vol. 5, p. 665, 682, 707 e 708; Counsels to Writers and Editors, p. 33 a 35).

m. Depois de fazer o estudo, conforme já delineado, busque vários comentários e ajudas secundárias, como obras eruditas, para ver como outros lidaram com a passagem. Avalie então, cuidadosamente, os diferentes pontos de vista expressos a partir da perspectiva das Escrituras como um todo.

n. Ao interpretar as profecias, tenha em mente que:

(1) A Bíblia reivindica o poder de Deus para predizer o futuro (Isaías 46:10).

(2) A profecia tem um propósito moral. Não foi escrita meramente para satisfazer a curiosidade acerca do futuro. Algumas das finalidades da profecia são fortalecer a fé (João 14:29) e promover a santidade de vida e o preparo para o advento (Mateus 24:44; Apocalipse 22:7, 10 e 11).

(3) O foco de muitas profecias é Cristo (tanto o primeiro quanto o segundo advento), a igreja e o fim do tempo.

(4) As normas para a interpretação da profecia se encontram na própria Bíblia. A Bíblia assinala as profecias de tempo e o seu cumprimento histórico. O Novo Testamento cita cumprimentos específicos de profecias do Antigo Testamento acerca do Messias; e o próprio Antigo Testamento apresenta indivíduos e acontecimentos como tipos do Messias.

(5) A aplicação no Novo Testamento de alguns nomes literais do Antigo Testamento torna-se espiritual: por exemplo, Israel representa a Igreja, Babilônia simboliza a religião apostatada, etc.

(6) Existem dois tipos gerais de literatura profética: as profecias não-apocalípticas (ou clássicas), conforme encontradas em Isaías e Jeremias; e as profecias apocalípticas, como encontradas em Daniel e no Apocalipse. Esses diferentes tipos têm características distintas: (a) As profecias não-apocalípticas dizem respeito ao povo de Deus; as profecias apocalípticas são mais universais em escopo; (b) As profecias não-apocalípticas são, muitas vezes, de natureza condicional, estabelecendo para o povo de Deus as alternativas de bênção para a obediência e de maldições para a desobediência; as profecias apocalípticas enfatizam a soberania de Deus e o seu controle sobre a história; (c) As profecias não-apocalípticas frequentemente saltam de uma crise local para o dia final do Senhor; as profecias apocalípticas apresentam o curso da história desde o tempo do profeta até o fim do mundo; (d) Nas profecias não-apocalípticas, as profecias de tempo são geralmente longas, como, por exemplo, os 400 anos de escravidão de Israel (Gênesis 15:13) e os 70 anos de cativeiro babilônico (Jeremias 25:12). As profecias de tempo, no contexto apocalíptico, são geralmente enunciadas em termos curtos, como dez dias (Apocalipse 2:10) ou quarenta e dois meses (Apocalipse 13:5). Os períodos de tempo apocalípticos simbolizam períodos mais longos de tempo real.

(7) A profecia apocalíptica é altamente simbólica e deve ser interpretada em conformidade com isto. Na interpretação dos símbolos, os seguintes métodos podem ser usados: (a) Procure interpretações (explícitas ou implícitas) dentro da própria passagem. Veja, por exemplo, Daniel 8:20 e 21; Apocalipse 1:20; (b) Procure interpretações em outras partes do livro ou em outros escritos do mesmo autor; (c) Valendo-se de uma concordância, estude o uso de símbolos em outras partes das Escrituras; (d) Um estudo dos documentos do antigo Oriente Médio pode aclarar o significado dos símbolos, embora o uso escriturístico possa alterar tal significado.

(8) A estrutura literária de um livro contribui, muitas vezes, para a sua interpretação. A natureza paralela das profecias de Daniel é um exemplo disto.

o. Relatos paralelos nas Escrituras às vezes apresentam diferenças em detalhes e ênfase (por exemplo, Mateus 21:33 e 34; Marcos 12:1 a 11; e Lucas 20:9 a 18; ou 2Reis 18 a 20 com 2Crônicas 32). Ao estudar tais passagens, primeiro examine-as cuidadosamente para estar seguro de que os relatos paralelos realmente se referem ao mesmo evento histórico. Por exemplo, muitas parábolas de Jesus podem ter sido ditas em diferentes ocasiões, a diferentes auditórios e com palavras diferentes.

Em casos em que parece haver diferenças entre relatos paralelos, deve-se reconhecer que a mensagem total da Bíblia é a síntese do todo de suas partes. Cada livro ou escritor comunica aquilo que o Espírito o levou a escrever. Cada um dá sua própria contribuição especial para o enriquecimento, a diversidade e a variedade das Escrituras (O Grande Conflito, p. 5 e 6). O leitor deve permitir que cada escritor bíblico surja e seja ouvido, ao passo que simultaneamente reconhece a unidade básica da autorrevelação divina.

Quando passagens paralelas parecem indicar discrepância ou contradição, procure a harmonia fundamental. Tenha em mente que as diferenças podem ser devidas a pequenos erros de copistas (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 16), ou podem ser o resultado de diferentes ênfases e escolhas de material de variados autores que escreveram sob a inspiração e orientação do Espírito Santo para diferentes audiências, sob diferentes circunstâncias (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21 e 22; O Grande Conflito, p. 6).

É possível não conseguir conciliar pequenas diferenças em detalhes que são irrelevantes à mensagem principal e clara da passagem. Em alguns casos, o escrutínio terá que ser interrompido até que mais informações e melhores evidências estejam disponíveis para resolver uma aparente discrepância.

p. A Bíblia foi escrita com a finalidade prática de revelar a vontade de Deus à família humana. Entretanto, a fim de não interpretar mal certas declarações, é importante considerar que elas foram dirigidas às pessoas de cultura oriental e expressas em sua forma de pensamento.

Expressões como “o Senhor endureceu o coração de Faraó” (Êxodo 9:12) ou “um espírito maligno, enviado de Deus” (1Samuel 16:15), os salmos imprecatórios, ou os “três dias e três noites” de Jonas comparados com a morte de Cristo (Mateus 12:40), comumente são mal compreendidos por serem interpretados hoje de um ponto de vista diferente.

