Introdução
Conhecemos acerca de Deus somente por meio de sua revelação, e os cristãos têm geralmente reconhecido as Escrituras como a revelação pública e específica do pensamento e da vontade divina para nós. Além da revelação especial de Deus nas Escrituras (2Timóteo 3:16), os teólogos também falam sobre uma revelação geral por meio da natureza, pela qual todas as pessoas têm algum conhecimento de um ser supremo. Deus nos tem especificamente brindado com tal pensamento nas Escrituras (Romanos 1:18 a 20). Este capítulo discutirá a evidência bíblica para a inspiração das Escrituras e para os vários modelos usados em sua articulação. Sugerirá uma nova compreensão da evidência baseada em pressuposições bíblicas e uma cuidadosa atenção ao completo alcance da evidência bíblica.
Revelação, Escrituras e interpretação
Com o advento das eras moderna e pós-moderna, muitos cristãos têm concluído que uma revelação cognitiva especial de Deus é impossível. Infelizmente, esses teólogos procuram interpretar as Escrituras partindo da suposição de que elas foram escritas apenas por seres humanos. Estão dogmaticamente persuadidos de que Deus não pode comunicar conhecimento aos seres humanos. Portanto, as Escrituras e a teologia são o produto das sempre mutáveis imaginações humanas. Desta maneira, esses teólogos negam a convicção de Pedro de que nas Escrituras não encontramos mitos, mas verdades (2Pedro 1:16).
Autor e interpretação
Sempre que lemos um texto, admitimos corretamente que alguém o escreveu. Nem sempre precisamos conhecer o autor de um texto para compreender seu significado, mas tal conhecimento pode adicionar profundidade ao significado.
A mesma dinâmica ocorre quando lemos as Escrituras. Na maioria das vezes compreendemos o significado manifesto nos textos. Se estamos convencidos de que Deus é o autor do que lemos nas Escrituras, nossa compreensão teológica disto diferirá consideravelmente de um leitor que está persuadido de que as Escrituras foram escritas por pessoas religiosas bem-intencionadas descrevendo suas próprias experiências. Desse modo, a compreensão do que são o autor ou autores das Escrituras torna-se uma pressuposição essencial com a qual crentes e teólogos elaboram sua interpretação das Escrituras, formulam os ensinos cristãos e experimentam seu poder transformador na vida diária. Resumindo, nossa compreensão de revelação-inspiração (R-I) torna-se uma suposição necessária para nossa hermenêutica das Escrituras e sua teologia.1
Evidência bíblica
Sabemos que alguém é o autor das Escrituras. Todavia, como sabermos quem era a pessoa ou pessoas? Respondendo a esta pergunta, começamos prestando minuciosa atenção ao que os autores bíblicos têm a dizer sobre a origem das Escrituras. Ampla evidência do Antigo e do Novo Testamento nos diz que os autores bíblicos consideravam a Deus como o Autor das Escrituras. As passagens clássicas utilizadas na formulação da doutrina bíblica das Escrituras são 2Timóteo 3:15 a 17 e 2Pedro 1:20 e 21.
O theopneustos de Paulo
A declaração de Paulo sobre a origem das Escrituras é breve e geral. “Toda a Escritura é inspirada por Deus [pasa graph theopneustos]” (2Timóteo 3:16). Conquanto nossa palavra “inspiração” venha do equivalente latino divinitus inspirata, Paulo usa a palavra theopneustos, que literalmente significa “Deus soprou” ou “soprada por Deus”. Não temos nenhuma ideia acerca do que um “sopro divino” poderia significar quando aplicado literalmente à geração das Escrituras. Contudo, podemos tentar compreendê-lo metaforicamente. Assim compreendido, o texto diz que Deus está envolvido diretamente na origem das Escrituras, embora não explique o modo e pormenores da operação divina.
O pheromenoi de Pedro
As observações de Pedro sobre a origem das Escrituras são mais variadas, analíticas e específicas. Declarando que “homens falaram da parte de Deus sendo dirigidos [pheromenoi, “sendo movidos”] pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:21), Pedro realça explicitamente o fato de que seres humanos escreveram as Escrituras sob a direção do Espírito Santo. Em resumo, tanto Deus quanto seres humanos estiveram envolvidos na produção das Escrituras.
No entanto, Pedro qualificou cuidadosa e vigorosamente a intervenção de agentes humanos: “Sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém [ginetai] de particular elucidação [epiluseōs]” (2Pedro 1:20). Dado o contexto em que ele usa a palavra grega epilusis, Pedro pode estar argumentando que mesmo quando seres humanos estavam envolvidos em escrever as Escrituras, eles não originaram as explanações, exposições, ou interpretações dos vários assuntos ali apresentados.
Em uma sentença repetida, Pedro explica que “não foi pela vontade humana que a profecia foi dada/derivada [de pherō], mas homens falaram da parte de Deus, sendo dirigidos [pheromenoi] pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:21). Pedro outra vez nega a origem humana das Escrituras excluindo a vontade de seres humanos. O que fizeram os seres humanos? Eles falaram [elalēsan], proclamaram e comunicaram as explanações, exposições e interpretações que se originaram em Deus como autor. A fala e a escrita são expressões do pensamento. Assim, a direção divina acompanhou os escritores da Bíblia não somente quando eles escreveram, mas também quando falaram. O que eles disseram era a manifestação dos pensamentos e ações de Deus.
O problema por trás de revelação-inspiração
Notavelmente, embora Pedro e Paulo afirmem de modo inequívoco o direto envolvimento de Deus na produção das Escrituras, eles não explicam as maneiras concretas pelas quais as agências divinas e humanas interagiram, nem detalham seu modus operandi específico. Em parte alguma as Escrituras tratam desse problema. Prover respostas de nossa própria iniciativa é envolver-se em uma tarefa teológica, porque a teologia busca compreensão.
Antes, as declarações de Paulo e de Pedro ensinam significativamente que Deus é o autor das Escrituras, de todas as Escrituras (2Timóteo 3:16; 2Pedro 1:20 e 21). Os teólogos devem procurar um meio de compreender como isto ocorreu, e, ao mesmo tempo, esclarecer sobre o lado humano que aparece na maneira pela qual as Escrituras foram concebidas e escritas.
As várias respostas dadas a esta indagação ao longo da História têm se tornado importantes pressuposições hermenêuticas. Elas influenciam decididamente todo o trabalho da pesquisa exegética e teológica, até mesmo a ponto de dividir a cristandade em duas escolas distintas de pensamento entre as fileiras denominacionais.
Método e modelos
Antes de considerarmos brevemente alguns importantes modelos de interpretação de R-I, fazemos uma “pausa” metodológica. Precisamos (1) averiguar com precisão o significado técnico de R-I, (2) determinar sobre que evidência os teólogos desenvolvem sua compreensão de R-I, e (3) notar a partir de quais pressuposições hermenêuticas eles desenvolvem seus pontos de vista. Isto nos ajudará a compreender o que outros têm dito sobre este problema e o que devemos ter em mente em nossa própria interpretação dele.
Operando definição de revelação-inspiração
Quando os teólogos lidam com a doutrina R-I, eles usam as palavras “revelação” e “inspiração” em um sentido técnico. “Revelação amplamente se refere ao processo por meio do qual as matérias das Escrituras surgiram na mente dos profetas e apóstolos. “Inspiração”, geralmente falando, se refere ao processo por intermédio do qual as matérias foram comunicadas à mente dos profetas e apóstolos nas formas oral e escrita. Desse modo, a revelação é um processo cognitivo, ao passo que a inspiração é principalmente um processo linguístico.
É necessária uma palavra de precaução a fim de evitar confusões. Os escritores bíblicos não usaram a palavra “inspiração”. Além disso, nem os autores bíblicos, nem Ellen G. White utilizaram as noções de “revelação” e “inspiração” no sentido técnico-analítico com que as estamos usando neste capítulo. Eles as usaram intercambiavelmente. Segundo o contexto, eles podem se referir à origem das matérias na mente dos profetas e apóstolos, ao processo de comunicá-las em um formato escrito, ou a ambos. Não é de surpreender que um grande número de teólogos adventistas e evangélicos façam o mesmo. Uma compreensão adequada da origem das Escrituras, porém, requer uma análise cuidadosa dos processos cognitivos e literários envolvidos.
A evidência
Sobre que evidência os teólogos desenvolvem suas interpretações de R-I? Sendo que hoje não se observa diretamente R-I em andamento, os teólogos operam a partir dos resultados de R-I, a saber, das Escrituras. Os teólogos têm reconhecido duas linhas de evidência nas Escrituras. São a doutrina das Escrituras e os fenômenos das Escrituras. Sendo que neste capítulo já lidamos com a doutrina bíblica das Escrituras, introduziremos brevemente a noção dos “fenômenos” das Escrituras.
Os fenômenos escriturísticos. Quando os teólogos falam sobre os “fenômenos” das Escrituras, geralmente não estão se referindo aos ensinos bíblicos delas, mas às suas características como uma obra escrita e a todas as suas matérias. Consequentemente, embora o acesso à “doutrina bíblica das Escrituras” envolva análise teológica, o acesso aos “fenômenos” das Escrituras ocorre por meio da análise histórica e literária. A primeira linha de evidência realça a função da agência divina em R-I, ao passo que a segunda revela a função das agências humanas. A falha em integrar com adequação ambas as linhas de evidência conduz respectivamente às interpretações fundamentalistas ou liberais de R-I.