Um conhecimento prévio da cultura do Oriente Médio é indispensável para compreender tais expressões. Por exemplo, a cultura hebraica atribuía responsabilidade a um indivíduo por atos que ele não cometeu, mas permitiu que ocorressem. Portanto, os escritores inspirados da Bíblia apresentam a Deus como tendo executado ativamente o que em nosso pensamento ocidental diríamos que Ele permitiu ou não evitou que acontecesse. Por exemplo, o endurecimento do coração de Faraó.

Outro aspecto das Escrituras que confunde a mente moderna é a ordem divina a Israel para empenhar-se em guerra e destruir nações inteiras. Israel era originalmente organizado como uma teocracia, um governo civil por meio do qual Deus governava diretamente (Gênesis 18:25). Tal governo teocrático era peculiar. Não mais existe e não pode ser considerado como um modelo direto para a prática cristã.

As Escrituras registram que Deus aceitou pessoas cujas experiências e declarações não estavam em harmonia com os princípios espirituais da Bíblia como um todo. Por exemplo, podemos citar incidentes relacionados com o uso do álcool, poligamia, divórcio e escravidão. Embora a condenação de tais costumes sociais arraigados não esteja implícita, Deus necessariamente não endossava ou aprovava tudo que Ele permitia e suportava na vida dos patriarcas e em Israel. Jesus deixou isto claro em sua declaração sobre o divórcio (Mateus 19:4 a 6 e 8).

O espírito das Escrituras é de restauração. Deus opera pacientemente para erguer a humanidade caída das profundezas do pecado para o ideal divino. Consequentemente, não devemos aceitar como padrão os atos de homens pecadores conforme registrados na Bíblia.

As Escrituras representam o desenrolar da revelação de Deus ao ser humano. O Sermão da Montanha, pregado por Jesus, por exemplo, amplia e expande certos conceitos do Antigo Testamento. O próprio Cristo é a revelação suprema do caráter de Deus à humanidade (Hebreus 1:1 a 3).

Embora haja uma abarcante unidade na Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, e toda a Escritura seja igualmente inspirada, Deus preferiu revelar-se à humanidade por meio de seres humanos e ir ao encontro deles onde eles estavam em termos de dons espirituais e intelectuais. Deus não muda, mas progressivamente desdobrou sua revelação aos homens à medida que eles estavam capacitados a compreendê-la (João 16:12; Comentário Bíblico Adventista, vol. 7, p. 945; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21). Toda experiência ou declaração das Escrituras é um registro divinamente inspirado, mas nem toda declaração ou experiência é necessariamente normativa para o comportamento cristão de hoje. Mas o espírito e a letra das Escrituras devem ser compreendidos (1Coríntios 16:6 a 13; O Desejado de Todas as Nações, p. 150; Testemunhos Seletos, vol. 1, p. 436 a 438).

q. Como objetivo final, faça a aplicação do texto. Formule perguntas como: “Qual a mensagem e o propósito que Deus pretende transmitir por meio das Escrituras?” “Que significado tem este texto para mim?” “Como isto se aplica à minha situação e às circunstâncias de hoje?” Fazendo isto, reconheça que, embora muitas passagens bíblicas tivessem significado local, não obstante elas contêm princípios universais aplicáveis a todas as eras e culturas.

Conclusão

Na introdução de O Grande Conflito, escreveu Ellen G. White: “A Escritura Sagrada, com suas divinas verdades expressas em linguagem de homens, apresenta uma união do divino com o humano. União semelhante existiu na natureza de Cristo, que era o Filho de Deus e Filho do homem. Assim, é verdade com relação às Escrituras, como o foi em relação a Cristo, que ‘o Verbo Se fez carne e habitou entre nós’ (João 1:14)”.

Como é impossível para aqueles que não aceitam a divindade de Cristo compreender o propósito de sua encarnação, é também impossível para aqueles que veem a Bíblia meramente como um livro humano compreender sua mensagem, apesar de seus métodos cuidadosos e rigorosos.

Mesmo eruditos cristãos que aceitam a natureza divino-humana das Escrituras, mas cujas abordagens metodológicas os levam a demorar-se grandemente em seus aspectos humanos, correm o risco de esvaziar a mensagem bíblica do seu poder, relegando-a a um segundo plano, enquanto se concentram no meio. Eles se esquecem de que o meio e a mensagem são inseparáveis, e que o meio sem a mensagem é como uma concha vazia que não pode atender às necessidades espirituais da humanidade.

Um cristão consagrado usará apenas os métodos capazes de fazer total justiça à natureza dupla e inseparável das Escrituras, enfatizando sua capacidade de compreender e aplicar sua mensagem e fortalecer a fé.

Comissão da Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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O USO DA VERSÃO MODIFICADA DA ABORDAGEM CRÍTICO-HISTÓRICA POR ERUDITOS ADVENTISTAS

A crítica erudita e a fé adventista

Desde o seu início, o uso da abordagem crítico-histórica ao estudo da Bíblia enfrentou forte oposição das comunidades cristãs, mas conseguiu, por meio de um longo processo, tornar-se predominante na interpretação bíblica. Hoje, somente algumas comunidades cristãs permanecem contrárias a ela. A oposição adventista, como a de outras denominações, é determinada por sua compreensão da natureza e da autoridade das Escrituras. As doutrinas e o estilo de vida adventistas foram formulados como resultado do estudo da Bíblia, considerada pela Igreja como uma revelação da graça e da vontade de Deus para a raça humana. A Igreja sempre tem tido uma elevada opinião da Bíblia, baseada em várias convicções fundamentais relacionadas com sua natureza e propósito. Tais convicções tiveram um impacto direto na maneira como a Igreja veio a interpretar as Escrituras.

Premissas fundamentais

1. Cremos que a Bíblia é essencialmente um documento religioso, uma revelação de Deus à raça humana, que responde às perguntas fundamentais da existência humana: Quem sou eu? De onde vim? O que estou fazendo aqui? Para onde estou indo? Sem esta revelação estaríamos perdidos e desorientados neste mundo. Realmente, é o fenômeno da revelação, a origem divina da Bíblia, que a torna singular (2Timóteo 3:16). Tal convicção nos força a perguntar a nós mesmos até que ponto uma determinada metodologia usada na interpretação da Bíblia apoiará ou talvez abalará nossa opinião das Escrituras. Se a Bíblia é tratada e analisada como qualquer outro livro, devemos esperar tensão e conflito entre a Igreja e a erudição moderna.

2. Cremos na unidade das Escrituras. Essa unidade baseia-se no fato de que o verdadeiro autor desse documento sagrado é o próprio Deus, que Cristo é o seu centro e que a mesma mensagem de salvação é proclamada ao longo de toda a Bíblia. Geralmente, a erudição moderna rejeita ou questiona a unidade da Bíblia. Ela é considerada como uma diversa, e às vezes contraditória, coleção de teologias, promulgada por seus diferentes autores. Consequentemente, os conceitos de revelação e inspiração divinas são negados ou redefinidos de tal maneira a ponto de tornar o elemento humano mais determinativo do que o divino na formação do produto final.

3. Cremos que, embora a Bíblia não seja primariamente um livro de história ou ciência, quando intencionalmente trata de assuntos históricos ou “científicos”, ela é confiável. Consequentemente, estamos interessados na dimensão histórica da Bíblia. Todavia, rejeitamos metodologias históricas usadas para reconstruir a história de Israel, pois contradizem o quadro histórico encontrado na própria Bíblia. Aqui, o intento do autor é extremamente importante e deve ser considerado seriamente no processo hermenêutico. Queremos reter o significado óbvio do texto, a não ser que as próprias Escrituras apontem numa direção diferente.

4. Cremos que a Bíblia é o seu próprio intérprete. O problema básico da hermenêutica deve ser resolvido permitindo-se que a Bíblia se interprete a si mesma. Em outras palavras, as Escrituras devem ser interpretadas de dentro das próprias Escrituras, comparando uma passagem com outras semelhantes. Mesmo em casos de discrepâncias, devemos começar nas Escrituras a busca por compreendê-las ou esclarecê-las. Em alguns casos, as harmonizações são possíveis; em outros, pode-se perceber que o autor bíblico estava omitindo informação a fim de chegar a um determinado ponto. A arqueologia pode prover informação que esclareça uma aparente discrepância, mas a Bíblia é o árbitro final do significado. Se não houver evidência suficiente para explicar ou harmonizar a discrepância, devemos simplesmente reconhecê-la.

Os contextos históricos, religiosos e culturais são úteis na interpretação das Escrituras, mas o árbitro final de significado é a própria Bíblia. A erudição bíblica moderna procura colocar a Bíblia em seu próprio ambiente cultural, o que em si mesmo é apropriado; mas, em muitos casos, ela usa materiais arqueológicos e epigráficos para reconstruir a história por trás do texto ou determinar o significado do texto bíblico. Esta abordagem tende a criar tensões com a Igreja, porque ela parece pressupor que quase tudo nas Escrituras é determinado pela cultura, e por isso, consequentemente tende a abalar a distinção da Bíblia como norma para nós hoje.

Os críticos eruditos estão sinceramente interessados na compreensão e interpretação do texto bíblico. Eles usam um sistema de interpretação que acreditam ser o correto. De fato, baseiam seu sistema em uma convicção muito simples: a Bíblia é o resultado dos contextos históricos, religiosos e culturais em que os escritores bíblicos viveram e escreveram. Assim, eles não atribuem à Bíblia uma condição singular em termos de sua origem – ela não é uma revelação de Deus. Consideram-na um livro como qualquer outro livro.

Os críticos eruditos pressupõem que a certeza histórica é impossível, porque qualquer conclusão está sempre sujeita a revisão (dúvida metodológica). Portanto, três pontos devem ser considerados. Primeiro, o que alguém acha em qualquer documento não pode ser considerado verdadeiro a menos que seja submetido análise crítica. Segundo, seu método descarta a ideia de eventos singulares na história. As leis da natureza que operavam nos tempos bíblicos eram as mesmas que temos hoje (princípio da analogia). Isto exclui o miraculoso. Terceiro, o fluxo da história é o resultado de contínua causa e efeito. Todo evento histórico pode ser explicado examinando-se as causas imanentes que o produziram (princípio da correlação). Isto exclui a intervenção divina nos negócios humanos.1

O uso adventista da metodologia crítico-histórica modificada

Alguns eruditos adventistas têm se interessado pelo uso do método crítico-histórico, tornando-o um assunto de debate desde o final da década de 1960. Alguns têm defendido o uso do método em sua forma clássica; muitos têm preferido um uso modificado que, supostamente, exclui as pressuposições que tradicionalmente o acompanham.

A questão fundamental tem sido: é possível usar o método crítico-histórico sem ser influenciado por suas pressuposições críticas? Alguns têm respondido afirmativamente, enquanto outros o negam. Talvez alguém pudesse afirmar que, em nível teórico, poderia ser possível postular a possibilidade de separar o método de suas pressuposições. Alguns eruditos evangélicos afirmam que têm sido capazes de fazer precisamente isto. A questão é se na prática é possível separar plenamente as pressuposições da metodologia.

Nossa preocupação neste apêndice é avaliar a pretensão de que o uso modificado do método crítico-histórico é compatível com a compreensão adventista da Bíblia. Faremos isto olhando para os resultados de estudos feitos por eruditos adventistas, usando o método modificado, em vez de tratar dos argumentos metodológicos abstratos pró ou contra o seu uso.

Um dos problemas que enfrentamos em nossa tarefa é que aqueles que defendem o sistema modificado não declaram explicitamente as alterações que estão fazendo no método crítico-histórico. A tendência é argumentar que a diferença mais significativa está localizada no fato de que agora o intérprete pressupõe que Deus intervém nos negócios humanos. Em alguns casos as modificações feitas no método são tão significativas que é questionável se ainda é possível chamá-lo de método crítico-histórico. Citemos dois exemplos.