Hermenêutica e revelação-inspiração
É evidente que “chegou o tempo em que os adventistas do sétimo dia devem mudar-se das preocupações apologéticas para a tarefa de desenvolver uma mais construtiva teologia de inspiração”.2 Mas como desenvolveremos a compreensão de um tema que as Escrituras tratam indiretamente? O que se requer é simplesmente uma tarefa pioneira e construtiva em teologia sistemática. Sendo que toda interpretação teológica baseia-se em pressuposições, a formulação de uma interpretação adventista de R-I poderia beneficiar-se analisando a maneira pela qual outras interpretações foram concebidas.
O trabalho de teologia sistemática aqui conjecturado deve tomar em consideração três diferentes níveis de hermenêutica: (1) a hermenêutica do texto, (2) a hermenêutica dos problemas teológicos, e (3) a hermenêutica dos princípios filosóficos. A interpretação de textos bíblicos e questões teológicas é condicionada pela doutrina de R-I, que, por sua vez, depende dos princípios teológicos pressupostos pelo exegeta.
Assim, quais são as pressuposições envolvidas na compreensão de R-I? Quem decide que pressuposições devem ser usadas? Iniciemos com a última interrogação. Sendo que a evidência bíblica mostra que o fenômeno R-I sempre envolve ações divinas e humanas, os teólogos inevitavelmente levam suas próprias concepções das naturezas divina e humana a ter um desempenho em suas doutrinas de R-I. Esses são princípios filosófico-hermenêuticos porque eles são aceitos como princípios na hermenêutica bíblica e teológica. A natureza e ações divinas, bem como a natureza e ações humanas, têm sido variavelmente interpretadas por teólogos cristãos. Diferentes opiniões da natureza divina e da natureza humana têm produzido diferentes interpretações de R-I.
Recapitulemos nossa discussão nesta seção metodológica. Primeiro, decidimos usar as palavras “revelação” e “inspiração” no sentido técnico para favorecer a clareza. Segundo, percebemos que uma compreensão adequada de R-I deve começar prestando-se atenção ao que os escritores bíblicos dizem sobre a origem das Escrituras e considerando-se a obra real que eles produziram (fenômenos das Escrituras).
Terceiro, aprendemos que as doutrinas de R-I são interpretações que envolvem não somente dados bíblicos, mas também pressuposições. Qualquer doutrina de R-I é uma interpretação que depende da maneira pela qual os teólogos compreendem a natureza e ações de Deus e dos seres humanos. Tendo em mente estes esclarecimentos metodológicos, voltemos à história das interpretações de R-I.
Modelos de revelação-inspiração
Os teólogos têm interpretado R-I de muitas maneiras. Contudo, a maioria das explanações cai nos dois principais modelos de interpretação, a saber, os modelos clássico e moderno. Precisamos nos familiarizar com esses modelos, porque eles têm influenciado o desenvolvimento do pensamento adventista sobre R-I.
Inspiração verbal. Durante os primeiros dezoito séculos após a morte de Cristo, a doutrina de R-I não foi um assunto controvertido. Seguindo o exemplo de Cristo, seus seguidores tomavam o ensino bíblico acerca de sua inspiração em sentido literal. Brevemente falando, eles admitiam que Deus, por meio da instrumentalidade humana, escreveu a Bíblia.
Enquanto os teólogos clássicos maximizavam o papel da atividade divina em R-I, eles estavam minimizando o papel das agências humanas, vendo os profetas e apóstolos meramente como instrumentos usados por Deus para escrever as próprias palavras das Escrituras. Uma vez que se acreditava que Deus havia escrito as palavras das Escrituras, esta noção, que levou a uma elevada opinião da autoridade bíblica, veio a ser conhecida como a teoria da inspiração “verbal”. As palavras da Bíblia são as palavras de Deus.
Este ponto de vista forma uma compreensão filosófica extra-bíblica de hermenêutica. A substituição da noção bíblica de Deus pela ideia grega de um Deus atemporal tornou a ideia da soberana providência divina um fenômeno casual, irresistível, todo-abrangente. Por volta do quinto século d.C., Agostinho já estava usando essas ideias, ligando a noção de vontade e atividade divinas com a natureza atemporal de Deus.3 Séculos depois, isto veio a moldar a compreensão do evangelho por Lutero, bem como a compreensão da inspiração verbal das Escrituras. Consequentemente, a afirmação bíblica de que o Espírito Santo dirigiu a escrita dos profetas foi entendida na suposição de que Deus operava como uma influência soberana irresistível, dominando qualquer iniciativa originada na liberdade humana. Nesta suposição, Deus se torna não somente o autor das Escrituras, mas também o escritor.
Nos séculos dezenove e vinte, teólogos evangélicos usaram a teoria da inspiração verbal para combater o modernismo com seu desafio à teologia cristã tradicional. Operando a partir da perspectiva filosófico-hermenêutica da soberana providência divina, Archibald A. Hodge (1823-1886) e Benjamin B. Warfield (1851-1921), embora negassem o ditado, falaram de inspiração como superintendência divina na confluência das agências divinas e humanas.
A analogia do escultor que cinzela a escultura nos ajuda a visualizar o modo pelo qual a teoria verbal de inspiração concebe a maneira como as agências divinas e humanas operam quando geram os escritos da Bíblia. Como o escultor, e não o cinzel, é o autor da obra de arte, assim Deus, e não o escritor humano, é o autor das Escrituras. Os escritores humanos, como o cinzel, desempenham apenas uma função instrumental.
Os mais notáveis efeitos hermenêuticos da teoria verbal são a recontextualização e a inerrância. (1) Afirmando que um Deus atemporal é o autor e escritor da Bíblia, a inspiração verbal coloca a origem do pensamento bíblico no domínio não-histórico do sobrenatural. Os contextos e matérias históricas são deixados de lado a favor das verdades divinas atemporais.
Essa recontextualização não-histórica tem assumido várias formas. Elas se difundem partindo da depreciação clássica do significado histórico-literal dos textos bíblicos para os significados espirituais alegóricos e para a interpretação fundamentalista das Escrituras, em que cada declaração bíblica é uma comunicação objetiva de verdade absoluta sobrenatural. (2) Estamos mais familiarizados com a noção de inerrância, segundo a qual cada afirmação bíblica é verdade absoluta.
Revelação do encontro. Os tempos modernos geraram uma interpretação radicalmente nova de R-I, baseada em complexos argumentos filosóficos. Friedrich Schleiermacher (1768-1834), o pai da teologia moderna, propôs um esquema que posteriormente seria seguido pelos proponentes da revelação do encontro.
Brevemente falando, a revelação é um encontro divino-humano destituído da comunicação de conhecimento. “Assim, o conteúdo da revelação não é mais considerado como conhecimento acerca de Deus, nem mesmo informação de Deus, mas o próprio Deus”.4 Consequentemente, nem uma só palavra ou pensamento que encontramos nas Escrituras vem de Deus. A revelação do encontro é o oposto da inspiração verbal.
Se a matéria das Escrituras não vem de Deus, então de onde vêm? A resposta é simples: da reação historicamente condicionada dos seres humanos ao encontro pessoal não-cognitivo com Deus. A Bíblia é um livro humano como qualquer outro livro. O estudo de como as matérias das Escrituras se originaram é deixado à investigação histórica.
Admitindo que Deus não contribuiu para as matérias das Escrituras, os críticos históricos veem as Escrituras como o produto de um longo processo de evolução cultural. A imaginação humana, a comunidade e a tradição tornaram-se os fundamentos dos quais os livros totalmente humanos das Escrituras surgiram.
Consequentemente, alguns exegetas creem que a inspiração opera não em indivíduos, mas em toda a comunidade. Segundo esta opinião, a “inspiração” não atingiu diretamente o nível pessoal de pensamentos ou palavras proféticas, mas influenciou o nível social da comunidade dentro da qual os autores das Escrituras viveram e escreveram. Não é de surpreender, as matérias das Escrituras permanecem humanas, não divinas.
A mudança da forma como a inspiração é vista resulta diretamente da aplicação da restrição de Immanuel Kant (1724-1804) das habilidades da razão ao domínio de tempo e espaço.
Os teólogos modernos achavam-se admitindo que Deus é atemporal e que a razão humana não pode atingir objetos atemporais. Dentro desses parâmetros, não pode haver nenhuma comunicação cognitiva entre Deus e o ser humano. Mas o cristianismo gira em torno da noção de que Deus se relaciona com os seres humanos. A revelação do encontro sugere que a relação divino-humana (encontro) ocorre não em nível cognitivo, mas em um nível “existencial” ou “interpessoal”, por meio da alma. Desse modo, a revelação é um encontro divino-humano, real e objetivo, mas não envolvendo qualquer comunicação de Deus.