Jerry Gladson examinou a função da forma crítica na erudição adventista para explorar até que ponto ela poderia ser usada por eruditos adventistas. Primeiro, ele reconheceu o problema:

“Provavelmente ninguém questionaria o fato de que se a teologia adventista devesse incorporar em si o método da forma crítica, com todas as suas pressuposições, a teologia adventista conforme agora a conhecemos deixaria de existir, apenas para ser suplantada por uma metodologia evolucionista”.3

Para Gladson, o método crítico em sua forma modificada significaria a disposição de reconhecer que há na Bíblia diferentes gêneros literários: “Provavelmente nenhum adventista do sétimo dia discordaria da identificação de gêneros literários específicos dentro da Bíblia por si. Muito claramente as Escrituras contêm gêneros literários… Seria muito razoável – com um modelo inspiracional – ver Deus dando uma revelação de si mesmo e sua verdade nas formas literárias aceitas da época”.4 Mas pode este reconhecimento ser chamado de um tipo de forma crítica? Gladson estava ciente do problema: “Seria uma coisa, porém, se a forma crítica parasse com a mera rotulação de gêneros. Mas os críticos não estão contentes com isto. De fato, o processo descritivo é apenas um prelúdio do objetivo real – ficar por trás do texto e traçar o desenvolvimento do gênero”.5 Sua conclusão final era a de que o teólogo adventista “não deve desconsiderar a evidência mostrada pela forma crítica. Ele está disposto a aceitar a classificação de gêneros de um modo geral, mas distingue entre ela e a origem pressuposicional dos gêneros”.6 O que ele está sugerindo, em princípio, já havia sido feito por intérpretes cristãos muito antes de existir um método crítico-histórico;7 donde se deve indagar se é correto chamá-lo de forma crítica.

Um segundo exemplo é encontrado em uma dissertação escrita por Niels-Erik A. Andreasen sobre o uso da tradição crítica por eruditos adventistas. Ele reconheceu o problema que enfrentamos: “A ênfase da tradição crítica sobre a primazia das tradições pré-literárias (no sentido de pré-escriturísticas) rebaixaria nossa opinião de revelação e assim seria inaceitável como método”.8 Ele então sugeriu:

“Aceitamos a existência de analogias comuns no Oriente Próximo [sic] das leis, costumes sociais, práticas religiosas e formulações literárias. Seria, assim, adequado perguntarmos acerca de ‘tradições’ ou analogia por trás dos costumes, práticas e formulações literárias com a compreensão de que a qualidade revelatória/inspiracional de tais analogias está na adoção ou uso delas no Antigo Testamento”.9

A sugestão é boa, mas é adequado chamarmos o estudo de costumes e práticas comuns em Israel e no antigo Oriente Próximo de “Tradição Crítica”?

Douglas R. Clark e John C. Brunt editaram dois volumes de uma introdução à Bíblia para ensino de nível colegial em que parece que encontramos a plena aplicação de uma abordagem crítico-histórica modificada ao estudo das Escrituras.10 Esses volumes foram escritos para serem usados não somente por estudantes adventistas, mas por outros que “levam a sério tanto a erudição atualizada quanto uma atitude positiva de fé”.11

As duas possíveis audiências tornaram os escritores cuidadosos em não promoverem uma posição adventista ao longo dos documentos. Isto às vezes torna difícil saber onde os autores baseiam alguns dos problemas metodológicos. Contudo, em muitos casos, a metodologia dos autores é muito clara. Aqui temos uma boa oportunidade para examinar os resultados do uso de um método crítico-histórico modificado e o seu impacto sobre certas áreas importantes da interpretação bíblica adventista.

Deve ser afirmado claramente que os teólogos adventistas que usam a abordagem crítico-histórica modificada (aqueles com uma mera atitude crítica, por assim dizer, que, em alguns casos, e por alguma razão lógica, não aceitam como significado manifesto o que a Bíblia diz) creem que as Escrituras são inspiradas por Deus e que elas contêm uma mensagem de salvação para a raça humana. Mas, a fim de reconciliar uma abordagem crítica com a revelação/inspiração da Bíblia, eles têm de definir revelação e inspiração de um modo que permita uma atitude      crítica com respeito às Escrituras. Eles fazem algumas concessões aos postulados da erudição crítica, porque creem que até certo ponto tal erudição é útil para a devida interpretação da Bíblia. É sua firme convicção que, no uso desta abordagem às Escrituras, eles não estão tentando destruir a Igreja e/ou sua mensagem. Este compromisso deve ser reconhecido.        

A crítica histórica modificada e os ensinos básicos da Bíblia

Exploramos brevemente três grandes áreas da interpretação bíblica que são extremamente importantes na teologia e doutrina adventista: criação, lei e profecias apocalípticas. Estas áreas têm um impacto direto sobre como compreendemos a origem da existência humana neste planeta, a doutrina da lei e do sábado, a interpretação profética adventista, a autocompreensão da Igreja e sua missão e mensagem ao mundo. Assim, exploramos os resultados de como a aplicação da abordagem crítico-histórica modificada afeta estas áreas específicas.

1. Narrativa da criação. Vários eruditos adventistas têm aplicado o método crítico-histórico modificado no estudo de Gênesis 1. Entre eles está Larry Herr, cujo objetivo era mostrar “como poderia o uso do método crítico-histórico no estudo da Bíblia afetar a interpretação de Gênesis 1”.12 Herr argumenta que o escritor bíblico estava dirigindo um importante assunto à sua audiência e usou a imagem e a linguagem, pois assim a Bíblia poderia ser facilmente compreendida. Herr coloca, ainda, o capítulo dentro da história e cultura do antigo Oriente Próximo e conclui que o autor está usando a cosmologia antiga (organização e operação do cosmo) para comunicar uma mensagem específica, uma cosmogonia, ou uma compreensão da origem básica do mundo.

Portanto, a chave para a interpretação da narrativa da criação encontra-se, de acordo com Herr, nas cosmologias do antigo Oriente Próximo. As cosmologias, acrescenta ele, “mudam ao longo da história como o conhecimento muda, de sorte que podemos distinguir a cosmologia de Gênesis 1, por exemplo, da cosmologia prevalecente hoje”.13 Grande parte de sua análise do texto bíblico serve ao propósito de mostrar que a cosmologia de Gênesis 1 é antiquada e incompatível com o conhecimento científico moderno. Esta perspectiva particular parece ser apoiada por Douglas R. Clark quando ele escreve que Gênesis 1 e 2 “celebram a criação da Terra e do universo como os antigos os percebiam”.14

Isto significa que não há diferença fundamental entre os resultados da abordagem crítico-histórica tradicional e a modificada. Ambas relegam a narrativa à categoria de histórias do antigo Oriente Próximo. Todavia, Herr argumentará que a cosmologia de Gênesis 1 é significativa no sentido de que ela é o veículo usado pelo escritor bíblico para comunicar uma verdade válida e permanente, a saber, que “o cosmo foi criado pelo único Deus verdadeiro de uma maneira miraculosa e ordenada.”15 É a cosmogonia de Gênesis 1, que diz acerca da origem básica do mundo, que deve ser preservada e não sua cosmologia. Herr provavelmente asseveraria que é ali que os elementos da revelação e inspiração devem ser localizados na narrativa.

Em certo sentido, Herr tem ido além do que muitos eruditos crítico-históricos tradicionais estariam dispostos a declarar. Ele modificou o método apenas para encontrar um lugar na narrativa em que o divino ainda está ativo. Rejeitou uma das pressuposições do método, mas o método em si permanece o mesmo. A tendência é argumentar que a narrativa da Criação não está descrevendo como Deus trouxe tudo à existência, mas que Ele é o criador de um mundo ordenado. Esta foi também a conclusão tirada por Richard L. Hammill. Ele afirmou que “através do processo inspiração-revelação, Deus concedeu a verdade acerca da criação que não poderia ser aprendida pela observação e a razão humana – a saber, que tudo o que existe deve sua origem a Deus que por sua palavra falada fez surgirem as coisas que antes não tinham nenhuma existência […] Deve ser feita uma divisão entre tal verdade cosmogônica e teológica e os detalhes cosmológicos extraídos da cultura da época”.16

Clark resumiu o assunto, declarando: “O relato bíblico trata o ‘quem’ da criação mais do que qualquer outra preocupação”.17 E Raymond F. Cottrell prefere usar os termos “mensagem/verdade revelada” e a “forma historicamente condicionada” da narrativa da criação. A verdade é que Deus é o criador e mantenedor do universo e não como Ele criou.18

Os eruditos do Antigo Testamento geralmente reconhecem que o escritor bíblico acreditava que o que ele estava escrevendo em Gênesis 1 aconteceu da maneira como ele o estava contando.19 Mas o uso modificado do método crítico-histórico não parece considerar a intenção do autor como significado manifesto. É no uso do aspecto crítico do método que o intérprete é forçado a suscitar dúvidas acerca da fidedignidade do que o texto está claramente dizendo (crítica de conteúdo). Deve-se esperar que a Igreja resista à aplicação da versão modificada da abordagem crítico-histórica à narrativa da criação ou ao relato da queda de Adão e Eva (Gênesis 3).

2. A origem da lei. A crítica erudita tem rejeitado a descrição bíblica da entrega da lei a Israel no monte Sinai. A opinião prevalecente é a de que a lei é provavelmente de origem pós-exílica, embora alguns elementos dela remontem aos tempos pré-exílicos. A formulação dos códigos legais em sua forma final se desenvolveu por meio de um longo processo. O crítico-histórico erudito, usando as ferramentas críticas apropriadas, afirma ser capaz de reconstruir esta história.              

Neste processo, a origem e o desenvolvimento do sistema legal israelita é reconstruído ao longo das linhas de processos sociológicos que não levam em conta a intervenção divina nos negócios humanos.       

Os eruditos adventistas que usam a versão modificada do método crítico-histórico não têm descrito como ele é aplicado ao material legal do Antigo Testamento. Douglas R. Clark tratou do assunto, mas é difícil saber até que ponto suas opiniões são representativas. Estamos realmente lidando com o assunto da composição do Pentateuco, mas o nosso presente enfoque se relaciona com o material legal.      

Clark inicia sua discussão sobre a lei salientando que o que encontramos no Antigo Testamento em sua forma presente no que concerne à origem do material legal não é excepcional para Israel. Os antigos acreditavam que “todas as leis derivavam diretamente da divindade, não importa qual o seu conteúdo ou natureza De fato, muitos códigos legais do mundo antigo retratam, quer normativa, quer graficamente, a fonte divina do material”.20 Ele parece sugerir que é em comparação com esta prática do antigo Oriente Próximo que precisamos interpretar a narrativa da entrega da lei conforme registrada em Êxodo.             

Clark aceita que Deus falou a Moisés no Sinai e que algo do material que encontramos no Pentateuco remonta a essa experiência.21 Mas ele não nos informa quanto do material remonta a Moisés. Concernentemente aos dez mandamentos, ele declara:

“Muitos eruditos acham que os dez mandamentos conforme escritos em tábuas de pedra eram provavelmente extremamente breves: ‘Não terás outros deuses diante de mim’, ‘Lembra-te do dia de sábado’, ‘Não matarás’, etc. Uma comparação com a lista de Deuteronômio 5 indica variação suficiente para apoiar a ideia”.22

Aqui está a abordagem desenvolvimentista crítico-histórica para as formulações legais, segundo a qual, leis simples se desenvolveram por meio de um longo período de tempo, tornando-se mais complexas e flexíveis a fim de tratar das necessidades sociais do povo. A implicação é a de que é impossível conhecer exatamente as leis que Deus outorgou aos israelitas no Sinai. O relato histórico da origem da lei conforme registrado na Bíblia é significativamente modificado e é feito uma reconstrução histórica, usando-se uma metodologia crítico-histórica.

A forma atual do livro de Êxodo testifica que todas as leis registradas ali foram dadas por Deus a Moisés. Mas o uso modificado do método crítico-histórico conclui que há por trás do texto uma longa história de desenvolvimento. Por exemplo, muitas das leis do código da aliança “assumem existência fixa em comunidades agrárias como aquelas dos primórdios de Israel durante o período dos juízes”.23 A implicação é que elas dificilmente poderiam ter existido na forma em que as temos na Bíblia durante o tempo de Moisés e que, portanto, não foram dadas por Deus a Moisés precisamente como declara o texto bíblico.