Os mais perceptíveis efeitos hermenêuticos da teoria de inspiração do encontro podem ser resumidos em duas palavras, recontextualização e crítica. (1) Como a teoria de inspiração verbal levou à recontextualização, assim faz a teoria de revelação do encontro. Enquanto a inspiração verbal admite que as Escrituras revelam verdades objetivas atemporais, a revelação do encontro afirma que as Escrituras apontam para um encontro divino-humano existencial, não-cognitivo. As Escrituras, portanto, não têm nenhum conteúdo revelador, mas é simplesmente um indicador ou testemunha da revelação. (2) Sendo que o conteúdo das Escrituras originou-se (contrariamente às opiniões de Paulo e de Pedro) do impulso e sabedoria de seres humanos, devemos submetê-lo à crítica científica e utilizá-lo para fins religiosos apenas metaforicamente. (3) Devido à origem humana das matérias bíblicas, o intérprete admite que as Escrituras contêm erros não apenas em detalhes históricos, mas também em tudo o que ela ensina expressamente, até mesmo ensinos acerca de Deus e sua salvação.
O recente debate adventista
Como essas ideias afetam hoje os adventistas? Talvez Edward Heppenstall tenha descrito adequadamente a maneira geral pela qual a maioria dos escritores adventistas aborda o estudo de R-I, afirmando que “esta Igreja não tem nenhuma doutrina claramente definida e desenvolvida de revelação e inspiração. Temos nos alinhado à posição evangélica ou tradicional.”5
Neste capítulo, nosso objetivo continua sendo muito modesto, tentando apenas descrever, a partir de uma perspectiva geral, os principais modelos de R-I que os teólogos adventistas têm adotado.
Inspiração verbal
No início desta história, os adventistas usaram a inspiração verbal como um argumento apologético contra o deísmo.6 Essa tendência se intensificou após a morte de Ellen G. White, quando os adventistas se defrontaram com o modernismo.
Durante a primeira metade do século vinte, Carlyle B. Haines, por exemplo, tratou do assunto em dois capítulos do seu God’s Book.7 Sua adoção implícita da teoria verbal de inspiração aparece quando ele afirma que “a revelação é inteiramente sobrenatural, e completamente controlada por Deus.”8 “Quer seja lidando ou com revelação ou com fatos dentro do seu conhecimento”, explica Haines, “o escritor da Bíblia necessitava de inspiração para produzir um registro preservado de todo erro e engano.”9 A absoluta inerrância resulta do controle total do agente humano pelo Espírito Santo; Deus está totalmente no controle do processo de escrita, e o agente humano é um instrumento muito passivo. Esse conceito pode ser a compreensão deficiente de R-I mantida por muitos adventistas que ainda não consideraram explicitamente o assunto.10
Inconscientemente, portanto, a teoria de inspiração verbal aceita por teólogos adventistas conservadores, extrai da compreensão agostiniano-calvinista de hermenêutica filosófica pressuposições derivadas de uma determinada visão grega da realidade. Conquanto a teoria de inspiração verbal mantenha uma elevada opinião das Escrituras, de fato nega sua supremacia reveladora (o princípio sola scriptura) na tarefa de formar a teologia cristã, sendo que a própria teoria não está construída sobre fundamentos bíblicos.
Inspiração do pensamento
Ellen G. White influenciou intensamente o pensamento adventista sobre R-I. Por seu exemplo e ensinos, ela se afastou da inspiração verbal e da revelação do encontro. Isto, porém, não desencorajou alguns adventistas, no passado e no presente, de adotar tais opiniões. Procurando compreender R-I tirando indícios dos ensinamentos e experiência profética de Ellen G. White, muitos adventistas têm adotado a ideia chamada “inspiração do pensamento”, convencidos de que sua exposição desse ponto de vista reflete devidamente as opiniões dela sobre inspiração. Assim, por “inspiração do pensamento” queremos dizer, especificamente, a reflexão teológica de alguns eruditos adventistas sobre R-I, supostamente baseada nas opiniões de Ellen G. White sobre inspiração. Essas observações, portanto, não somente afirmam que os pensamentos dos profetas eram inspirados, mas que de um modo muito particular, nas palavras de Ellen G. White, os próprios “homens” eram inspirados.
Uma das mais antigas expressões da inspiração do pensamento entre os adventistas ocorreu em 1883. Ela afirmava: “Nós [adventistas] cremos que a luz dada por Deus aos seus servos é pela iluminação da mente, comunicando assim o pensamento, e não (exceto em casos raros) as próprias palavras em que as ideias devem ser expressas.”11 A ideia de que a inspiração age sobre o pensamento dos escritores bíblicos, e não sobre suas palavras, assinala um claro afastamento da inspiração verbal. Esta declaração inicial foi uma tabuleta ao longo do caminho, não uma teoria.
Oitenta e sete anos mais tarde, Edward Heppenstall articulou essa ideia dentro de um amplo perfil teórico. A obra de Heppenstall veio como uma alternativa à revelação do encontro e um afastamento da inspiração verbal. Rejeitando corretamente o fundamento não-cognitivo da revelação do encontro, Heppenstall sugeriu que a revelação divina ocorria ao nível das ideias, conceitos e ensinos do escritor bíblico na mente do escritor.12 Infelizmente, ele não especificou os meios pelos quais tal revelação conceitual era formada. Também a inspiração, diz Heppenstall, ocorria na mente do escritor. Ele sugeriu que na inspiração o Espírito Santo assumia o controle da mente do escritor humano a fim de garantir “a exatidão daquilo que é revelado”.13 “A inspiração é co-extensiva ao escopo do que é revelado e nos assegura que as verdades reveladas correspondem ao que Deus tinha em mente.”14
Tanto na revelação quanto na inspiração, Deus opera sobre o pensamento, não sobre as palavras. Por meio da revelação, as idéias são geradas na mente do profeta e por intermédio da inspiração essas ideias são fielmente comunicadas. Contudo, a incerteza é introduzida sobre a base de que “um dos fatores desconhecidos na inspiração é o grau do controle do Espírito Santo sobre a mente dos escritores bíblicos”.15 A opinião de Heppenstall inferia que a inspiração divina não se estende às palavras das Escrituras. Consequentemente, ele avança para o que poderia ser chamado de “inerrância do pensamento”. Somente os pensamentos bíblicos, não as palavras, são inerrantes.
Muito convenientemente, por causa da apologética contra as críticas bíblicas e científicas das matérias escriturísticas, o crente pode argumentar que os erros e incoerências são devidos à linguagem imperfeita, não ao pensamento ou verdade imperfeita. Resumindo, segundo a inspiração do pensamento, a divina R-I opera na verdade por trás das palavras, mas deixa de afetar as palavras. Por isso, nas Escrituras temos a verdade infalível apresentada em linguagem falível. A Escritura, portanto, contém erros em assuntos de detalhe que não afetam o pensamento revelado.
Trabalhando a partir da declaração clássica de Ellen G. White sobre inspiração do pensamento, alguns eruditos têm concluído que a inspiração do pensamento opera sobre o processo de pensamento dos escritores bíblicos, mas não consegue alcançar suas palavras. Também admitem uma dicotomia entre pensamento e palavras. Os pensamentos são independentes das palavras. Nas Escrituras, portanto, temos verdades ou pensamentos perfeitos transmitidos em palavras falíveis e imperfeitas. Baseados nisto, eles sugerem que as Escrituras apresentam uma limitada errância verbal em matérias de detalhe ao nível das palavras. A mensagem salvífica das Escrituras, porém, permanece inerrante.
Em 1991, vindo precisamente da perspectiva de estudos bíblicos, Alden Thompson elevou o problema da inspiração bíblica ao primeiro plano da discussão adventista.16 Um ano depois, um grupo de teólogos adventistas publicaram uma resposta crítica à sua sugestão.17
Thompson distingue entre revelação e inspiração. Revelação é a comunicação sobrenatural de pensamentos e verdade aos profetas, “algum tipo de entrada especial de Deus, uma mensagem dele para suas criaturas na Terra”.18 O pensamento divino é comunicado por meio de intervenções sobrenaturais, tais como visões, sonhos, uma voz do céu, milagres, palavras escritas em pedra, e Jesus Cristo. A inspiração, porém, torna-se um muito vago e subjetivo “fogo em seus ossos”19 que move os profetas e apóstolos a escrever e falar devido à presença do Espírito Santo. Longe de afirmar que a inspiração transforma as palavras dos profetas nas palavras de Deus, Thompson acha que inspiração significa que “Deus se coloca perto o suficiente dos escritores para que as conclusões surjam com clareza suficiente”.20 Note que, na inspiração do pensamento, Deus não opera nem sobre os pensamentos do profeta nem sobre suas palavras. A inspiração é uma presença divina que o profeta sente nos ossos, não na mente, para Thompson.