Com respeito ao material de Deuteronômio, Clark acha atraente a posição de Moshe Weinfeld:

“Está além de dúvida que o livro de Deuteronômio contém leis antigas do período dos Juízes ou mesmo do tempo de Moisés. Mas também contém um elemento do período Ezequias-Josias, e esse é o elemento ligado com a centralização do culto. Finalmente, há também um elemento josiânico que acha expressão na edição literária final do livro”.24

Comenta Clark: “Se é este o caso, temos provavelmente outra ilustração da “autoria” antiga e inspirada como um projeto ou coleção comunitária (talvez sobre um longo período de tempo) em vez de simplesmente os esforços criativos de um só indivíduo”.25 Devido ao seu respeito pelas Escrituras, ele introduz o elemento de inspiração divina que muitos críticos eruditos simplesmente ignoram.

Mas sendo que Clark aceita a conclusão básica dos críticos eruditos no que concerne ao desenvolvimento histórico do material legal do Antigo Testamento, contra o que o próprio texto bíblico declara explicitamente, ele é forçado a ampliar sua definição de inspiração. Deus não está mais revelando sua vontade a um profeta; Ele está inspirando uma comunidade a criar leis baseadas nos desafios que ela enfrenta. Ele parece estar falando sobre orientação divina, mas não sobre inspiração divina.

Niels-Erik A. Andreasen declara que “os adventistas do sétimo dia veem um elo muito mais íntimo e direto entre os materiais do Antigo Testamento e os autores de suas formulações literárias, e pressupomos ou sugerimos uma opinião de revelação que dá muita ênfase ao autor individual. Em nosso ponto de vista, as Escrituras são inspiradas por causa de uma experiência revelatória de autores individuais, não uma experiência revelatória de um povo em adoração, dos dirigentes de tal adoração, nem o processo da lembrança de Israel da história passada, etc”.26

Da perspectiva adventista a questão fundamental quando se lida com este problema é a autoridade da lei. Baseados no princípio de que os dez mandamentos, conforme os encontramos na Bíblia, vieram do Senhor e, portanto, têm absoluta autoridade sobre nós? A sugestão de que Deus estava falando por meio da comunidade ou do processo de codificação é demasiado nebulosa e carece de claro apoio bíblico para prover um fundamento sólido e permanente para uma lei divina que é autorizada ao longo do tempo e da cultura.27 A versão modificada do método crítico-histórico tem provido para nós uma descrição sociológica da origem da lei israelita, supostamente sob orientação divina. Se tal conclusão for correta, a qualidade normativa dessa lei está seriamente ameaçada.

3. Interpretação apocalíptica. No pensamento adventista, a interpretação dos textos bíblicos apocalípticos é de extrema importância. De fato, os adventistas se definem a si mesmos como um movimento apocalíptico, proclamando o futuro aparecimento de Deus na história humana de uma maneira majestosa que trará um fim às modernas instituições sociais, religiosas, opressivas e corruptas. O pensamento apocalíptico está tão firmado em nossa consciência e identidade como Igreja que tentar esmiuçá-lo é arriscar a existência deste movimento. Qualquer sistema de interpretação que pareça ameaçar nossa compreensão da literatura bíblica apocalíptica encontrará sincera oposição da Igreja. Tem sido sempre a posição da Igreja que nosso sistema de interpretação seja aquele provido pelo próprio texto bíblico e que, portanto, permaneça inegociável.

A abordagem crítico-histórica à apocalíptica bíblica a despoja de qualquer elemento preditivo. Segundo este ponto de vista, a natureza desse tipo de literatura é determinada pelas necessidades culturais do povo a quem ela foi dirigida. Segundo esta abordagem sociológica, povos oprimidos encontraram esperança na formulação de um futuro em que os poderes opressivos serão totalmente destruídos e estabelecido um sistema divino de governo. Os autores de livros tais como Daniel e Apocalipse estavam escrevendo para suas próprias comunidades, encorajando-as e insuflando esperança onde dificilmente havia alguma. Esses livros, afirma-se, não trazem nenhuma revelação divina de eventos futuros na história do mundo.

O método crítico-histórico modificado partilha muitos desses sentimentos e conclusões. É fundamentalmente preterista em seu enfoque. Richard Coffen defende vigorosamente uma abordagem preterista na interpretação do Apocalipse.28 João estava escrevendo à igreja do primeiro século d.C., e não descrevendo a história da Igreja durante os séculos vindouros. Coffen é cuidadoso em ressaltar que o livro tem sido valioso para futuras gerações.

“Isto não significa que o Apocalipse não tem nenhum significado para as gerações futuras aos dias de João. Parece que cada geração sucessiva de cristãos levou a sério a mensagem apocalíptica de João e dela obteve esperança. Todavia, porque João escreveu o Apocalipse para seus amigos, o erudito bíblico procurará os eventos corretos dos primeiros séculos para possíveis cumprimentos iniciais da visão de João”.29

Esta é uma curiosa declaração. Coffen crê que a mensagem de esperança codificada no simbolismo do Apocalipse é ainda significativa para nós, mas não explica qual é essa mensagem. Ele parece considerar o livro como profético, cujas profecias se cumpriram nos primeiros séculos, mas chama os cumprimentos de “cumprimentos iniciais”. Significa isto que as profecias apocalípticas do Apocalipse têm múltiplos cumprimentos? Ele não responde à pergunta. Entretanto, Coffen convida os adventistas a “reavaliar e reformular as pressuposições que eles adotam para o Apocalipse”.30 Segundo ele, se isto deve ser feito, deve ser feito ao longo das linhas do preterismo.31

Alden Thompson escreveu um capítulo sobre Daniel em Introducing the Bible e provê outra oportunidade para comparação e análise.32 Em termos de datação do livro, ele parece inclinar-se para uma data do sexto século.33 Ele descreve as diferentes abordagens usadas na interpretação de Daniel, sem explicitamente aderir a alguma delas. Contudo, ele simpatiza muito com a posição seguida pelo erudito evangélico John E. Goldingay em seu comentário de Daniel.34 Segundo Thompson, Goldingay incorporou em sua interpretação preterista elementos idealistas, o que quer dizer que ele aceitou pressuposição crítica, segundo a qual o livro de Daniel contém uma mensagem para a comunidade pós-exílica, e deveria ser interpretado à luz da história desse período. Mas, ao mesmo tempo, Goldingay admitiu as múltiplas aplicações do material profético.35

É difícil saber até que ponto Thompson está disposto a apropriar-se das opiniões de Goldingay. Mas a combinação da erudição crítica e as interpretações idealistas de Daniel não é nada novo para os adventistas. Desmond Ford fez um esforço hercúleo para fundir os dois, mas a Igreja rejeitou suas opiniões. Os adventistas creem que Daniel e Apocalipse contêm profecias que cobrem toda a extensão da história e revelam o plano de Deus para sua Igreja, particularmente no final do conflito cósmico. A fusão do preterismo com o historicismo enfraquece e poderia até mesmo destruir a compreensão adventista da mensagem desses livros e a função atual da Igreja.

Resumos e conclusões

Nossa exploração do uso por eruditos adventistas do método crítico-histórico modificado revelou que as modificações que eles introduziram são mínimas e consistem principalmente do reconhecimento de que Deus ainda está em atividade na produção da forma final do texto. Quando esta nova abordagem é aplicada aos principais assuntos doutrinais adventistas, o resultado torna-se prejudicial às doutrinas adventistas e à compreensão bíblica da natureza da inspiração e autoridade das Escrituras.36

Os eruditos adventistas que defendem a versão modificada têm aceito alguns dos mais importantes resultados produzidos pelo método crítico-histórico. A existência de quatro fontes hipotéticas (JEDP) usadas na produção do Pentateuco parece ser reconhecida.37 A crítica de redação também parece ser aceita como o processo por meio do qual o texto alcançou sua presente forma.38 Isto poderia levar à convicção de que a Bíblia não é sempre historicamente confiável, tornando necessário reconstruir a história de Israel. Tem-se a impressão de que os que usam a metodologia crítica modificada também são favoráveis à ideia da evolução social de muitas, se não de todas, as instituições israelitas. Há uma forte tendência para considerar a maior parte da Bíblia como determinada culturalmente.39 Em alguns casos, até mesmo notamos a tendência de rejeitar a historicidade de uma narrativa bíblica por causa de sua acentuada ênfase em milagres (exemplo, narrativa de Jonas).

É verdade que muitos eruditos evangélicos que têm uma elevada opinião da Bíblia têm usado o método crítico-histórico modificado em seu estudo da Bíblia. Mas para os adventistas é muito mais difícil seguir o seu exemplo por causa da centralidade das Escrituras no pensamento e estilo de vida adventistas. Entre os adventistas a ausência de uma declaração de crenças de natureza permanente e inalterável torna nossas declarações doutrinais vulneráveis à mudança de significado e modificação se nossa hermenêutica mudar. Não é este o caso em muitas denominações cristãs. Portanto, o uso do método crítico-histórico tem apresentado menos ameaça às igrejas que têm documentos de credo. O fato de que a Bíblia é o nosso único credo significa não apenas que cremos no princípio de sola scriptura, mas também que reconhecemos as Escrituras como única, singular. Ela deve julgar não somente as doutrinas e o estilo de vida, mas também qualquer metodologia bíblica.

Referências
1. Para um recente sumário dos princípios usados pelos crítico-históricos eruditos, veja John J. Collins, “Is a Critical Biblical Theology Possible?” em The Hebrew Bible and its Interpreters, eds. W. H. Propp, B. Halpern e D. N. Fredman (Winona Lake, IN: 1990), p. 2.
2. Veja Jerry Gladson, “Taming Historical Criticism: Adventist Biblical Scholarship in the Land of the Giants”, Spectrum 18.4 (1988): 19-31; Larry Herr, “Genesis 1 in Historical-Critical Perspective”, Spectrum 13.2 (1982): 51; John Brunt, “A Parable of Jesus as a Clue to Biblical Interpretation”, Spectrum 13.2 (1982): 35-43; e Robert M. Johnston, “The Case for a Balanced Hermeneutics”, Ministry 72 (março 1999): 10-12.
3. Jerry Gladson, “Form Criticism and the OT: A Critique”, documento não publicado, outubro de 1974, p. 40.
4. Ibid..
5. Ibid., p. 41..
6. Ibid., p. 44..
7. M. J. Buss, “Form Criticism, Hebrew Bible”, em Dictionary of Biblical Interpretation, vol. 1, ed. John H. Hayes (Nashville: Abingdon, 1999), p. 406-409..
8. Niels-Erik A. Andreasen, “Tradition Criticism: A Seventh-day Appraisal”, documento não publicado, out. 1974, p. 7.
9. Ibid., p. 8..
10. Douglas R. Clark e John C. Brunt, eds., Introducing the Bible, 2 vols (Lanham, MD: University Press of America, 1997)..
11. Ibid., vol. 1, p. xvii..
12. Herr, p. 51..
13. Ibid., p. 52..
14. Douglas R. Clark, “Genesis”, em Introducing the Bible, vol. 1, p. 94..
15. Herr, p. 61..
16. Richard L. Hammill, “Creation Themes in the OT Other than Genesis1 and 2”, em Creation Reconsidered: Scientific, Biblical, and Theological Perspective, ed. James L. Hayward, (Roseville, CA: Associação of Adventist Forums, 2000), p. 260..
17. Douglas R. Clark, “Genesis”, p. 103..
18. Raymond F. Cottrell, “Inspiration and Authority of the Bible in Relation to the Natural World”, em Creation Reconsidered, p. 195, 196, 199, 203..
19. Veja, por exemplo, Claus Westermann, The Genesis Account of Creation (Philadelphia: Fortress, 1964), p. 5..
20. Douglas R. Clark, “Formation of the Old Testament”, em Introducing the Bible, vol. 1, p. 5..
21. Idem, “Leviticus”, em Introducing the Bible, vol. 1, p. 131..
22. Idem, “Exodus”, em Introducing the Bible, vol. 1, p. 118.
23. Ibid., p. 118-119.
24. Moshe Weinfeld, Deuteronomy 1-11 (New York: Doubleday, 1991), p. 84.
25. Douglas R. Clark, “Deuteronomy”, em Introducing the Bible, vol. 1, p. 160.
26. Andreasen, p. 7-8.
27. Para um comentário semelhante, veja o erudito adventista Giovanni Leonardi, “Allaricerca de una lettura comune della Bibbia”, Adventus 9 (1995): 34.
28. Richard W. Coffen, “John’s Apocalypse: Some Second Thoughts on Interpretation”, Spectrum 8.1 (1976): 27-31.
29. Ibid., p. 28-29.
30. Ibid., p. 30.
31. Ernest J. Bursey, que escreveu o capítulo sobre “Apocalipse”, em Introducing the Bible, vol. 2, endossa o sistema historicista de interpretação embora não o declare explicitamente (p. 278-278).
32. Alden L. Thompson, “Apocaliptic: Daniel”, em Introducing the Bible, vol. 1, p. 525-544.
33. Ibid., p. 536-537.
34.  John E. Goldingay, Daniel (Dallas: Word, 1989), p. xxxvii-xl.
35. Thompson, “Daniel”, p. 531.
36. É verdade que a hermenêutica adventista tem alguns elementos em comum com a crítica histórica, “mas há significativas diferenças na maneira como os elementos em comum são usados. Note a função dos estudos do ambiente histórico […]. A hermenêutica histórica adventista procura saber como o ambiente contribuiu para os eventos e ensinos à medida que o Espírito Santo transmitia o conteúdo divinamente dado dentro de um ambiente local. Em contraste, o crítico histórico procura saber como tal interpretação dos eventos conforme relatados na Bíblia pôde surgir do ambiente tal como o conhecemos” (George W. Reid, “Another Look at Adventist Hermeneutics”, BRI Shelf-Document, p. 2). É também importante lembrar que muitos dos métodos usados nos estudos crítico-históricos eram usados antes que houvesse um crítico-histórico erudito, mas não eram usados para criticar o conteúdo da Bíblia.
37. Cf. Clark, “Genesis”, p. 90-91; e Alden L. Thompson, Inspiration (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1991), p. 158.
38. Veja, Thompson, Inspiration, p. 168.
39. Esta é uma convicção fundamental para Alden Thompson, e o leva a concluir que a Bíblia é um livro de anotações, não um livro de códigos (veja Inspiration, p. 202, 208, 180-183).