A pergunta é: Quem é o originador das conclusões que surgem “suficientemente claras” nas palavras das Escrituras? A esta altura surge outra característica da opinião de Thompson sobre R-I. Embora todas as Escrituras sejam inspiradas (a presença divina sentida nos ossos do escritor), somente algumas porções são reveladas (vindas do pensamento, proposições e ações miraculosas divinas). Thompson discute este assunto afirmando, incorretamente, que “a Bíblia não diz que toda a Escritura foi dada por revelação”.21 Reagindo contra esta noção, Raoul Dederen conclui que “defender que tudo é inspirado, mas somente parte – isto é, uma pequena parte – é revelada, e sobre esta base discutir e tentar resolver as declarações aparentemente contraditórias da Escritura continua insatisfatório”.22
Pelo fato de as Escrituras não assumirem a distinção técnica entre revelação e inspiração que usamos para pesquisar dentro da compreensão das origens das Escrituras, Paulo afirma que todas as matérias das Escrituras se originaram em Deus. Desse modo, segundo as Escrituras, toda a Bíblia é tanto revelada quanto inspirada.
De onde, então, segundo Thompson, vêm as outras porções das Escrituras? Ele corretamente afirma que muitas porções das Escrituras se originaram da pesquisa e experiência. Tais matérias, porém, sendo de origem humana, podem possuir autoridade somente quando baseadas em inspiração. Todavia, se os escritores bíblicos não experimentaram inspiração nem cognitiva nem linguística, mas subjetiva, como um fogo em seus ossos, somos deixados com a inevitável conclusão de que grandes porções das Escrituras apresentam ideias humanas falíveis.
O uso de Thompson da inspiração do pensamento para fins exegéticos mostra como o método crítico-histórico pode ser usado na teologia adventista, a saber, circunscrevendo as matérias bíblicas que caem fora do alcance da inspiração do pensamento.
Vantagens e dificuldades da inspiração do pensamento. A inspiração do pensamento, conforme retratada por teólogos adventistas já mencionados, envolve pontos positivos e negativos. Do lado positivo, por exemplo, ela provê um meio termo entre a revelação do encontro modernista não-cognitiva e a inspiração verbal clássica absolutamente inerrante. A inspiração do pensamento tem também o efeito positivo de dirigir a atenção do intérprete para as matérias de mais relevância discutidas nas Escrituras e longe de minúcias. Finalmente, essa visão de inspiração tem a evidente vantagem de esclarecer os fenômenos bíblicos que não se ajustam dentro da teoria de inspiração verbal.
Entretanto, as reflexões sobre a inspiração do pensamento têm certas desvantagens. A dicotomia pensamento-palavras leva à alegação de que a inspiração não atinge as palavras das Escrituras. Infelizmente, essa afirmação e a dicotomia pensamento-palavras não são apoiadas pelas Escrituras, Ellen G. White, ou a análise filosófica. Embora a inspiração do pensamento esclareça os fenômenos das Escrituras e a experiência de Ellen G. White na escrita de seus livros melhor do que a inspiração verbal, a compreensão radical disto deixa de elucidar a clara afirmação bíblica de que a inspiração alcança as palavras (2Timóteo 3:16).
Além disso, um estudo detalhado do pensamento de Ellen G. White sobre inspiração parece sugerir que, segundo ela, a inspiração divina alcança as palavras e assegura a “total confiabilidade do relato bíblico”.23 A citação clássica de Ellen G. White da qual se servem os expositores da inspiração do pensamento para persuadir outros quanto à sua opinião diz: “Não são as palavras da Bíblia que são inspiradas, mas os homens é que o foram. A inspiração não atua nas palavras do homem ou em suas expressões, mas no próprio homem que, sob a influência do Espírito Santo, é possuído de pensamentos. As palavras, porém, recebem o cunho da mente individual. A mente divina é difusa. A mente divina, bem como sua vontade, é combinada com a mente e a vontade humanas; assim, as declarações do homem são a Palavra de Deus” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21). Infelizmente, eles omitem a última sentença do parágrafo em que Ellen G. White diz claramente que a inspiração atinge as palavras dos profetas. Ellen G. White afirma claramente que a inspiração divina – que inclui nossa técnica revelação e inspiração – não atua nas palavras (como afirma a teoria verbal), mas na formação do pensamento do escritor. Entretanto, a inspiração alcança as palavras dos profetas, que “são as palavras de Deus.” Em numerosas passagens, Ellen G. White alude às Escrituras como “a palavra inspirada”, ou “palavras” de Deus (Evangelismo, p. 269; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 17; Caminho a Cristo, p. 108), e “palavras da inspiração” (Life Sketches, p. 198; Testemunhos Para a Igreja, vol. 2, p. 605). Parece claro que Ellen G. White não apoiaria a inspiração do “pensamento” tal como muitos a compreendem no início do século vinte e um. Consequentemente, parece ilusório usar um aspecto de sua opinião complexa sobre inspiração para conferir autoridade à teoria que ela não aprovaria.
Embora como adventistas não creiamos que as palavras das Escrituras foram inspiradas, isto é, elas nem foram ditadas nem representam a linguagem divina por si mesma, todavia o processo de R-I alcança as palavras dos profetas. Em outras palavras, o Espírito Santo guiou os profetas no processo da escrita, assegurando que as próprias palavras dos profetas expressassem a mensagem que eles recebiam de uma forma fidedigna e confiável. Às vezes, Ellen G. White não sabia como melhor expressar o que lhe era mostrado; “enquanto a pena hesita por um momento”, escreveu ela, “as palavras apropriadas” lhe vinham à mente (Mente, Caráter e Personalidade, vol. 1, p. 318; Manuscript Release, vol. 2, p. 156 e 157).
A reflexão filosófica sugere que “a linguagem e o pensamento acerca das coisas estão de tal modo ligados, que é uma abstração conceber o sistema de verdades como um sistema previamente oferecido de possibilidades do ser [pensamentos] para o qual o sujeito significante [escritor bíblico] seleciona os sinais correspondentes [palavras]”.24 Pensamentos e palavras se pertencem mutuamente. Um pensamento sem nenhuma palavra ou palavras para ser comunicado perece na mente do pensador.
Outro problema é que, para todos os fins práticos, a inspiração do pensamento, conforme já definida, reduz inspiração a revelação. Devemos explicar. Tecnicamente, revelação lida com a formação de ideias na mente dos escritores bíblicos e inspiração com a parte do processo de comunicar revelação em formatos escritos ou orais. Quando a inspiração do pensamento alega que a assistência divina ao profeta não se estende às palavras está nisso limitando a intervenção divina na revelação. O problema prático deste ponto de vista é que não temos nenhum acesso ao pensamento profético, que morreu com os profetas deixando apenas suas palavras humanas falíveis.
Finalmente, a dicotomia pensamento-palavra cria uma disjunção entre a História e a salvação, que encontra seu fundamento não no pensamento bíblico, mas platônico. Sendo que o conteúdo teológico não está estritamente ligado às palavras das Escrituras, exegetas e teólogos acabam usando sua imaginação e apresentando-o como o conteúdo teológico do texto. Não é de surpreender que alguns teólogos e cientistas adventistas do sétimo dia, tentando harmonizar o relato bíblico da Criação com os ensinos científicos evolucionistas, usem a inspiração do pensamento na forma já discutida para justificar sua abordagem.
Mas se a separação entre pensamento e palavras dá lugar a pequenos erros, por que não deve também dar lugar a erros substanciais nos ensinos teológicos?
Revelação do encontro
O bem-argumentado artigo do erudito do Novo Testamento Herold Weiss, publicado em 1975, representa outra maneira de dar lugar ao uso do método crítico-histórico na teologia adventista. Weiss crê que a revelação ocorre como um encontro divino-humano não-cognitivo. “Eu não compreendo revelação”, explica ele, “como sendo essencialmente a comunicação de informação divina dada pelo Espírito aos escritores da Bíblia; nem considero fé como sendo a aceitação dessa informação. Antes, revelação é, primeiramente, uma manifestação divina que cria uma comunidade em que a vida expressa essa revelação em símbolos de ação, imaginação e pensamento sob a direção dos profetas”.25
O que, então, é a fonte dos conceitos e palavras das Escrituras? Não Deus, mas os profetas e apóstolos. Esta opinião produz uma dicotomia entre fé e crença. Enquanto a crença pertence ao domínio da História e é verificável, a fé pertence ao domínio da transcendência divina e não é verificável. As Escrituras como uma obra escrita representam os pensamentos e palavras dos profetas, não de Deus. O objetivo dessa aplicação não é descobrir a verdade, mas delinear a experiência mística, não-cognitiva, não histórica com Deus a fim de inspirar nossas próprias experiências de vida.
Resumindo estes pontos, podemos dizer que eruditos adventistas atualmente trabalham admitindo três diferentes interpretações de R-I. As diferenças revelam diferentes escolas e paradigmas teológicos. Elas influenciam decididamente todo o trabalho de pesquisa exegética e teológica mesmo a ponto de dividir os adventistas ao redor do mundo em distintas escolas de pensamento.
Em busca de uma compreensão bíblica de revelação-inspiração
Devemos escolher uma interpretação sobre as outras? Alternativamente, devemos procurar uma nova compreensão? Para responder a estas perguntas devemos começar avaliando as atuais teorias sobre R-I. Como as avaliamos? Nós as avaliamos prestando cuidadosa atenção a toda a evidência. Nossa interpretação, portanto, sem distorção, deve esclarecer tensões ou contradições encontradas em toda a extensão do autotestemunho e em outros fenômenos das Escrituras. Além disso, devemos olhar para a origem e o conteúdo das pressuposições hermenêutico-filosóficas explícita ou implicitamente envolvidas na concepção e na formulação de cada modelo de R-I.
Indo para além da revelação do encontro, da inspiração verbal e da inspiração do pensamento
Raoul Dederen aborda uma compreensão diferente de R-I usando uma metodologia diferente. Em vez de aceitar interpretações disponíveis para fins apologéticos ou hermenêuticos, Dederen submete os atuais modelos interpretativos à crítica baseada em um ouvir atento do que os autores bíblicos e Ellen G. White têm a dizer sobre o assunto.26 Sobre esta base, ele descobre que a revelação do encontro e a inspiração do pensamento são alternativas deficientes.
Dederen reconhece que a revelação não é apenas um fenômeno intelectual, mas um encontro pessoal do profeta com Deus. Todavia, segundo as Escrituras, argumenta ele, no encontro de revelação, Deus comunica, embora parcialmente, o conhecimento sobre si mesmo e sua vontade. Além disso, a disjunção entre o ato divino e a palavra humana sobre a qual a revelação do encontro constrói seu argumento não tem nenhum apoio bíblico. Esse ponto de vista só pode ser discutido em uma base científica e filosófica.27
Prosseguindo sobre a mesma base bíblica, Dederen descarta implicitamente a inspiração do pensamento conforme já discutida. Ele afirma que nas Escrituras palavra e pensamento se pertencem mutuamente. Consequentemente, “as palavras são intrínsecas ao processo revelação-inspiração”.28 Também corretamente, ele afirma que depois de examinar os escritos de Ellen G. White sobre R-I “tudo aponta para o fato de que Deus imbuiu a mente dos profetas de pensamentos e os inspirou no cumprimento de sua tarefa. Também velou sobre eles em suas tentativas de expressar ‘ideias infinitas’ e as incorporou nos ‘veículos finitos’ da linguagem humana”.29 As Escrituras são, “no mais elevado e mais verdadeiro sentido, criação de Deus.30 Finalmente, Dederen sente-se desconfortável com a noção de que as Escrituras são apenas parcialmente reveladas, mas totalmente inspiradas, e encoraja a Igreja a encontrar “outras soluções”.31
Esta sucinta avaliação desqualifica os três pontos de vista de R-I atualmente operantes na teologia adventista. Pelo fato de que cada opinião opera a partir de definições filosóficas de pressuposições hermenêuticas, nenhuma soma de reflexão as tornará responsivas a todo o alcance da evidência bíblica. Portanto, devemos desenvolver uma nova interpretação usando definições bíblicas das pressuposições hermenêuticas envolvidas em R-I.
Construindo a partir das Escrituras
Contudo, nada é realmente novo. Em nossa procura de outro modelo de interpretação, devemos reconhecer a força e contribuições dos atuais modelos sobre R-I. Da revelação do “encontro” devemos reter a convicção bíblica de que a obra de Deus de R-I ocorre dentro de uma relação histórica pessoal face a face (Deuteronômio 34:10). Da inspiração do “pensamento” devemos reter o ensino bíblico de que a obra divina de R-I enfoca o nível de processo-pensamento dos escritores bíblicos (2Pedro 1:21). Da inspiração “verbal” devemos reter o ensino bíblico de que a obra divina de R-I também alcança o nível das palavras (2Timóteo 3:16). Finalmente, porque na Escritura Deus encarnou seus pensamentos no pensamento e na escrita humana, os elementos humanos e divinos são inseparáveis. Consequentemente, nunca devemos tentar distinguir entre as contribuições divinas e humanas na concepção e na escrita da Bíblia.
Deste ponto de partida, devemos considerar as muitas maneiras com que Deus e os escritores bíblicos interagiram no processo de conceber as ideias e de reunir a informação que encontramos nas Escrituras. Devemos perguntar o mesmo no que concerne ao processo por meio do qual essas ideias e informação deviam ser postas em forma escrita (Hebreus 1:1). É verdade que Deus age de maneiras ocultas de nossa vista. Contudo, as Escrituras e Ellen G. White nos oferecem abundante evidência sobre a qual devemos construir nossa interpretação. A evidência que encontramos nelas inclui o autotestemunho e os fenômenos das Escrituras.
Em nossa procura de uma compreensão bíblica de R-I seguimos dois passos. Primeiro: consideraremos cuidadosamente as pressuposições hermenêuticas envolvidas em nossa interpretação dos agentes humanos e divinos envolvidos em R-I. Segundo: tentaremos formular de maneira sucinta uma interpretação bíblica de R-I usando as noções obtidas no primeiro passo, a fim de compreendermos as declarações gerais de Paulo e de Pedro sobre inspiração (2Timóteo 3:16; 2Pedro 1:20 e 21).
Pressuposições hermenêuticas fundamentais
A chave para qualquer interpretação jaz em aplicar os princípios hermenêuticos apropriados. O procedimento científico básico requer que derivemos nossas pressuposições hermenêuticas do assunto que queremos compreender. Sendo que em nosso caso estamos tentando compreender a origem das Escrituras, não somente devemos dar ouvidos ao que os autores bíblicos dizem sobre R-I, mas também tomar nota das pressuposições hermenêuticas que eles usaram, em vez de adotá-las da filosofia e ciências humanas. Fundamentalmente, pressupomos um Deus que age pessoalmente dentro do fluxo da história humana.
Afirma Dederen: “A revelação ocorre e se desdobra dentro da História”.32 Adaptando seus pensamentos, ideias e ações infinitas ao nosso nível de criatura, aos nossos limitados e imperfeitos modelos de pensamento e palavras, Deus habilita a história divina a ocorrer dentro da história humana. Não é o profeta, mas Deus quem traduz suas ideias para nossos padrões cognitivos e linguísticos.
A ideia de que Deus age historicamente no tempo, que é admitida pelos escritores bíblicos e por Ellen G. White e que jaz no fundamento do tema do grande conflito, exige uma reinterpretação das pressuposições hermenêutico-filosóficas que sustentam a revelação do encontro, a inspiração verbal e a inspiração do pensamento, compreendidas como uma dicotomia radical entre palavras e pensamentos.
Revelação
Em contraste com a ideia clássica, evangélica e moderna de que Deus usou apenas um modelo de operação divina em R-I, as Escrituras falam acerca de uma variedade de formas divinas. A introdução à epístola aos Hebreus afirma que “havendo Deus, outrora, falado muitas vezes (polumer’s) e de muitas maneiras (polutrop’s), aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hebreus 1:1 e 2).
Alguns adventistas têm começado a reconhecer esta variedade e têm sugerido que ao modelo “profético” geralmente aceito devemos acrescentar a “pesquisa modelo” de revelação. Outras sugestões incluem os modelos de revelação “testemunha”, “conselheira”, “epistolar” e “literária”. Precisa ser feito trabalho analítico adicional a fim de descobrir, tanto quanto possível, de que maneiras as agências divinas e humanas contribuíram para a geração do pensamento e informação bíblica.
Parece claro que na produção das Escrituras, as agências divinas e humanas interagiram, no mínimo, nos seguintes modelos: teofânico (Êxodo 3:1 a 5), profético (Apocalipse 1:1 a 3), verbal (Êxodo 31:18), histórico (Lucas 1:1 a 3), sapiencial (Eclesiastes 1:1, 12 a 14; Eclesiastes 12:9 a 11) e existencial (Lamentações 3:1). A análise destes modelos e de suas pressuposições hermenêuticas nos permitirá uma compreensão melhor de como toda a Bíblia resultou da revelação e da inspiração e nos habilitará a vencer a disjunção radical pensamento-versus-palavras implícita na inspiração do pensamento.
Inspiração
Os profetas nos deixaram muita informação sobre as maneiras como as intervenções divinas operaram enquanto eles estavam comunicando suas mensagens nas formas oral e escrita. Contudo, da informação disponível somos habilitados a extrair algumas conclusões proveitosas.
Parece que os escritores bíblicos recebiam as ideias e informação antes de se assentarem para escrever. Portanto, a função do Espírito Santo na inspiração não era primariamente gerar, mas assegurar a comunicação fidedigna da informação recebida.
Quando Deus enviou Moisés para libertar Israel do cativeiro egípcio, a equipe Moisés-Arão trabalhou de maneira semelhante à equipe Deus-profeta. Moisés representava Deus ao “pôr as palavras” na boca de Arão. Entrementes, Arão, falando por Moisés ao povo, desempenhava o papel de profeta.
O ato de “pôr as palavras na boca” de alguém significava que o receptor tornava-se um representante subserviente de outro; o representante, porém, tinha a liberdade de representar. Ele tinha, por assim dizer, poder de procurador. A representação textual não faz sentido. Arão tinha acentuadas habilidades verbais, e Deus o chamou para usar o seu dom. Do mesmo modo, os profetas e apóstolos, como representantes de Deus, eram subservientes aos pensamentos divinos, mas os expressavam segundo seu entendimento e maneira de expressão.