Ángel Manuel Rodriguez, livro “Compreendendo as Escrituras”.

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Meditações Matinais de Ellen White – 2017 – A Caminho do Lar

Meditação Matinal de Ellen White – 2017 – A Caminho do Lar

Meditações Diárias de Ellen White – 2017 – A Caminho do Lar

Meditação Diária de Ellen White – 2017 – A Caminho do Lar

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Índice – janeiro – A Caminho do Lar, 2017

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[31/46]
Subtítulo para o mês: O Livro dos livros
01 16 Ao povo comum
02 17 O alimento do espírito
03 18 A única regra de fé
04 19 Contemple as maravilhas
05 20 Habite em atmosfera celestial
06 21 Uma transcrição da vontade de Deus
07 22 O Plano da Salvação claramente traçado
08 23 Ouvindo a voz de Jesus
09 24 As chaves do Céu
10 25 Sem rival
11 26 Energia criadora
12 27 A morte da natureza carnal
13 28 Um refúgio contra a tentação
14 29 Aprofunde-se
15 30 Lado a lado
16 31 O tema central da Bíblia
17 32 O grande conflito nas Escrituras
18 33 Versículo por versículo
19 34 A mão de Deus na história
20 35 Por que duvidar?
21 36 Ouvintes comparados à boa terra
22 37 Familiarize-se com a verdade
23 38 O exemplo dos bereanos
24 39 Uma influência enobrecedora
25 40 A grande educadora
26 41 A ciência da salvação
27 42 A ciência e a Bíblia
28 43 Conserve os olhos fixos em Cristo
29 44 Enganos dos últimos dias
30 45 A Bíblia – nossa salvaguarda
31 46 Nosso primeiro dever

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Ao povo comum

Meditação Matinal de Ellen White – A Caminho do Lar, 2017.

1° de janeiro – Pág. 16 – Ao povo comum

As palavras que Eu vos tenho dito são espírito e são vida. João 6:63

A Bíblia não foi escrita apenas para os eruditos; pelo contrário, destina-se às pessoas comuns. As grandes verdades indispensáveis para a salvação são apresentadas com a clareza do sol do meio-dia; ninguém errará nem se perderá no caminho, exceto os que seguirem seus próprios julgamentos, em vez da vontade revelada de Deus.

Não devemos aceitar o testemunho de homem algum quanto aos ensinamentos das Escrituras, mas devemos estudar por nós mesmos as palavras de Deus. Se permitirmos que outros pensem por nós, nossa energia e as habilidades que adquirimos se atrofiarão. Os poderes nobres da mente poderão ficar tão debilitados pela falta de exercício nos temas que mereçam concentração que poderão perder a capacidade de compreender o profundo significado da Palavra de Deus. A mente se expandirá se for empregada para verificar como os assuntos da Bíblia se relacionam entre si, e na comparação de passagem com passagem, coisas espirituais com coisas espirituais.

Nada há mais apropriado para fortalecer o intelecto do que o estudo das Escrituras. Nenhum outro livro é tão capaz de elevar nossos pensamentos e dar vigor às faculdades como as grandiosas e enobrecedoras verdades da Bíblia. Se a Palavra de Deus fosse estudada como deveria ser, as pessoas teriam a mente mais esclarecida e firmeza de propósito, coisas raramente vistas nos dias de hoje.

É muito pequeno o benefício que se tira de uma leitura apressada da Bíblia. Pode-se ler a Bíblia inteira sem que se veja sua beleza ou se compreenda sua profundidade, nem seus significados escondidos. Tem mais valor uma passagem estudada até que seu significado fique claro, e sua relação com o plano da salvação se torne evidente, do que percorrer os olhos por vários capítulos sem um propósito definido e sem que se obtenha alguma instrução. Esteja sempre com sua Bíblia. Leia-a sempre que tiver oportunidade; decore as passagens. Mesmo andando pelas ruas, você pode ler uma passagem e meditar sobre ela, fixando-a na mente.

Não podemos obter sabedoria sem fervorosa atenção e estudo acompanhado de oração. […] Deve haver cuidadosa pesquisa, reflexão e oração. Um estudo assim será ricamente recompensado. […]

A Bíblia nunca deveria ser estudada sem oração. Antes de abrir suas páginas, devemos pedir a iluminação do Espírito Santo, e a receberemos. Caminho a Cristo, págs. 89 a 91.

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