A esta altura, devemos ter em mente que na revelação o pensamento divino se adaptava às limitações e imperfeições dos processos de pensamento humano. Com a inspiração, o pensamento divino, já adaptado ao modo humano de pensar, ajusta-se aos modelos da escrita humana. Então, a maneira de pensar e de escrever que encontramos nas Escrituras não é divina, mas humana. Portanto, Ellen G. White nos diz: “A Bíblia foi escrita por homens inspirados, mas não é a maneira de pensar e exprimir-se de Deus. Esta é da humanidade. Deus, como escritor, não se acha representado. Os homens dirão muitas vezes que tal expressão não é própria de Deus. Ele, porém, não se pôs à prova na Bíblia em palavras, em lógica, em retórica. Os escritores da Bíblia foram os instrumentos de Deus, não sua pena” (Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 21).
Isto não significa que o conteúdo das Escrituras é indigno de confiança. Significa apenas que não devemos esperar das Escrituras absoluta perfeição divina nos mínimos detalhes, como se Deus tivesse usado Sua maneira perfeita de pensar e escrever. O conteúdo verdadeiro gerado pela revelação torna-se expresso no modo imperfeito do pensamento e da escrita humanos.
Por exemplo, os escritores bíblicos não tinham memória perfeita; eles esqueciam as coisas como nós. Não possuíam percepção sensorial perfeita. Não eram capazes de compreender toda a riqueza dos pensamentos e ideias divinos a eles revelados. Além disso, nossas palavras podem ter vários, mesmo contraditórios, significados. Nossa sintaxe permite o arranjo de sentenças de diferentes maneiras com significados diferentes, e assim por diante. Tudo isto é parte do modo humano de pensar e escrever que Deus usou ao revelar e inspirar as Escrituras.
A inspiração divina sempre apagava ou anulava as imperfeições do modo humano de pensar e de escrever? Contrário às afirmações dos inspiracionistas “verbais”, os fenômenos das Escrituras mostram claramente que isto não era assim. Deus usou nosso imperfeito meio de comunicação para revelar-se a si mesmo e sua palavra a nós. Nas Escrituras, portanto, nós encontramos a verdade divina expressa em um imperfeito modo humano de comunicação. Deus queria que fosse deste modo, porque é a melhor maneira de revelar-se a si mesmo e suas verdades salvíficas a nós.33
O objetivo das Escrituras não é elevar o modo humano de pensar ou de escrever, mas assegurar que os escritores não substituem a verdade divina por suas próprias interpretações. A direção do Espírito Santo não anulava o modo de pensar e de escrever dos escritores bíblicos, mas supervisionava o processo da escrita a fim de maximizar a clareza das ideias e prevenir, se necessário, a distorção da revelação, ou a mudança da verdade divina em uma mentira. Em outras palavras, não devemos conceber a contínua orientação do Espírito Santo no processo da escrita como se fosse contínua intervenção divina, produzindo a escolha de cada pensamento e palavra das Escrituras. Em vez disso, devemos considerar um menos intruso modelo de inspiração, mais coerente com a liberdade dos escritores humanos.
Os comentários de Ellen G. White sobre sua própria experiência como escritora nos fornecem exemplos de muitos modelos remediadores-corretivos de intervenções diretas que o Espírito Santo usou durante o processo de inspiração. Por exemplo, notamos o realce da memória (Spiritual Gifts, vol. 2, p. 292 e 293; Mensagens Escolhidas, vol. 1, p. 36 e 37), ajudando a achar uma “palavra adequada” (Manuscript Releases, vol. 2, p. 156 e 157; Mente, Caráter e Personalidade, vol. 1, p. 318), e dando nova revelação (Mensagens Escolhidas, vol. 3, p. 36 e 110). Destes exemplos podemos ver que Deus não produz as palavras anulando a função normal da agência humana. Pelo contrário, vemos os processos de pensamento e de escrita ocorrendo livremente na agência humana sob a cuidadosa direção do Espírito Santo.
Finalmente, as Escrituras apresentam um exemplo de uma forma de intervenção divina ocasional também usada pelo Espírito Santo para guiar os escritores bíblicos. Notamos as profecias de Balaão (Números 22:1 a 24:25). O texto bíblico e os comentários de Ellen G. White deixam claro que a liberdade de Balaão foi anulada pelo Espírito Santo (Números 22:18, 20, e 28 a 31; Patriarcas e Profetas, p. 439, 443, 448 e 449). Este modelo não é o modelo costumeiro de inspiração divina, como sugere a teoria verbal. Obviamente, não podemos aplicar o exemplo de Balaão de operação divina aos profetas bíblicos.
Esse incidente nos ajuda a ver que Deus não se permitirá ser mal-representado por reconhecidos profetas que, por causa do interesse próprio, estão dispostos a mudar a verdade divina em mentira. O Espírito assegurava que os profetas escolhidos não mudassem as verdades divinas em imaginação humana.
Sobre a base precedente, podemos afirmar a total confiabilidade das Escrituras dentro dos parâmetros das limitações normais do pensamento e do processo linguístico humanos. Sendo que toda a Bíblia é revelada e inspirada dentro do nível do pensamento e linguagem humanos, ela não representa a perfeição divina; todavia, suas palavras nos revelam com segurança os pensamentos e a vontade de Deus.
Esta visão de inspiração explica por que certas discrepâncias e a ausência de absoluta precisão em matérias de detalhe que encontramos nos fenômenos das Escrituras não afetam a comunicação fidedigna dos conteúdos revelados.
Um modelo bíblico de revelação-inspiração
Nesta seção, juntaremos nossa análise da evidência bíblica reunida até aqui. Como a compreensão bíblica de Deus, a diversidade de Suas operações no processo de formar as matérias das Escrituras (revelação), e a comunicação disto em forma escrita e oral (inspiração) moldam nossa compreensão de R-I? Procuraremos descrever o que pode ser designado como um modelo bíblico.
Descobrimos anteriormente que as declarações de Pedro e de Paulo sobre inspiração (2Timóteo 3:16; 2Pedro 1:20 e 21) determinam os parâmetros gerais dentro dos quais temos procurado compreender a “orientação” do Espírito Santo e o “movidos” das agências humanas envolvidas no processo de escrever a Bíblia. Sendo que aquelas declarações não distinguiam tecnicamente entre os processos de produção das matérias e da escrita, devemos compreender suas declarações sobre “inspiração” como se aplicando a ambos, que tecnicamente analisamos nas seções sobre “revelação” e “inspiração”.
Sumário: Devemos compreender a inspiração divina das Escrituras, da qual Paulo, Pedro e Ellen G. White falaram, como incluindo, no mínimo, os seguintes pontos:
- “Direção” divina ou “movidos” agindo diretamente sobre a agência humana no processo de R-I.
- A “direção” divina ou “movidos” das agências humanas seguiu as várias maneiras da providência divina operando dentro do fluxo dos eventos históricos, não como o atemporal, soberano e absoluto poder de Deus operando por meio de decretos eternos e anulando a liberdade dos escritores bíblicos.
- Deus guiou a recepção de informação e a formação de ideias nos escritores bíblicos por meio de um processo histórico de revelações divinas cognitivas dadas a eles em uma diversidade de modelos.
- A “orientação” divina e o “movidos” das agências humanas adotaram modelos múltiplos de operações divinas, nos processos de revelação e inspiração (Hebreus 1:1) com acentuada ênfase sobre o primeiro. Esta ênfase permite a inclusão da dinâmica da inspiração do “pensamento” no modelo bíblico.
- Toda a Escritura foi revelada e inspirada. Neste sentido, o modelo bíblico de R-I é pleno, porque aceita a totalidade das Escrituras.
- A “direção” do Espírito Santo ou “movidos” utilizava-se da liberdade e habilidades literárias das agências humanas em seu desenvolvimento histórico e espiritual. A anulação divina da agência humana não era o principal modelo de “direção” divina ou “movidos”, mas um possível último recurso para evitar a má representação humana.
- Pelo fato de que a direção do Espírito Santo respeitava os modos humanos de pensamento e escrita, não devemos esperar encontrar nas Escrituras a perfeição absoluta que pertence unicamente à vida íntima da Trindade. Ao contrário, não nos devemos surpreender se encontrarmos nas Escrituras imperfeições e limitações que pertencem essencialmente aos modos humanos de pensar e escrever.
- Embora a “direção” e o “movidos” divinos operassem nas agências humanas, por meio delas são atingidas as palavras das Escrituras. Neste sentido o modelo bíblico de R-I é “verbal”.
- A “direção” divina no processo da escrita não assegurava absoluta perfeição divina, mas em sua totalidade as Escrituras verdadeira e fidedignamente representam os ensinamentos, vontade e obras de Deus.
Resumindo, Deus, não os escritores humanos, é o autor das Escrituras no sentido de que ele é a fonte de conteúdo, ação e interpretação.
Diferenças de outros modelos
O modelo bíblico de R-I difere de maneira significativa das teorias de revelação do encontro, verbal e do pensamento. O modelo bíblico e a teoria de revelação do encontro compartilham um elemento existencial pessoal, mas a última nega qualquer comunicação de verdade no encontro.
Com respeito à natureza da informação produzida na revelação, o modelo bíblico percebe verdades concretas, históricas, espaço-temporais, ao passo que a teoria da revelação do “pensamento” gera verdades atemporais e não-históricas. Conquanto para alguns a inspiração do “pensamento” deixe de afirmar a orientação divina na escrita da Bíblia, o modelo bíblico a afirma.
Em comum com a teoria “verbal” de inspiração, o modelo bíblico afirma que o Espírito Santo guiou os escritores bíblicos não somente enquanto recebiam informação e ideias reveladas, mas também no processo de escrever a Bíblia em sua inteireza. Entretanto, os dois modelos se afastam no nível básico das pressuposições hermenêuticas fundamentais que determinam a maneira por que compreendemos as contribuições sobrenaturais de Deus para a formação das Escrituras. A teoria “verbal” admite que Deus age atemporalmente e soberanamente, anulando a liberdade humana dos escritores bíblicos. Em contraste, o Modelo Bíblico admite que a providência divina age dentro do fluxo espaço-temporal da liberdade humana concreta e da história.
Finalmente, não devemos esquecer que estamos lidando com um mistério que conhecemos e compreendemos somente em parte. Portanto, nosso modelo de interpretação deve ser compreendido como o primeiro passo em vez de a palavra final. Sendo o primeiro passo, ele nos leva a um caminho teológico muito diferente dos atuais modelos que operam dentro das teologias adventistas e cristãs do presente. A importância de uma compreensão correta, embora parcial, de R-I centraliza-se em sua função hermenêutica na tarefa de fazer teologia cristã. Precisamos voltar agora nossa atenção para a função hermenêutica do modelo bíblico de R-I delineado neste capítulo.
Influências hermenêuticas
De que maneira a compreensão de R-I já esboçada causa impacto na nossa interpretação das Escrituras e na tarefa de fazer teologia? Influencia essas tarefas por meio dos princípios hermenêuticos que derivam dela. Se é assim, quais são os importantes princípios derivativos?
Plena encarnação do pensamento divino nas palavras humanas
Segundo o modelo bíblico de R-I, Deus se revelou de muitas maneiras condescendendo com os modelos humanos de pensamento e escrita. Toda a Bíblia é revelada. As palavras dos profetas tornaram-se as palavras de Deus. Então, quando fazemos exegese e teologia não devemos distinguir entre o pensamento divino e as palavras humanas ou entre porções das Escrituras.
Temos acesso aos ensinamentos e à revelação divina somente por meio das palavras. Consequentemente, todo o texto das Escrituras, desde Gênesis a Apocalipse, torna-se a mais específica, suficiente, e única fonte confiável de dados e princípios hermenêuticos que temos para conhecer a Deus e sua vontade para nós.
Composição histórica das Escrituras
Segundo o modelo bíblico de R-I, Deus se revela dentro do processo histórico (Êxodo 25:8; João 1:1 a 14). Em outras palavras, a revelação é histórica, primariamente porque Deus executa seu plano de redenção historicamente de dentro do fluxo espaço-temporal da história humana. Todavia, esta condescendência divina não significa que os ensinos bíblicos são o resultado de tendências culturais. Significa simplesmente que as verdades divinas transcendentes aparecem não apenas dentro das limitações da humanidade, em geral, mas também dentro das limitações dos tempos históricos em que cada profeta viveu e escreveu. Guiados pelo Espírito Santo, os profetas usaram a cultura crítica e seletivamente.
A revelação divina não está historicamente condicionada. Os aspectos culturais da história sagrada são datados, mas eles formam parte das ações e da revelação divina. Portanto, o intérprete adventista admitirá que o texto bíblico, em sua totalidade, o resultado da revelação divina na História, recebida, compreendida e composta por profetas e apóstolos. A consciência das situações históricas em que ocorreram a revelação divina e o escrito profético torna-se um passo necessário para uma compreensão adequada dos pensamentos e ensinos divinamente revelados.
A natureza multifária das verdades divinas
Uma vez que o modelo bíblico de R-I procede de dentro do fluxo da história humana, ele compreende o propósito das Escrituras de revelar verdades não somente acerca de Deus, mas também acerca de tudo o que Deus tem criado na natureza e feito na história. Portanto, as verdades bíblicas não podem ser confinadas a Deus ou à salvação, como outros modelos parecem sugerir, mas abrange a extraordinária diversidade de verdades interligadas acerca de Deus e de suas obras. Os exegetas e teólogos devem tomar cuidado especial para não extinguir essa riqueza pela decisão unilateral de que somente certas verdades salvíficas são relevantes, descartando o restante. Agindo assim, os teólogos se colocam em uma redutiva e distorcida busca da “essência” da mensagem cristã, rejeitando a grande maioria de ensinos bíblicos tão culturalmente condicionados e, portanto, disponíveis.
Limitações do conhecimento revelado
Segundo o modelo bíblico de R-I, a revelação divina está limitada por todas as características dos nossos modos humanos de conhecer e de escrever. Os intérpretes devem sempre ter em mente que nem mesmo os escritores bíblicos podem apresentar completamente uma só verdade em linguagem humana (João 21:25).34 Mesmo as verdades humanas são sempre maiores e mais amplas do que aquilo que nossa linguagem pode expressar. Consequentemente, os intérpretes que lidam com os mistérios divinos devem guardar-se do erro hermenêutico de admitir que a interpretação de uma passagem significa a verdade completa sobre determinado assunto.
Além disso, o conhecimento revelado está limitado pela imperfeição da sintaxe humana. O intérprete é obrigado a fazer escolhas baseado em suposições; daí a grande importância de uma compreensão clara das pressuposições hermenêuticas e do modelo bíblico de R-I envolvidos na interpretação das Escrituras.
Confiabilidade das Escrituras
O modelo bíblico de R-I nos assegura que a revelação divina é confiavelmente comunicada nas palavras das Escrituras. Portanto, nas Escrituras não encontramos a compreensão ou filosofia de seus autores humanos, mas de Deus. R-I é o processo utilizado pelo Espírito Santo para comunicar as opiniões de Deus sobre a natureza, a história, nossa condição humana, e seu envolvimento dinâmico e salvífico nelas.
As Escrituras revelam as opiniões e revelações de Deus na Natureza e na História. Além disso, não há nenhuma dicotomia entre história e salvação, porque a salvação ocorre como um processo histórico em que Deus está pessoalmente envolvido. As Escrituras nos fornecem a descrição ampla necessária para nossa vida neste mundo e no mundo vindouro. Neste sentido amplo e todo-inclusivo, as Escrituras não erram e constituem a fonte básica confiável de conhecimento divino deste lado da eternidade.
Segundo o modelo bíblico, R-I ocorre dentro do continuum histórico-temporal. Assim, as Escrituras incluem muitos dados históricos e naturais indispensáveis que pertencem essencialmente às revelações e ações de Deus. A revelação bíblica, porém, não procura fornecer-nos um exato e exaustivo relato de dados históricos e científicos, mas antes com uma síntese confiável da multifária sabedoria, vontade e atividades divinas dentro do domínio espaço-temporal da criação. Os fatos nas Escrituras são sempre incorporados conforme exigidos pelas atividades salvíficas e todo-inclusivas de Deus no fluxo da história humana.
O intérprete, portanto, deve ler as Escrituras não como ciência, mas como uma filosofia da História. Ele deve pesquisar o significado da revelação bíblica no todo-inclusivo nível teológico sem esperar encontrar uma espécie de exatidão no que concerne aos fatos históricos e naturais que alguém antecipa nos estudos científicos. A falta de precisão em detalhes factuais deve ser considerada como evidência da plena encarnação do pensamento divino dentro do fluir diário da história humana.
Autoridade das Escrituras
O modelo bíblico de R-I fundamenta a autoridade das Escrituras em Deus. Autoridade significa que as Escrituras são a fonte confiável de informação acerca de Deus, suas ações, seus ensinos e suas verdades salvíficas para nós. Sendo que nas Escrituras Deus revela explicitamente seus pensamentos e suas ações a respeito de tudo, elas devem julgar cada pensamento e não ser julgadas por ninguém (1Coríntios 2:15; 2Coríntios 10:5).
Da autoridade das Escrituras seguem-se certas consequências. Em estudos exegéticos e teológicos, por exemplo, o intérprete nunca deve tentar compreender as Escrituras partindo de pressuposições hermenêuticas baseadas em ciências e filosofias humanas. As Escrituras interpretam-se a si mesmas. Pode-se aplicar uma hermenêutica de suspeita a estudos científicos e filosóficos, mas nunca às Escrituras.
Finalmente, a autoridade das Escrituras e sua inspiração são confirmadas pela fidelidade de seus ensinos (João 17:17). Essa confirmação, porém, depende da aceitação do modelo bíblico de R-I. Caso contrário, os intérpretes que aplicam a hermenêutica de suspeita às Escrituras jamais compreenderão suas verdades, e, portanto, nunca serão capazes de comprová-las.
Conclusão
Durante os cinquenta anos passados, um grande segmento de eruditos adventistas tem adotado alguma versão da inspiração do pensamento. Outros têm se sentido satisfeitos por operar dentro de uma visão global de inspiração. Alguns teólogos têm se aventurado no terreno da revelação do encontro modernista. Por trás desses pontos de vista, encontramos pouquíssima reflexão teológica e filosófica séria. Em geral, os adventistas têm “resolvido” de modo prático o problema de revelação, isto é, simplesmente adotam uma interpretação de R-I já feita a fim de anteciparem problemas interpretativos e práticos.
Como resultado, no início do século vinte e um a inspiração do pensamento parece reter a lealdade de um amplo espectro de teólogos adventistas. Seu argumento contra a inspiração verbal e a favor da inspiração do pensamento baseia-se em algumas declarações escolhidas de Ellen G. White sobre R-I. Teólogos têm usado a cunha entre pensamento e palavra, que é característica da inspiração do pensamento, para diversas finalidades. Elas se estendem desde explanações de incoerências históricas e literárias até uma acomodação a teorias científicas e filosóficas, tais como o método crítico-histórico e a evolução. Conquanto o método crítico-histórico não afete a compreensão adventista do sétimo dia acerca das Escrituras dentro da estrutura do tema do grande conflito, uma acomodação às teorias científicas e filosóficas envolve seu abandono e substituição.
Uma coisa está clara. Os adventistas não estão unidos em sua compreensão do problema fundamental de R-I. Além disso, os três pontos de vista que circulam entre eles foram formulados por filósofos e teólogos cristãos que trabalharam a partir de princípios hermenêuticos derivados da filosofia humana. Esses princípios não são apenas extrabíblicos em origem, mas contrários ao pensamento bíblico em conteúdo. Além disso, nenhuma das três opções integra satisfatoriamente toda a evidência; daí a necessidade de que se descortine claramente um novo modelo de interpretação.
Alguns adventistas têm procurado um meio melhor de compreender R-I ouvindo atentamente as Escrituras (ensinos e fenômenos) e Ellen G. White. Edificando sobre sua obra, temos sugerido neste capítulo um novo modelo de compreensão de R-I. É um modelo bíblico, porque edifica sobre pressuposições hermenêuticas bíblicas fundamentais e presta atenção cuidadosa a toda a extensão da evidência bíblica (doutrina e fenômenos). Precisamos continuar buscando uma melhor e mais profunda compreensão das pressuposições hermenêuticas fundamentais envolvidas em nossa interpretação de R-I. Somente sobre tal base podemos vencer as deficiências da inspiração verbal, da inspiração do pensamento e da revelação do encontro.
Devemos esclarecer e integrar, em detalhes, toda a evidência que encontramos nos ensinos e fenômenos das Escrituras em relação a R-I. Deste modo, compreenderemos ainda mais como Deus nos revelou conhecimento e informação em um relato escrito confiável, uma carta de amor tendo em vista a nossa salvação. Devemos continuar atribuindo toda autoridade teológica à revelação escrita de Deus em todo o texto das Escrituras, a despeito de pequenas incongruências em detalhes históricos. Com tão sólida e rica fonte de dados reveladores, os teólogos adventistas serão capazes de investigar ainda mais profundamente dentro da maravilhosa riqueza da revelação divina, estendendo a mão para sua interna coerência histórica centralizada no contínuo envolvimento de Deus no grande conflito. Também serão capazes de explicar suas opiniões diante de quaisquer escolas de teologia que edificam sobre a areia movediça de filosofias e convicções científicas humanas.
Referências
- As palavras revelação-inspiração são hifenizadas para indicar que são aspectos inseparáveis do mesmo processo. Para economizar espaço, eu usarei a abreviatura “R-I”.
- Alberto R. Timm, “A History of Seventh-day Adventist Views on Biblical and Prophetic Inspiration (1844-2000)”, Journal of the Adventist Theological Society 10, (1999), 542 (ênfase do autor).
- Agostinho, Confissões, 12. 15. 18.
- Raoul Dederen, “The Revelation-Inspiration Phenomenon According to the Bible Writers”, in Frank Holbrook e Leo Van Dolson, eds., Issues in Revelation and Inspiration, Adventist Theological Society Occasional papers, vol. 1 (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society Publications, 1992), p. 11.
- Edward Heppenstall, “Doctrine of Revelation and Inspiration (parte 1)”, Ministry, julho de 1970, p. 16.
- Timm, p. 487-509.
- Carlyle B. Haines, God’s Book (Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1935).
- Ibid., p. 144 (ênfase suprida).
- Ibid., p. 136 (ênfase do autor).
- Samuel Koranteng-Pipim apresenta um recente e explícito exemplo desta tendência; veja seu Receiving the Word: How New Approaches to the Bible Impact our Biblical Faith and Lifestyle (Berrien Springs, MI: Berean Books, 1996). Como acontece com Alden Thompson, que será discutido posteriormente, Pipim não lida explicitamente com a doutrina de revelação-inspiração, mas admite a teoria verbal evangélica, como muitos adventistas têm feito no passado (ibid., 51). Como sucede com Haynes, a abordagem de Pipim é apologética contra as incursões do modernismo e o método de exegese da crítica histórica na teologia adventista. Pipim se distancia da teoria verbal evangélica de inspiração quando enfatiza a “fidedignidade” das Escrituras em vez de sua “inerrância” (p. 54-55). Contudo, ele se aproxima quando explicando que embora “nenhuma distorção venha da mão dos escritores originais da Bíblia, algumas alterações e pequenas distorções têm se insinuado na Palavra durante o processo de transmissão e tradução” (p. 227).
- “General Conference Proceedings”, Review and Herald, 27 de novembro de 1883, p. 741-742.
- Edward Heppenstall, parte 1, p. 16.
- Ibidem.
- Ibidem.
- Idem, “Doctrine of Revelation and Inspiration (conclusão)”, Ministry, agosto de 1970, p. 29.
- Alden Thompson, Inspiration: Hard Questions, Honest Answers (Hagerstown, MD: Review and Herald, 1991).
- Holbrook e Van Dolson, eds. Issues in Revelation and Inspiration.
- Thompson, p. 47.
- Ibid., p. 53.
- Ibidem.
- Ibid., p. 48 (ênfase do autor).
- Raoul Dederen, “On Inspiration and Biblical Authority”, em Issues in Revelation and Inspiration, p. 101.
- Gerard P. Damsteeg, “The Inspiration of Scripture in the Writings of Ellen G. White”, Journal of the Adventist Theological Society, 5, no. 1 1 (1994); 162.
- Hans-Georg Gadamer, Truth and Method, 2ª ed. rev., trad. Joel Weinsheimer e Donald G. Marshall (New York: Continuum, 1989), p. 417.
- Herold Weiss, “Revelation and the Bible: Beyond Verbal Inspiration”, Spectrum 7, nº 3 (1975): 52.
- Raoul Dederen, “Toward a Seventh-day Adventist Theology of Revelation-Inspiration”, em North American Bible Conference (Divisão Norte-Americana: ensaio não publicado, 1974), 10.
- Esta virada em nível científico-filosófico da hermenêutica parece revestir a proposta metodológica de Fritz Guy para a teologia adventista em seu Thinking Theologically: Adventist Christianity and the Interpretation of Faith (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 1999).
- Dederen, “Toward a Seventh-day Adventist Theology of Revelation-Inspiration”, p. 16.
- Ibid., p. 13.
- Ibid., p. 10.
- Idem, “On Inspiration and Biblical Authority”, p. 101 e 97.
- Idem, “Toward a Seventh-day Adventist Theology of Revelation-Inspiration”, p. 6.
- “O Senhor deu Sua Palavra precisamente da maneira como Ele queria que ela viesse. Deu-a por intermédio de diferentes escritores, cada um tendo sua própria individualidade, embora tratando da mesma história” (Publishing Ministry, p. 2).
- Explica Ellen G. White: “É impossível a qualquer mente humana esgotar mesmo uma única verdade ou promessa da Bíblia” (Educação, p. 171).
Bibliografia selecionada
van Bemmelen, Peter Maarten. “Revelation and Inspiration”. Em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, ed. Raoul Dederen, 22-57. Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000.
Canale, Fernando. Back to Revelation-Inspiration: Searching for the Cognitive Foundations of Christian Theology in a Postmodern World. Lanham, MD: University Press of America, 2001.
Dockery, David S. Christian Scripture: An Evangelical Perspective on Inspiration, Authority and Interpretation. Nashville: Broadman & Holman, 1995.
Holbrook, Frank e Leo van Dolson, eds. Issues in Revelation and Inspiration, Adventist Theo-logical Society Occasional Papers. Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society Publications, 1992.
Gulley, Norman R. Systematic Theology: Prolegomena. Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2003.
Rice, George. Luke, a Plagiarist? Is a Writer Who Copied From Others Inspired? Mountain View, CA: Pacific Press, 1983.
Timm, Alberto. “A History of Seventh-day Adventist Views on Biblical and Prophetic Inspiration 1844-2000)”. Journal of the Adventist Theological Society 10 (1999): 486-542.
Thompson, Alden. Inspiration: Hard Questions, Honest Answers. MD: Review and Herald, 1991.
Fernando L. Canale, livro “Compreendendo as Escrituras”.
Compartilhe com seus amigos: